Rudolph Stammler |
O hiato é, em parte, explicado pela
situação política dos países europeus. Depois da Revolução Francesa e das Guerras
Napoleônicas, a Europa foi varrida pela tendência de restauração do Antigo
Regime. A filosofia de Kant, fortemente ancorada na justificação da ciência e na
liberdade, não servia tão bem os interesses da monarquia quanto o historicismo de
Hegel. De modo que os problemas filosóficos semeados na Crítica da razão pura tiveram de
aguardar a passagem da onda da restauração, a fim de receberem o merecido desenvolvimento.
Em meados do século XIX, isso
começou a acontecer em grande intensidade, principalmente na Alemanha, com a
formação das Escolas neokantianas de Marburgo e de Baden. Desde então, os problemas
colocados por Kant passaram a dominar o panorama da Filosofia do
Direito. Um dos pontos mais discutidos passou a ser o possível papel dos
conceitos e formas a priori no conhecimento
jurídico. Rudolph Stammler, cuja obra foi fruto da retomada do kantismo, teve o
mérito de desenvolver o exame mais amplo e consciente desse problema, em todo o
panorama recente da Filosofia do Direito.
Numa de suas obras principais,
Stammler escreveu: “Todos os sistemas de Filosofia do Direito até agora
conhecidos coincidem em tomar o conceito de direito como ponto de partida e em
ver nele a unidade suprema para as discussões nesse campo [...] Sob a unidade
desse conceito superior de direito, é possível formar-se toda uma disciplina
científica, que não se reduzirá a informar-nos de um conteúdo de direito
limitado ou a expor uma ordem jurídica determinada, antes oferecerá um sistema
das condições necessárias de todo conhecimento jurídico possível” (STAMMLER,
Rudolph. Economia y derecho. Madri:
Editorial Reus, 1929. pp. 6-7).
Essas declarações desnudam o objetivo
principal da obra de Stammler. Para dizê-lo em em poucas palavras, o que esse jusfilósofo pretende é estabelecer as “condições de possibilidade” do conhecimento jurídico,
no sentido que a expressão tem em Kant. Condições de possibilidade, aqui, dizem
respeito ao modo como o sujeito produz objetos jurídicos.
“Quando a doutrina jurídica tenta
estabelecer dentro de que círculos e grupos humanos e por meio de que atos
nasce o direito na História, propondo-se a desentranhar uma lei de evolução de
alcance geral pela justaposição das formações de normas jurídicas acumuladas, ela
tem de partir de um conceito qualquer de direito” (idem. p. 8). Não podem, os estudiosos,
encontrar algo na História, se não sabem o que procuram. Analogamente, o homem comum não pode entender o direito, se não possuir, de antemão, a ideia geral dele. Portanto, o conceito de direito antecede
o pensamento jurídico e é a priori.
Desse conceito a priori, Stammler deduz o que chama conceitos jurídicos
fundamentais, que servem para articular logicamente a massa desordenada dos
fenômenos jurídicos. Os conceitos ou categorias jurídicas fundamentais, em número de oito, podem
ser combinados, de modo a formar conceitos jurídicos fundamentais derivados.
Tanto o conceito geral de direito quanto as categorias e os conceitos derivados delas
são puros, por resultarem de dedução a
priori.
Ao lado do conceito de direito e do rol de outros conceitos que descendem dele, Stammler coloca a ideia de
direito, que identifica com a justiça. Como o direito, a justiça também é
formal, não tem conteúdo determinado e sim variável. Justiça é o conjunto de condições
em que a liberdade de um pode ser coordenada com a dos outros, em sociedade.
Giorgio del Vecchio |
Del Vecchio aplaudiu a teorização do
direito de Stammler (DEL VECCHIO, Giorgio. Lições
de Filosofia do Direito. 2ª ed., Coimbra: Arménio Amado, 1951. pp.
195-196). E tratou de ecoá-la ao afirmar que a noção de direito “é meramente
formal: não é uma norma, nem uma proposição jurídica, pois em tal caso teria
conteúdo particular e careceria de universalidade [...] Em vez disto, é, porém,
um elemento que em todas as proposições jurídicas entra uniformemente,
caracterizando-as do mesmo modo, qualquer que seja o conteúdo delas. Em relação
a este, permanece indiferente, adiáforo. Por outras palavras: a forma lógica
não nos diz aquilo que é justo ou injusto, mas diz-nos só qual é o sentido de
qualquer afirmação sobre o justo ou o injusto. É, em suma, a marca da
juridicidade” (idem. p. 234).
