A Filosofia do Direito é geralmente considerada parte da Filosofia e não do Direito, como Gustav Radbruch recorda na primeira linha de sua obra clássica sobre a disciplina (RADBRUCH, Gustav. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Filosofia do direito. p. 5). O que nem sempre se recorda é que a correta localização da disciplina leva a Filosofia do Direito a manter relação distante com particularidades jurídicas, assim como detalhes das leis civis e criminais ou a sua aplicação a casos práticos. A não ser, é claro, que as particularidades prestem-se a esclarecer ideias propriamente filosóficas.
Objeto da Filosofia Jurídica são aqueles temas axiológicos e fenomenológicos de impacto para o Direito. Alguns desses temas são de interesse permanente, como a justiça. Outros, a exemplo da desigualdade econômica, têm importância variável, embora elevada. Por fim, uma terceira classe de preocupações são as que surgem de situações específicas e perdem relevância quando elas desaparecem. É o caso da sistematização das normas jurídicas nos ordenamentos hipertrofiados dos nossos tempos.
Agamben referiu-se à “proliferação espetacular, sem precedentes, de palavras vãs de um lado, e, de outro, de dispositivos legislativos” (AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 81) como um grave problema contemporâneo de linguagem. Nunca tantas normas jurídicas estiveram em vigor, ao mesmo tempo, quanto na atualidade. Só no Brasil, entre a promulgação da Constituição de 1988 e hoje, foram criados quase cinco milhões de normas (fonte: Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação. Disponível em https:// www.ibpt.org.br/img/ uploads/novelty/estudo/1266/ NormasEditadas25AnosDaCFIBPT. pdf).
Para combater a proliferação descontrolada das normas, é necessário desenvolver a Metodologia do Direito, que trata das técnicas e outros métodos pelos quais os profissionais do Direito e os cidadãos podem manejar ou, ao menos, não sucumbir ante tão vertiginoso número de leis. Porém, para que os métodos possam ser aplicados, é necessário que as normas sejam organizadas sistematicamente. Para viabilizar essa organização, tanto juristas como filosófos têm sido convocados a propor novos modos de estruturação sistemática do direito.
Uma das propostas mais completas foi a que Kelsen apresentou na sua Teoria geral do Direito e do Estado. O filósofo do direito austríaco parte da pergunta sobre o “que faz de uma profusão de normas um sistema” (KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 161). Ele mesmo responde que as normas se arranjam em sistema pelas relações de validade que mantêm umas com as outras: “O fundamento para a validade de uma norma é sempre uma norma, não um fato”. Por exemplo, “o fundamento para a validade da norma ‘não matarás’ é a norma geral ‘obedecerás aos mandamentos de Deus’” (idem. p. 162).
Kelsen pretende que todas as normas têm o seu fundamento de validade em outras normas. Porém, "a procura do fundamento de validade de uma norma não é – como a procura da causa de um efeito – um regressus ad infinitum; ela é limitada por uma norma mais alta que é o fundamento último de validade”. (idem. p. 163). A conclusão que Kelsen extrai disso é que “todas as normas cuja validade pode ter sua origem remontada a uma mesma norma fundamental formam um sistema” (idem).
Kelsen distingue a validade da veracidade: “Pode-se demonstrar pela experiência que o enunciado ‘O ferro é mais pesado que a água’ é verdadeiro e que o enunciado “a água é mais pesada que o ferro’ é falso; e um deles é verdadeiro e o outro é falso mesmo se o sujeito que julga, por um motivo ou outro, deseja o contrário. Por outro lado, o enunciado de que certa organização social, que garante a liberdade individual, mas não a segurança econômica, é boa não é um enunciado sobre um fato, não pode ser verificado por experimento e não é verdadeiro nem falso. É, antes, válido ou inválido” (KELSEN, Hans. O que é justiça – a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 350).
A afirmação de que algo é bom ou é lícito baseia-se na relação que mantém com uma norma, não com um fato. Contrariamente, o enunciado de que o ferro é mais pesado que a água baseia-se em fatos. Validade é o nome que atribuímos à fundamentação formal de uma norma em outra, a qual faz surgir as ideias do bom e do lícito. Veracidade é a relação entre um enunciado e um fato.
A descrição do ordenamento jurídico com base na validade parece inteiramente objetiva e, nessa medida, inegável. Porém, ela esconde uma preferência subjetiva pela relação formal como critério constitutivo do sistema jurídico. Para Kelsen, a unidade do ordenamento é garantida pelo modo de criação das normas, ou seja, pelo fato de umas normas serem editadas pelo método previsto em outras.
