sábado, 3 de janeiro de 2015

Filosofia e Direito (7): A Sociedade e o Sagrado

A teoria cristã social não se reduz à Doutrina Católica. Mesmo assim, em termos comparativos, o que antecedeu as formulações sociais da Igreja não foi mais do que uma introdução a ela. Antes da Rerum novarum, o que temos são textos ou partes de textos esparsos sobre a questão social, com uma ou outra exceção, como A cidade de Deus, de Agostinho. 
Essa prioridade da abordagem católica da sociedade, somada à sua qualidade intrínseca, praticamente exige que toda doutrina cristã social leve em conta as encíclicas e demais documentos da Igreja ao propor-se. Quando não demanda que parta daqueles textos. O que passa disso não vai muito além do partidarismo e da emulação. Daí minha opção de enraizar a reflexão social nos documentos católicos, pontifícios principalmente.
Ocorre que esses textos têm tanto antecedentes quanto dignos continuadores. A Teologia da Libertação é um caso. Porém, autores ainda mais recentes têm construído uma contribuição tão relevante e conexa à temática social católica quanto a daquela corrente. Gianni Vattimo, no âmbito da Filosofia, René Girard e Giorgio Agamben, na Antropologia e na Filosofia, são alguns exemplos. Se recuarmos apenas um pouco, teremos em Jean Guitton e Henri Bergson representantes da mesma tendência. Entre tantos outros, é claro.
Essa constelação de autores anteriores e posteriores à Doutrina da Igreja merece ser tão bem analisada quanto ela. Comecemos pelos que a antecedem, como o escritor do Livro da Sabedoria, incluído no cânon católico, porém não no protestante. Nele, a causa da miséria material coincide com a disposição do coração humano: “Os ímpios dizem entre si, em seus falsos raciocínios: Breve e triste é nossa vida, o remédio não está no fim do homem, não se conhece quem tenha voltado do Hades. Nós nascemos do acaso e logo passaremos como quem não existiu [...] Vinde, pois, desfrutar dos bens presentes e gozar das criaturas com ânsia juvenil. Inebriemo-nos com o melhor vinho e com perfume, não deixemos passar a flor da primavera, coroemo-nos com botões de rosas, antes que feneçam; nenhum prado ficará sem provar da nossa orgia, deixemos em toda parte sinais de alegria pois esta é a nossa parte e nossa porção!” E arremata: “Oprimamos o justo pobre, não poupemos a viúva nem respeitemos as velhas cãs do ancião. Que nossa força seja a lei da justiça, pois o fraco, com certeza, é inútil” (Sb 2:1-2, 6-11).
A relevância desse texto consiste em dissipar a névoa, por meio da qual os cristãos às vezes atribuem a miséria ao pecado, sem especificar qual, ou ao pecado de Adão, situado milênios atrás. Claro que essas explicações não são satisfatórias. Em Sabedoria, deparamos fundamentação bem diversa: a opressão do “justo pobre”, da viúva e do ancião é atribuída a um modo definido de pensar e de ver o mundo. Diz o poeta que os ímpios praticam a iniquidade e se escusam por ser a vida breve e triste.
A afirmativa não tem razão de ser? Não é a vida breve e semeada de trechos tristes? Não o era, ainda mais, num povo carente de bens e de liberdade como Israel? A impiedade não é sem justificativa. Ao contrário, é tão amplamente justificada! Ao abater o justo, ao pô-lo por terra, o ímpio não apenas o tira de cena. Tenta tornar ineficaz o exemplo de vida dele: “Cerquemos o justo, porque nos incomoda e se opõe às nossas ações, nos censura as faltas [...] Vejamos se suas palavras são verdadeiras, experimentemos o que será do seu fim. Pois se o justo é filho de Deus, ele o assistirá e o libertará das mãos de seus adversários. Experimentemo-lo pelo ultraje e pela tortura a fim de conhecer sua serenidade e pôr à prova sua resignação. Condenemo-lo a uma morte vergonhosa, pois diz que há quem o visite” (Sb 2:12,17-20).
Marx pensou a opressão como sujeição de uma classe a outra. A História mostra que a opressão de classe é um caso entre outros. Do ponto de vista subjetivo, os comportamentos opressivos talvez possam ser congregados sob o pacto hedonista do Livro da Sabedoria. Ou sob o pacto utilitarista, para nos exprimirmos em linguagem moderna, o qual consiste na associação e assistência recíproca para aumentar o prazer, a todo custo.  
