sábado, 31 de janeiro de 2015

Filosofia e Direito (11): A Renovação do Direito Natural

Rudolph Stammler
Ao examinarmos as obras dos jusfilósofos, nos últimos séculos, notamos que o papel do sujeito na definição dos conceitos jurídicos passou a ser cada vez mais discutido, depois de Kant. A palavra depois não é, porém, empregada para indicar imediatidade, uma vez que a mudança provocada por Kant no curso das reflexões sobre o direito foi antecedida por um interlúdio de mais de meio século, no qual as ideias dele foram parcialmente encobertas pela discussão das teses do historicismo filosófico e jurídico.
O hiato é, em parte, explicado pela situação política dos países europeus. Depois da Revolução Francesa e das Guerras Napoleônicas, a Europa foi varrida pela tendência de restauração do Antigo Regime. A filosofia de Kant, fortemente ancorada na justificação da ciência e na liberdade, não servia tão bem os interesses da monarquia quanto o historicismo de Hegel. De modo que os problemas filosóficos semeados na Crítica da razão pura tiveram de aguardar a passagem da onda da restauração, a fim de receberem o merecido desenvolvimento.
Em meados do século XIX, isso começou a acontecer em grande intensidade, principalmente na Alemanha, com a formação das Escolas neokantianas de Marburgo e de Baden. Desde então, os problemas colocados por Kant passaram a dominar o panorama da Filosofia do Direito. Um dos pontos mais discutidos passou a ser o possível papel dos conceitos e formas a priori no conhecimento jurídico. Rudolph Stammler, cuja obra foi fruto da retomada do kantismo, teve o mérito de desenvolver o exame mais amplo e consciente desse problema, em todo o panorama recente da Filosofia do Direito.
Numa de suas obras principais, Stammler escreveu: “Todos os sistemas de Filosofia do Direito até agora conhecidos coincidem em tomar o conceito de direito como ponto de partida e em ver nele a unidade suprema para as discussões nesse campo [...] Sob a unidade desse conceito superior de direito, é possível formar-se toda uma disciplina científica, que não se reduzirá a informar-nos de um conteúdo de direito limitado ou a expor uma ordem jurídica determinada, antes oferecerá um sistema das condições necessárias de todo conhecimento jurídico possível” (STAMMLER, Rudolph. Economia y derecho. Madri: Editorial Reus, 1929. pp. 6-7).
Essas declarações desnudam o objetivo principal da obra de Stammler. Para dizê-lo em em poucas palavras, o que esse jusfilósofo pretende é estabelecer as “condições de possibilidade” do conhecimento jurídico, no sentido que a expressão tem em Kant. Condições de possibilidade, aqui, dizem respeito ao modo como o sujeito produz objetos jurídicos.
“Quando a doutrina jurídica tenta estabelecer dentro de que círculos e grupos humanos e por meio de que atos nasce o direito na História, propondo-se a desentranhar uma lei de evolução de alcance geral pela justaposição das formações de normas jurídicas acumuladas, ela tem de partir de um conceito qualquer de direito” (idem. p. 8). Não podem, os estudiosos, encontrar algo na História, se não sabem o que procuram. Analogamente, o homem comum não pode entender o direito, se não possuir, de antemão, a ideia geral dele. Portanto, o conceito de direito antecede o pensamento jurídico e é a priori.
Desse conceito a priori, Stammler deduz o que chama conceitos jurídicos fundamentais, que servem para articular logicamente a massa desordenada dos fenômenos jurídicos. Os conceitos ou categorias jurídicas fundamentais, em número de oito, podem ser combinados, de modo a formar conceitos jurídicos fundamentais derivados. Tanto o conceito geral de direito quanto as categorias e os conceitos derivados delas são puros, por resultarem de dedução a priori.
Ao lado do conceito de direito e do rol de outros conceitos que descendem dele, Stammler coloca a ideia de direito, que identifica com a justiça. Como o direito, a justiça também é formal, não tem conteúdo determinado e sim variável. Justiça é o conjunto de condições em que a liberdade de um pode ser coordenada com a dos outros, em sociedade.