Assim compreendido, o critério da validade é inteiramente formal. Essa é a razão de “as normas jurídicas poderem ter qualquer tipo de conteúdo. Não existe nenhum tipo de conduta humana que não possa, por causa de sua natureza, ser transformado em um dever jurídico” (KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 166). Se respeitarem as relações formais de validade, ensina Kelsen, as normas podem prever quaisquer condutas.
A descrição formal do sistema jurídico afasta a ideia um tanto intuitiva de que as normas se articulam em sistema em razão de seu conteúdo, como se fossem anexadas umas às outras por semelhança, a exemplo das peças de um quebra-cabeças. É comum duas normas com conteúdos semelhantes serem dispostas em níveis distantes do sistema jurídico. Por exemplo, a norma que define a família como "a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes" (Constituição, art. 226) assemelha-se às disposições de Direito de Família do Código Civil. Há entre elas uma semelhança de conteúdo. Porém, a razão por que elas pertencem a um sistema jurídico não são essas semelhanças e sim o distanciamento advindo do fato de a Constituição constituir o fundamento de validade do Código Civil. Para Kelsen, o desnível entre as normas constitucionais e civis é o que define o modo como elas se articulam em sistema.
A descrição formal do sistema jurídico afasta a ideia um tanto intuitiva de que as normas se articulam em sistema em razão de seu conteúdo, como se fossem anexadas umas às outras por semelhança, a exemplo das peças de um quebra-cabeças. É comum duas normas com conteúdos semelhantes serem dispostas em níveis distantes do sistema jurídico. Por exemplo, a norma que define a família como "a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes" (Constituição, art. 226) assemelha-se às disposições de Direito de Família do Código Civil. Há entre elas uma semelhança de conteúdo. Porém, a razão por que elas pertencem a um sistema jurídico não são essas semelhanças e sim o distanciamento advindo do fato de a Constituição constituir o fundamento de validade do Código Civil. Para Kelsen, o desnível entre as normas constitucionais e civis é o que define o modo como elas se articulam em sistema.
Seria impossível a alguém conhecer um conjunto de milhões de normas se elas estivessem entrelaçadas e formassem um sistema, unicamente pelo critério do conteúdo. A inteligência humana não é capaz de entender algo tão complexo quanto o encaixe recíproco de tantas normas. Além disso, haveria tantas contradições no conjunto assim constituído que ele não formaria sistema algum, somente um complexo, uma profusão, um ordenamento mais ou menos indiscernível.
Claus-Wilhelm Canaris mostrou que, para um conjunto de normas formar um sistema, são necessários dois requisitos, que ele denominou ordem e unidade (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1989. p. 12). Ordem é um arranjo ou disposição de elementos com vistas a determinado fim. A unidade pode ser descrita, em linguagem kelseniana, como a relação de fundamentação das normas umas nas outras e do sistema normativo, na norma fundamental. De fato, se possuísse várias normas fundamentais, em vez de uma só, o ordenamento jurídico não formaria um sistema, por lhe faltar unidade.
A explicação do sistema jurídico com base em elementos formais parece arguta e precisa, mas encobre uma série de problemas. O primeiro é o fato de os ordenamentos normativos constituírem sistemas bastante imperfeitos. Um ordenamento só se torna sistema ao resolver o problema da sua unidade interna, isto é, ao resolver as suas contradições mais básicas. O princípio da proibição da prisão por dívida serve de exemplo. Na Antiguidade, era comum o devedor ser preso ou escravizado. Nos tempos modernos, essas sanções foram abolidas por contrariarem direitos humanos universais. Porém, o artigo 5º, LXVII da nossa Constituição permite a prisão do alimentante e do depositário infiel por suas dívidas. Assim, os devedores em geral respondem por suas dívidas somente com o patrimônio, porém o alimentante e o depositário respondem com a liberdade.
A prisão do depositário ofende princípios claramente consagrados no ordenamento jurídico brasileiro, como o da liberdade de ir e vir. Nenhum raciocínio é capaz de desfazer a contradição consistente em o ordenamento proibir a prisão de todo e qualquer devedor e, sem justificativa, permitir a do depositário infiel. E o pior é que o nosso ordenamento contém muitas outras contradições além dessa, como o direito do acusado à ampla defesa, que se opõe à proibição de provas ilícitas. Assim, se o acusado de um crime produzir uma prova por gravação telefônica não autorizada ou outro meio ilícito, a sua utilização no processo será, ao mesmo tempo, garantida pelo princípio da ampla defesa e vedada pelo da proibição das provas ilícitas.