Ante esse quadro, a mitigação da pobreza por donativos é útil e até necessária, mas não é o mais essencial. Essencial é o combate à mentalidade que alimenta a miséria. É o combate à orgia que nasce de suspirar “Breve e triste é essa vida!” e também “Nós nascemos do acaso e logo passaremos!” Há senso nessas afirmações: o senso comum, que constata que em toda a parte só existe a matéria. Para o autor de Sabedoria, o que exacerba a miséria é a exacerbação do senso comum, é o fundamentalismo hedonista.
A sabedoria do cristianismo precisa ser novamente ouvida e reconhecida. Apoucá-la, para os povos que se organizaram em conformidade com as suas tradições, não é outra coisa que cometer suicídio cultural. Porém, ao mesmo tempo, é preciso saber atualizar as fontes e as tradições cristãs por meio de reflexões renovadas. 
Giorgio Agamben é um dos autores que mais têm contribuído para isso, não por qualquer adesão integral ao Catolicismo, mas pelas suas reflexões sobre o homo sacer, que pode ser entendido como o homem em seu contato ancestral com o sagrado. Não me deterei, aqui, nos múltiplos pontos da obra de Agamben, mas num único aspecto dela: a relação que o filósofo contemporâneo resgata e estabelece entre horkos (juramento) e pistis (fé).
Para Agamben, o juramento é a base de toda cultura entendida não como algo próximo do instinto animal, mas como elaboração, antes de tudo, religiosa, ética e jurídica. Por entender assim a cultura, Agamben localiza a sua gênese no momento pré-histórico em que aqueles três fenômenos fizeram sua aparição. Porém, ele reconhece que não dispomos de meios para tratar, com mínima segurança, da religião, da ética e do direito, enquanto tentamos fazê-lo do ponto de vista pré-histórico.
Uma das questões mais interessantes que Agamben formula, portanto, é a do significado da cultura, como os documentos produzidos na transição para a História a revelam. Sem pretender extrair de tais documentos uma prova completa, mas ouvindo atentamente o testemunho deles, podemos admitir, com Agamben, que, nesse momento crucial, a cultura parece basear-se no juramento.
Toda uma demonstração desse ponto e das relações entre o juramento, a religião, a moral e o direito pode ser encontrada no Homo sacer (II, 3). Ela se constroi ao redor das antigas noções de bênção e maldição, bem e mal, certo e errado, obrigatório e proibido. Essas noções, postula Agamben, formam o que podemos considerar o patrimônio básico e comum das culturas. Não me deterei na demonstração que Agamben realiza do sentido delas, que é primorosa e cria uma autoridade, ainda que não uma prova. Optarei por deter-me na relação que ele enuncia entre horkos e pistis. As duas noções são fundamentais. No entanto, o juramento é primeiro, por ser a instituição cultural básica, nem apenas religiosa, nem só jurídica, mas religiosa e jurídica. Esse caráter básico do juramento, Agamben o deriva da função que exerce na linguagem humana.
Do ponto de vista dos primeiros documentos, o homem se ergue da natureza por meio do juramento. Ao entender-se como ser falante, ele exerce a opção de se pôr ante o bem e o mal, ou entre eles, por meio do juramento. Jurar é afiançar a verdade de algo. Mais ainda, é prometer conduzir-se em conformidade com ral verdade.
Ao realizar essas coisas, o juramento institui a fé: “Dumézil e Benveniste reconstituíram, a partir de dados sobretudo linguísticos, as linhas originais da antiquíssima instituição indo-europeia que os gregos denominavam pistis, e os romanos,  fides (em sânscrito, sraddha). A fé é o crédito com que se conta junto a alguém, como consequência do fato de que somos abandonados confiavelmente a ele, ligando-nos numa relação de fidelidade. Por isso, a fé é tanto a confiança que depositamos junto a alguém – a fé que damos – quanto a confiança com que contamos junto a alguém – a fé, o crédito que temos” (AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: UFMG, 2011. P. 34).
Até que ponto a fé a que Agamben se refere coincide com a do Antigo e do Novo Testamento? Para responder tal pergunta, precisamos recordar que a fé mencionada na obra de Dumézil e Benveniste é a dos povos indo-europeus e, particularmente, a dos gregos, romanos e indianos. O hebraico, como descendente do semítico ocidental, não se inclui no caudal dessas línguas. Portanto, a fé judaica não se inscreve na descrição transcrita.