Giorgio del Vecchio
Del Vecchio aplaudiu a teorização do direito de Stammler (DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 2ª ed., Coimbra: Arménio Amado, 1951. pp. 195-196). E tratou de ecoá-la ao afirmar que a noção de direito “é meramente formal: não é uma norma, nem uma proposição jurídica, pois em tal caso teria conteúdo particular e careceria de universalidade [...] Em vez disto, é, porém, um elemento que em todas as proposições jurídicas entra uniformemente, caracterizando-as do mesmo modo, qualquer que seja o conteúdo delas. Em relação a este, permanece indiferente, adiáforo. Por outras palavras: a forma lógica não nos diz aquilo que é justo ou injusto, mas diz-nos só qual é o sentido de qualquer afirmação sobre o justo ou o injusto. É, em suma, a marca da juridicidade” (idem. p. 234).
Tanto Stammler como del Vecchio recorreram ao kantismo para relançar o direito natural, isto é, para apresentar essa antiga doutrina de uma maneira inteiramente nova. Ambos tiveram sucesso limitado nessa empreitada. Goffredo foi um dos que melhor demonstraram por quê. Com sua pesada formação tomista e a predileção que o marcava pela teoria das quatro causas de Aristóteles, o mestre das Arcadas declarou que “causa espécie, na teoria do Formalismo Jurídico [de Stammler e del Vecchio], a afirmação de que a noção do direito há de ser exclusivamente formal. Pois é evidente que esta asserção acarreta, por força, a amputação de uma parte essencial do conceito do direito, porque, como é óbvio, o perfeito conhecimento de uma essência inclui, além do conhecimento de sua causa formal, o de suas outras causas, quais sejam, a eficiente, a final e, principalmente, a material” (TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito. São Paulo, 1954. Vol. I, p. 202).
O conceito de forma, em Kant, não coincide com o de Aristóteles. Pode parecer que Goffredo desliza ao misturá-los. Mas ele próprio esclarece, páginas adiante: “Bem sei que a Escola do Direito Formal de conteúdo variável emprega o termo forma, não no sentido clássico, mas no sentido kantiano” (idem. p. 206). O problema da teorização de Stammler e del Vecchio, portanto, como Goffredo a avalia, é se desgarrar, ao mesmo tempo, dos conceitos de forma de Aristóteles e de Kant.
Aristóteles chamou forma ou causa formal aquilo que nos permite identificar uma matéria como certo objeto. Assim, o mármore de uma estátua é a sua matéria, ao passo que Sócrates é a forma que o escultor dá ao mármore. Kant também opõe a forma à matéria, mas o faz com vistas a descrever o conhecimento humano. Para ele, a matéria do conhecimento são os dados dos sentidos; forma é o instrumento de que o sujeito se vale para criar objetos com aquela matéria.
Goffredo teve a perspicácia de perceber que a forma invariável do direito a que Stammler e del Vecchio aludem não corresponde ao conceito aristotélico, pois “em todas as coisas (e, portanto, também no direito), o único elemento variável é exatamente a forma, e nunca a matéria” (idem. p. 203). Goffredo exemplifica com “o ouro do anel e o ouro da moeda”, que “constituem sempre a mesma invariável matéria; mas, como forma, o mesmo ouro pode assumir a disposição de anel, ou a disposição de moeda, ou a de qualquer outra coisa” (idem. p. 204). E conclui: “Ou nosso conceito de direito se refere sempre à mesma invariável matéria, seja qual for sua forma (forma de direito civil, ou de direito penal; ou do Código de Hamurabi, ou do Corpus Juris ou da Constituição brasileira etc.), ou não sabemos a que nos referimos” (idem).
Mas, se não corresponde ao uso que Aristóteles deu ao termo, a forma de direito de Stammler e del Vecchio tampouco se ajusta ao conceito kantiano: “Como lembra Poggi, o conceito do direito não pode ser considerado, propriamente, uma forma no sentido com que Kant empregou esta palavra. Pois, para Kant, como verificamos, os conceitos em geral não são formas, mas sim produtos do entendimento, isto é, produtos da síntese operada pela espontaneidade do espírito. Esta síntese é que se realiza por meio de formas puras, a que Kant conferiu o nome de categorias” (idem. p. 208).
Forma a priori, em Kant, é, de fato, o instrumento utilizado pelo sujeito para reduzir uma multiplicidade de dados à unidade de uma percepção ou de um conceito. Portanto, a forma sempre trabalha sobre algo indistinto (a multiplicidade de informações) para gerar algo distinto (a percepção ou o conceito). E, ao fazê-lo, ela sempre cria objetos no sentido kantiano de que os torna cognoscíveis. O direito não é forma, porque não é usado para tornar cognoscível o que não o é. 
