domingo, 18 de janeiro de 2015

Filosofia e Direito (8):O Pensamento Jurídico na Antiguidade

Sólon, legislador e
estadista ateniense
Fustel de Coulanges mostrou que, na Antiguidade, os povos indo-europeus (arianos) tinham instituições domésticas semelhantes e políticas totalmente dessemelhantes: “Se compararmos as instituições domésticas desses diversos povos, perceberemos que a família era constituída conforme os mesmos princípios na Grécia e na Índia. Estes princípios eram, ademais, como já constatamos previamente, de uma natureza tão singular que não é lícito supor que essa semelhança fosse o efeito do acaso. Enfim, não só essas instituições revelam uma manifesta analogia, como também as palavras que as designam são com frequência idênticas nas diferentes línguas que essa raça falou desde o Ganges até o Tibre. Disto podemos extrair duas conclusões: a primeira é que o nascimento das instituições domésticas nessa raça é anterior à época em que seus diferentes ramos se separaram, a segunda é que, ao contrário, o nascimento das instituições políticas é posterior” (COULANGES, Fustel de. A cidade antiga – estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. São Paulo: Edipro, 1998. p. 96).
Estamos acostumados a encontrar o direito na mais estreita relação com a política, contudo, na época a que Colulanges nos remete, ele estava incrustado nas instituições familiares dos povos indo-europeus. Em outros termos, o direito dos gregos, romanos e indianos seguia o modelo das instituições familiares e não o daquelas de natureza política.
Porém, a informação mais importante que Coulanges nos transmite sobre a formação cultural dos povos indo-europeus não é a fusão das instituições familiares com o direito, mas a de ambos com a religião. De acordo com ele, “no longo período durante o qual os homens não conheceram nenhuma outra forma de sociedade a não ser a família” é que “se produziu a religião doméstica” (idem). Resultado disso é que a ordem doméstica, de caráter sagrado, veio a ser regida por um direito próprio, no qual, por exemplo, o escravo era admitido na família por meio de um rito sagrado análogo ao da adoção e do casamento:
“Um uso curioso, o qual subsistiu longamente nas casas atenientes, nos mostra como o escravo entrava na família. Aproximava-se do fogo doméstico; apresentava-se à divindade doméstica; vertia-se sobre a sua cabeça água lustral e ele partilhava com a família de alguns bolos e algumas frutas. Esta cerimônia era análoga àquela do casamento e àquela da adoção. Significava sem dúvida que o recém-chegado, estranho na véspera, seria doravante um membro da família” (idem. p. 97).
Se seguirmos a evolução social dos povos indo-europeus e, em particular, a dos gregos e romanos, veremos que as suas instituições políticas moldaram-se a partir da família. “A cidade nasceu da confederação das famílias e das tribos. Ora, antes do dia em que a cidade se formou, a família já continha em si mesma a distinção de classes” (idem. p. 196). Além do pater e dos escravos, a família era constituída pelos clientes, que não descendiam do pater, e pelos patrícios, que pertenciam à árvore genealógica dele. Essas pessoas com direitos totalmente diferenciados, vieram a formar a população e as classes sociais das cidades, quando elas se formaram. No topo da hierarquia assim constituída, foi colocado um rei. De sorte que os regimes da família ou gens e da cidade não apenas continuaram a existir lado a lado como o mais recente se formou a partir do primeiro.
Porém, com o tempo, aspirações totalmente novas desestabilizaram a pólis, na qual os elementos contraditórios da ordem social arcaica e recente tinham sido combinados. Coulanges nos fala de quatro revoluções que se repetiram em diferentes povos e foram responsáveis pela formação do que conhecemos como cidade antiga.
A primeira das quatro revoluções pôs fim à realeza. Em Roma, isso se deu porque os reis passaram a favorecer a elevação das classes baixas (idem. p. 215). Revoltada com essa atitude, a aristocracia destituiu os reis e enfeixou o poder político em suas mãos.
A segunda revolução consistiu na modificação lenta e profunda das instituições arcaicas. Conforme se tornavam ávidos pelo controle das magistraturas das cidades, os pater dedicavam menos energia às famílias. Assim, a ordem da gens afrouxou-se. Regras que tinham garantido a coesão da família durante séculos, a exemplo da primogenitura, desapareceram.