Entre os gregos e os romanos, os dois aspectos da fé que Agamben encarece desenvolveram-se amplamente, a saber: tanto a fé que damos como a que temos por crédito. No Período Helenístico e, mais intensamente, nos séculos em que o evangelho se propagou pela costa do Mediterrâneo, essa dupla noção de fé entrou em contato com o conceito judeu correspondente. Porém, jamais se fundiram ou coincidiram. Entre os judeus, o último aspecto da fé (o crédito que temos com Deus) tem importância muito superior à do outro (a fé que atestamos), pelo motivo simples de que Deus, não o homem, constitui a ideia fortíssima na cultura judaica.
Portanto, quando lança mão da palavra pistis, em Romanos e Gálatas, o apóstolo Paulo não importa os sentidos gregos do termo na sua inteireza, antes transmite o sentido judaico por meio da palavra grega. Temos visto que esse sentido é principalmente o da fé que se tem (em Deus), como o salmista exprime: “Confia no Senhor e faze o bem; habita na terra e alimenta-te da verdade” (Sl 37:3). E de novo: “Descansa no Senhor e espera nele” (Sl 37:7).
Esse sentido da fé é melhor elucidado por comparação com a acepção correspondente do termo entre os gregos e os romanos: “Numa guerra, a cidade inimiga podia ser vencida e destruída com a força (kata kratos), enquanto seus habitantes eram mortos ou reduzidos à escravidão. Contudo, também podia acontecer que a cidade mais fraca recorresse ao instituto da deditio in fidem, ou seja, que capitulasse, remetendo-se incondicionalmente à fides do inimigo, comprometendo-se assim, de algum modo, o vencedor a assumir um comportamento mais benevolente” (idem. p. 35).
Isso é pistis como fé que se tem. A especificidade judaica é ter feito dela uma fé que se tem "em Deus". Como Paulo a apresenta, o homem enfraquecido pelo pecado é semelhante ao povo subjugado pelas armas inimigas. Está exaurido e reduzido à incapacidade para qualquer atitude diversa da submissão. Em tal condição, o homem não tem fé a outorgar, a atestar ou a dar em penhor de verdade alguma. Tem somente fé a receber, fé como crédito.
Paulo declara: “Com o coração se crê para justiça” (Rm 10:10). Isso é também fé judaica: confiança tranquila e imersa em silêncio. Para os romanos, “fides é um ato verbal, acompanhado em geral de um juramento” (AGAMBEN, Giorgio. Ob. cit. p. 35). Não, porém, para o judeu, cuja fé é secreta e está mergulhada em silêncio. Verdade é que Paulo acrescenta, em seguida: “Com a boca se proclama a respeito da salvação” (Rm 10:10). Sem dúvida, mas isso já é confissão e não fé. Tudo considerado, a salvação, para Paulo, abrange-se no enunciado hipotético: “Se, com a boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo” (Rm 10:9).
Na Grécia e em Roma, a fé estava associada ao juramento. E entre os judeus? Agamben cita Fílon para fundamentar resposta afirmativa a essa questão. Assim, ele estende sua teoria para além dos limites indo-europeus. E o faz a meu ver de modo consistente, pois, se o juramento (horkos) é o sacramento da linguagem e a base de toda a cultura, não só da indo-europeia, necessário é que os judeus o tenham também em tal conta.
Embora a passagem de Fílon, que viveu num período e ambiente helenizados, seja em geral atestadora da posição de Agamben, há nela diferenciais que precisam ser considerados. Fílon trata do texto em que Deus fala a Abraão: "Jurei por mim mesmo, diz o Senhor, porquanto fizeste isso e não me negaste o teu único filho, que deveras te abençoarei e multiplicarei a tua descendência" (Gn 22:16-17). Esse trecho é glosado por Fílon nos seguintes termos: "Ninguém dos que podem dar uma garantia pode fazê-lo com segurança com respeito a Deus, pois a ninguém ele mostrou sua natureza, mas a manteve escondida a todo gênero humano [...] Portanto, ele só pode fazer afirmações sobre si mesmo, pois só ele conhece exatamente e sem erros a sua própria natureza. Na medida em que só Deus pode, com certeza, comprometer-se consigo e com suas ações, por isso, e com razão, ele jurou sobre si mesmo" (ALEXANDRIA, Fílon de. Legum allegoriae. 204-208. Apud AGAMBEN, Giorgio. Ob. cit. p. 29). Fílon mostra que Deus não só jura e realiza, lançando assim a base para a nossa fé, como jura sobre si, o que significa que revela a si mesmo ao jurar. 