A conclusão de que a filosofia de Kant inspirou as mais significativas renovações da doutrina do direito natural, no nosso tempo, pode ser exemplificada, também, pela obra de Miguel Reale. Ele lembra que “criticistas, positivistas, pragmatistas etc. surgiram e surgem no mundo jurídico, coincidindo no reconhecimento de que não nos é dado conhecer senão o direito que se revela na História e indagar de suas condições de possibilidade. Para os adeptos de uma solução inspirada em Kant, tais condições são de caráter lógico-transcendental, como formas a priori que tornam a experiência jurídica possível [...] Todos [criticistas, positivistas, pragmatistas etc.] repelem, no entanto, a ideia de um Direito Natural transcendente, anterior à positividade jurídica e superior a ela, lógica e ontologicamente bastante a si mesma, embora possa ser aceita por alguns – como é o caso dos neocriticistas e dos neorrealistas – a ideia de um Direito Natural transcendental” (REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed., São Paulo: Saraiva, 1991. pp. 170-171).
Para melhor esclarecer o sentido do direito natural transcendental a que apenas se referiu na passagem acima, Reale escreveu Direito Natural/ direito positivo, em que lemos: “O Direito Natural é o grande envolvente ou o horizonte histórico-cultural da experiência [jurídica], na medida em que esta é pensada no seu todo e no seu fundamento. Note-se que não digo na medida em que é conceituada, porque o conceito, como ponto culminante de um juízo verificado ou verificável, não se coaduna com a ideia do Direito Natural, empregando eu, neste passo, a distinção essencial de Kant entre conceito e ideia” (REALE, Miguel. Direito Natural/ direito positivo. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 9).
Não é, o direito natural, transcendente ou divino. É transcendental, no sentido que Kant deu a essa palavra. Corresponde a uma ideia, não a um conceito verificado ou verificável. Como ideia, o direito natural não traduz algo real; é um objeto ideal: o próprio território da experiência jurídica possível.
Essa ideia de direito natural é uma forma? A resposta deve ser sim, pois, além das duas formas da sensibilidade (o espaço e o tempo) e das doze do intelecto (as categorias), que mencionei no texto anterior, Kant se referiu a três formas da razão (Deus, o mundo e a alma) entendida como o próprio intelecto nos momentos em que vai além da experiência possível (REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 1990. Vol. 2, p. 898).
Como Stammler e del Vecchio atribuem ao conceito de direito e a outros conceitos a função de formas a priori, Reale faz o mesmo com o direito natural, que considera uma ideia ou forma da razão quando tende aos limites da experiência jurídica possível. Mas, se o conceito de direito não é uma forma e sim um produto das formas do intelecto, a ideia de direito natural não é diferente. Ela tampouco é uma forma da razão, mas um produto do intelecto.
En passant, Goffredo sugere que conceitos como esses, insistentemente apresentados como formas a priori, na verdade, indicam a matéria das representações jurídicas. Ele emprega a palavra matéria no sentido aristotélico de substância ou relações substanciais. Se o conceito de direito e o de direito natural não são formas, não indicariam em vez disso relações substanciais invariáveis num número enorme de representações jurídicas: planos inteiros das relações intersubjetivas? O velho conceito aristotélico de matéria não nos faculta um insight dessas relações que chega a ser superior ao propiciado pela noção kantiana de forma? São perguntas interessantíssimas, mas que permanecem por responder.

A falta de resposta sugere-me tanto o perigo de negar o conceito de direito natural quanto o de reinventar o conceito, como fazem certos seguidores de Kant, sem superar realmente o problema da sua formulação. Como deve, o direito natural, ser formulado? Qual é a sua estrutura lógica? Repousa o conceito na distinção clássica entre matéria e forma ou na noção kantiana de forma? Dependendo da profundidade da reflexão sobre essas perguntas, chegaremos a uma ou outra posição sobre o problema multissecular do direito natural. Essa variabilidade de posições é inteiramente bem-vinda. É mesmo própria da ciência. O que não lhe é próprio é o impasse, é a suspensão indefinida da reflexão sobre tais questões. É, enfim, a tentativa de desenvolver uma superciência com abstração de sua questão filosófica mais cruciante.