Com o enfraquecimento do poder dos pater, os clientes libertaram-se do jugo deles e constituíram uma nova classe no interior das cidades: a plebe. Foi essa a terceira revolução mencionada por Coulanges. Com o tempo, um antagonismo surgiu entre a plebe e a aristocracia, tanto em matéria de religião como de direito civil. A Lei das Doze Tábuas, em Roma, e o Código de Sólon, na Grécia, marcam o sucesso definitivo da revolução plebeia, com o reconhecimento dos direitos da nova camada social.
Por fim, a quarta revolução consistiu na implantação da democracia em diversas cidades. “A nova aristocracia”, diz-nos Coulanges, foi “atacada como fora a antiga. Os pobres quiseram ser cidadãos e se esforçaram para penetrar, por sua vez, no corpo político. É impossível abordar os detalhes desta nova luta. A história das cidades, à medida que se distancia da origem, se diversifica cada vez mais. As cidades passam por uma sequência idêntica de revoluções, mas estas se apresentam sob as formas mais variadas” (idem. p. 266).
De acordo com Coulanges, portanto, em tempos remotos, o direito foi associado à religião e à família, não à política, o que está longe de ser casual. Parece indicar que a sociabilidade humana repousa na combinação desses elementos mais do que na própria política. Não estou a sugerir que a ordem social arcaica deva ser considerada a expressão perfeita da sociabilidade humana. O fato de aspectos inteiros dela (como a primogenitura e o poder absoluto do pater) terem sido extirpados mostra que nunca foram essenciais à convivência. Porém, é provável que algo verdadeiramente essencial estivesse dado na simplicidade do arranjo da religião, do direito e da família antes do aparecimento das cidades.
Assim concebido, o pensamento jurídico remoto era uma espécie de consciência das normas a serem obedecidas para que a sociabilidade humana deixasse de ser uma aspiração para ser um fato. Era o conjunto de normas que estabeleciam como as pessoas podiam unir-se em famílias.
E, se a sociabilidade era vista como um dado da natureza humana pelos antigos, não podia ser diferente com o direito. Em De legibus, considerada a primeira obra de Filosofia do Direito da História (FASSÒ, Guido. História da Filosofia do Direito. Madri: Pirâmide, 1978. Vol. 1. p. 96), Cícero define a lei como “razão suprema, ínsita na natureza, que manda o que se deve fazer e proíbe o contrário” (CÍCERO, Marco Túlio. De legibus. I, 16-17). Essa não era apenas a opinião de Cícero. Era a expressão lapidar do modo grego e romano de pensar o direito.
A reta razão a que Cícero alude não é um dado psicológico, mas divino (idem. p. II, 4, 10). Ele a explica mais detalhadamente em outra obra: “Essa lei verdadeira, razão reta e conforme a natureza, está presente em todos, invariável, eterna, capaz de guiar-nos com os seus preceitos para o dever e de dissuadir-nos com as suas proibições de fazer o mal [...] O valor dessa lei não lhe pode ser subtraído, nem pode ela ser derrogada, muito menos abrogada. Não podemos ser dispensados da obediência a ela por ato do Senado ou do povo [...] Ela não é distinta em Roma ou Atenas, agora ou no futuro. Todos os povos, em todas as épocas, são regidos por essa única lei eterna e imutável. E o mestre igualmente único dos seus preceitos, por assim dizer, é Deus” (CÍCERO, Marco Túlio. De republica. III, 22, 33).
É provável que Deus, para Cícero, correspondesse ao conceito estoico de natureza suprema ou razão. Mas, independentemente da definição que o termo possa merecer, é admirável que a ideia de direito de um dos homens mais cultos e versados em leis do povo que mais cultivou o Direito na Antiguidade seja essencialmente religiosa. Direito, para Cícero, não era o costume ou as leis. Era a reta razão divina, que o costume e as leis procuram captar e exprimir, às vezes sem sucesso.
Essa ideia de direito, os romanos a compartilharam com os gregos, e por muito tempo. Num discurso ao júri ateniense, Demóstenes sustentou, no século IV a. C., que  as leis devem ser obedecidas, porque foram prescritas por Deus" e também "porque são deduções de um código moral eterno e imutável" (POUND, Roscoe. Philosophy of law. Michigan: Yale University Press, 1982. p. 5)
As discussões da justiça incluídas nos dois primeiros livros de A república, de Platão, e no Livro V da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, refinam e aprofundam as noções de direito apresentadas até aqui, mas de modo nenhum conflitam com ela. No Livro II de seu diálogo, Platão debate extensamente a relação da virtude com Deus. E Aristóteles chega a ser ainda mais conclusivo do que seu mestre. Para ele, "a felicidade, mesmo que não seja considerada dom de Deus, mas resultado da virtude ou de um processo de aprendizado e treinamento, está entre as coisas mais semelhantes àsque chamamos divinas, já que a recompensa da virtude [a felicidade] deve ser considerada a melhor coisa do mundo, portanto divina e abençoada" (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Book I, 9. In Great books of the western world. 2ª ed., 4ª impressão, Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, p. 345). 