Podemos assentir com a aplicação da teoria de Agamben à cultura judaica? Sem dúvida, se o juramento, para os judeus, era antes de tudo um ato de Deus. Deus é capaz de jurar. O homem só é capaz de imitar os juramentos divinos. Esse é o provável motivo da restrição que Jesus fez ao juramento, no Sermão do Monte. “De modo algum jureis, nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser a cidade do grande Rei; nem jureis pela vossa cabeça, porque não podeis tornar um cabelo branco ou preto (Mt 5:34-36)”. O fato de não jurar por Deus, nem pelas coisas de Deus não é o mesmo que não jurar absolutamente. Jesus não veio abolir a lei, que mandava jurar (Lv 19:12). Não jurar, no seu sermão, significa apenas que o segundo aspecto do juramento, para o judeu, é mais fraco e assim deve permanecer. 
Jesus não negou, antes fortaleceu o sentido de horkos contra as vacilações de sua época. Ordenou que o juramento não fosse banalizado. Prescreveu uma consciência profunda dele. Só Deus pode jurar consistentemente e o faz sobretudo a respeito de si, não de coisas transitórias. Nós tentamos jurar e devemos de fato tentar, mas como o segundo sentido de pistis é fraco, entre os judeus, não somos capazes de dar realmente um fato por meio de horkos.
Nesse sentido extremamente específico, o juramento é a base da cultura judaica. Em Israel, juramento é a palavra de Deus, mais que a do homem. Da palavra jurada de Deus emana a vida humana e a vida social, em particular. A base do trono de Deus é a justiça. Por isso, é perfeitamente possível que a sua palavra jurada constitua a justiça social.
O mérito maior de Agamben é ter mostrado o caráter sagrado de algo aparentemente tão neutro quanto a linguagem. Se a linguagem é sagrada porque o juramento o é, a cultura como um todo é sagrada. Não há dessacralização possível dela. O anseio de dessacralização que tudo permeia, no nosso tempo, é um ideal impossível, uma rebelião destinada a afundar a cultura humana ou a afundar-se.
Vemos que, se tem fortes porquês, a ruptura epistemológica tem também seus limites. Na sociedade, há estruturas caducas que precisam ser substituídas e outras fundamentais demais para o serem. Assim, quando a ruptura se transforma em febre, ideal ilimitado, radicalismo gratuito e vazio, torna-se necessário pensar seriamente se não é chegado o momento de temperá-la, de equilibrá-la com o ideal oposto de conservação e de considerar que a autêntica ruptura, em alguns casos, envolve a necessidade de não romper. 
Que dizer do tempo atual? Agamben é claríssimo: “Prodi abria a sua história do sacramento do poder com a constatação de que somos hoje as primeiras gerações que vivem a própria vida coletiva sem o vínculo do juramento, e que tal mudança não pode deixar de acarretar uma transformação das modalidades de associação política. Se, de alguma maneira, tal diagnóstico for correto, isso significa que a humanidade se encontra hoje frente a uma disjunção ou, pelo menos, frente a um afrouxamento do vínculo que, através do juramento, unia o ser vivo à sua língua. Por um lado, o ser vivo agora está cada vez mais reduzido a uma realidade puramente biológica e à vida nua, e, por outro, o ser que fala, separado artificiosamente dele, por uma multiplicidade de dispositivos técnico-midiáticos, [encontra-se] em uma experiência da palavra cada vez mais vã” (idem. p. 81).
Não poderia ser dada descrição mais veraz do nosso tempo. Fico a pensar nas consequências econômicas do que Agamben escreveu. No interior das empresas dos nossos dias, ao ritmo em que o instinto se fortalece, a cultura mirra e fenece. O juramento se esvai. Trapacear, mentir, não como os antigos trapaceavam e mentiam, mas com requinte e o mais imperceptivelmente possível: eis o novo padrão de comportamento. Assim, por uma estranha alquimia, a traição do juramento se transmuda, ela própria, em juramento. “Juremos ser levianos”: não é este o pacto dos ímpios, no Livro da Sabedoria? Não é, sob outra roupagem, também o pacto dos novos salteadores? Não é o sucedâneo do roubo, na nossa cultura?
“Imagine”, de John Lennon, dá ótima música e muito bons sonhos. Não dá meio palmo de realidade. Extingue a religião e conserva a fraternidade. Acaba com a propriedade, ao passo em que mantém a sociedade. Suprime a guerra e torna a paz universal. É a redução antropológica por excelência: o homem não é ele inteiro, é somente o seu sonho. Mas, se a par de ser o sonho, o homem ainda puder ser ele todo, será exatamente o que a música elimina e que cabe recuperar pelo despertamento. Imaginemos, portanto, e sempre, e também despertemos.