Felizmente, as contradições do ordenamento jurídico costumam ser afastadas no momento da aplicação dos princípios aos casos concretos. Por exemplo, se a utilização da prova ilícita for decisiva para a absolvição do acusado de um crime apenado com vários anos de reclusão, será razoável admiti-la. Porém, se a prova for redundante ou contribuir minimamente para o estabelecimento da verdade, no caso concreto, a proibição do seu uso deverá ser mantida.
Com esses esclarecimentos, é possível alcançar algumas conclusões sobre o caráter do sistema jurídico. Podemos concluir, por exemplo, que o ordenamento normativo constitui um sistema imperfeito, devido às contradições entre suas normas fundamentais. Por outro lado, a necessidade que as pessoas têm de utilizar as normas de maneira sistemática permanece inequívoca. O modo de ser do ordenamento revela que ele foi concebido para ser sistemático. Por isso, melhor que negar sistematicidade ao direito é admitir a sua imperfeição em abstrato, mas reconhecer que o ordenamento se aperfeiçoa no momento da aplicação das normas.
No entanto, só compreendemos o aperfeiçoamento do sistema jurídico na devida profundidade quando percebemos que ele tem por foco o conteúdo das normas. A validade está todo o tempo implicada, mas não é ela que determina como o sistema se aperfeiçoa, já que os princípios não servem de fundamento uns para os outros. Nenhum princípio jurídico é mais elevado que outro. Pelo contrário, eles são incomensuráveis, por isso se encontram no mesmo patamar. Não é possível determinar, em abstrato, se a liberdade é mais importante do que a igualdade ou do que a vida ou se a liberdade de opinião é mais relevante que a de ir e vir. Só em situações concretas, é possível avaliar quais desses valores devem ser priorizados, o que ratifica a incomensurabilidade e a igualdade fundamental dos princípios. Por se situarem no mesmo patamar hierárquico, nenhum princípio serve de fundamento de validade para outro.
A exceção é a harmonia que se estabelece entre os princípios jurídicos. Essa harmonia é, ela própria, um princípio situado acima dos outros, já que nenhuma norma ou valor jurídico pode ser aplicado em prejuízo dela, sob pena de desconstituição do sistema. Em artigos anteriores, vimos que é possível identificar a harmonia dos princípios com a justiça, entendida como um arranjo de outros valores (princípios). Portanto, se a harmonia for considerada superior aos próprios valores, a justiça será elevada à condição dem sobreprincípio do direito.
Sob essa concepção, a norma fundamental garante unidade ao sistema, ao definir o primeiro legislador (o rei, a Assembleia Constituinte ou outro). Porém, só garante unidade formal. Penhor da unidade de conteúdo do sistema é a justiça. Somente por meio dela, a sistematicidade do direito completa-se.
O atentado ao periódico francês Charlie Hebdo desnuda a virulência com que o choque de princípios se manifesta na sociedade. Revela, porém, algo mais. Revela que uma ruptura terrível se segue ao choque principiológico, quando nenhuma ideia de justiça é invocada para resolvê-lo. Por isso, o dissídio entre extremistas religiosos e o restante da sociedade não inspira qualquer sensação de falta de lógica, mas de uma ideia de justiça capaz de apaziguar, em alguma medida, as partes, acomodando os princípios em conflito. Nenhuma lógica meramente formal é capaz de reduzir o sulco que a violência abre entre as pessoas. Só a justiça tem tal capacidade. Daí a necessidade de nos preocuparmos com ela, embora o ceticismo tenha tornado comum a chamarmos pelo nome de ilusão.
Sob essa concepção, a norma fundamental garante unidade ao sistema, ao definir o primeiro legislador (o rei, a Assembleia Constituinte ou outro). Porém, só garante unidade formal. Penhor da unidade de conteúdo do sistema é a justiça. Somente por meio dela, a sistematicidade do direito completa-se.
O atentado ao periódico francês Charlie Hebdo desnuda a virulência com que o choque de princípios se manifesta na sociedade. Revela, porém, algo mais. Revela que uma ruptura terrível se segue ao choque principiológico, quando nenhuma ideia de justiça é invocada para resolvê-lo. Por isso, o dissídio entre extremistas religiosos e o restante da sociedade não inspira qualquer sensação de falta de lógica, mas de uma ideia de justiça capaz de apaziguar, em alguma medida, as partes, acomodando os princípios em conflito. Nenhuma lógica meramente formal é capaz de reduzir o sulco que a violência abre entre as pessoas. Só a justiça tem tal capacidade. Daí a necessidade de nos preocuparmos com ela, embora o ceticismo tenha tornado comum a chamarmos pelo nome de ilusão.