Para os gregos como para os romanos, porém, a religião era algo mais imanente do que transcendente. Ainda que os deuses habitassem no Olimpo, os relatos sobre os seus feitos que constituíam a religião antiga e estavam contidos nos mitos os representavam sempre na Terra. Por isso, a religião grecorromana era imanente. Era parte da natureza: a parte mais elevada, por isso difícil de compreender, mas também a mais racional. A religião era a ordem da natureza.
Por isso, quando a primogenitura e o poder absoluto do pater desapareceram, embora estivesse entrelaçada com eles, a religião não declinou. Pelo contrário, manteve-se tão forte quanto antes ou se fortaleceu ainda mais.
O ponto em relevo, aqui, não é o valor da religião como relação do indivíduo com Deus, embora ela também possua essa espécie de valor. Trata-se do papel da religião para a sociabilidade humana. A fé em Deus ou nos deuses não é só um dos elementos básicos da convivência, ao lado da família e do direito. Mesmo entre os vários aspectos em que os três elementos são analisados, os de caráter religioso estão entre os mais fundamentais para a sociabilidade humana. Por isso, nunca foram abolidos. É preciso afirmar até mesmo que nunca foram sequer enfraquecidos, do ponto de vista social, o que justifica perguntar se poderão ser um dia.
Agamben propôs uma explicação para o valor perene da religião. De acordo com ele, as crenças religiosas são tão essenciais, porque as suas raízes estão cravadas na instituição mais básica de toda a cultura: o juramento (AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: UFMG, 2011). Para subverter a religião, é preciso ferir de morte o juramento, o que os antigos jamais realizaram. Foi preciso esperar a dessacralização da vida social observada nos últimos séculos, para que o enfraquecimento do juramento e das instituições que dele dependem fossem observados.
Seja qual for o motivo de a religião desempenhar papel tão essencial para a sociabilidade humana, o fato é que esse papel lhe parece designado. Se não há sociedade sem direito e família, a convivência tampouco parece possível sem religião. Mais do que isso, vemos os três elementos entrelaçar-se desde o momento mais recuado em que podemos surpreendê-los.
"A experiência grega tem uma novidade importante, como visto. A promulgação da lei e sua revogação nada têm de divino; são assuntos humanos [...] O direito já não precisa ser revelado divinamente para valer e nem é preciso invocar a vontade dos deuses para deliberar sobre as leis. Nestes termos é que se pode dizer que o direito se laiciza” (LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na História – lições introdutórias. 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 2002. pp. 39-40). Pergunto-me se não há um exagero nessas palavras. O fato de os gregos não conceberem a promulgação da lei como a sua entrega por parte de um deus é uma nuança que em nada diminui a relação visceral do direito com a religião naquele povo. Os títulos divinos dos agentes humanos pelos quais a lei era dada mostram-no exemplarmente.
Em suma, se a ideia essencial de direito interessa mais ao jusfilósofo do que as particularidades das instituições jurídicas, não resta dúvida de que os antigos tinham daquela ideia uma concepção religiosa. A relação entre direito e religião era, para eles, a mais essencial de todas para a sociedade, o que se coloca em grave contraste com o tempo atual, em que a aspiração profunda dos povos parece ser à separação radical dos dois elementos.
O contraste é tão grave que ao jusfilósofo não deve escapar a pergunta sobre o seu significado. Se Cícero fundou a Filosofia do Direito ao sustentar, no De legibus e em De republica, que a lei é a razão divina que permeia todas as coisas, a dessacralização do direito há de constituir o tema central da disciplina no nosso tempo. É a dessacralização uma aberração, bravata perpetrada contra a lei “invariável, eterna, capaz de guiar-nos com os seus preceitos para o dever e de dissuadir-nos com as suas proibições de fazer o mal”? É ela um atentado contra o que “não pode ser derrogado, muito menos abrogado” por não poder apresentar-se de modo distinto “em Roma ou Atenas, agora ou no futuro”? Ou é a feliz superação de um modo de sociabilidade que funcionou por milênios, mas se tornou profundamente insatisfatório?
À pergunta sobre o que é o direito deve seguir-se a que indaga o sentido da sua dessacralização. Nada mais premente, nem mais esquecido no nosso tempo.