Tanto Stammler como del Vecchio
recorreram ao kantismo para relançar o direito natural, isto é, para apresentar
essa antiga doutrina de uma maneira inteiramente nova. Ambos tiveram sucesso
limitado nessa empreitada. Goffredo foi um dos que melhor demonstraram por quê.
Com sua pesada formação tomista e a predileção que o marcava pela teoria das
quatro causas de Aristóteles, o mestre das Arcadas declarou que “causa espécie,
na teoria do Formalismo Jurídico [de Stammler e del Vecchio], a afirmação de
que a noção do direito há de ser exclusivamente formal. Pois é evidente que
esta asserção acarreta, por força, a amputação de uma parte essencial do
conceito do direito, porque, como é óbvio, o perfeito conhecimento de uma
essência inclui, além do conhecimento de sua causa formal, o de suas outras
causas, quais sejam, a eficiente, a final e, principalmente, a material” (TELLES
JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito.
São Paulo, 1954. Vol. I, p. 202).
O conceito de forma, em Kant, não
coincide com o de Aristóteles. Pode parecer que Goffredo desliza ao misturá-los.
Mas ele próprio esclarece, páginas adiante: “Bem sei que a Escola do
Direito Formal de conteúdo variável emprega o termo forma, não no sentido
clássico, mas no sentido kantiano” (idem. p. 206). O problema da teorização de
Stammler e del Vecchio, portanto, como Goffredo a avalia, é se desgarrar, ao mesmo
tempo, dos conceitos de forma de Aristóteles e de Kant.
Aristóteles chamou forma ou causa
formal aquilo que nos permite identificar uma matéria como certo objeto. Assim, o mármore de uma estátua é a sua matéria, ao passo que Sócrates
é a forma que o escultor dá ao mármore. Kant também opõe a forma à matéria, mas
o faz com vistas a descrever o conhecimento humano. Para ele, a matéria do
conhecimento são os dados dos sentidos; forma é o instrumento de que o sujeito
se vale para criar objetos com aquela matéria.
Goffredo teve a perspicácia de perceber
que a forma invariável do direito a que Stammler e del Vecchio aludem não
corresponde ao conceito aristotélico, pois “em todas as coisas (e, portanto,
também no direito), o único elemento variável é exatamente a forma, e nunca a
matéria” (idem. p. 203). Goffredo exemplifica com “o ouro do anel e o ouro da
moeda”, que “constituem sempre a mesma invariável matéria; mas, como forma, o
mesmo ouro pode assumir a disposição de anel, ou a disposição de moeda, ou a de
qualquer outra coisa” (idem. p. 204). E conclui: “Ou nosso conceito de direito
se refere sempre à mesma invariável matéria, seja qual for sua forma (forma de
direito civil, ou de direito penal; ou do Código de Hamurabi, ou do Corpus
Juris ou da Constituição brasileira etc.), ou não sabemos a que nos referimos”
(idem).
Mas, se não corresponde ao uso que
Aristóteles deu ao termo, a forma de direito de Stammler e del Vecchio tampouco
se ajusta ao conceito kantiano: “Como lembra Poggi, o conceito do direito não
pode ser considerado, propriamente, uma forma no sentido com que Kant empregou
esta palavra. Pois, para Kant, como verificamos, os conceitos em geral não são
formas, mas sim produtos do entendimento, isto é, produtos da síntese operada
pela espontaneidade do espírito. Esta síntese é que se realiza por meio de
formas puras, a que Kant conferiu o nome de categorias” (idem. p. 208).
Forma a priori, em Kant, é, de fato, o instrumento utilizado pelo sujeito para
reduzir uma multiplicidade de dados à unidade de uma percepção ou de um
conceito. Portanto, a forma sempre trabalha sobre algo indistinto (a
multiplicidade de informações) para gerar algo distinto (a percepção ou o conceito). E, ao fazê-lo, ela sempre cria objetos no sentido kantiano de que os
torna cognoscíveis. O direito não é forma, porque não é usado para tornar cognoscível o que não o é.
A conclusão de que a filosofia de
Kant inspirou as mais significativas renovações da doutrina do direito natural,
no nosso tempo, pode ser exemplificada, também, pela obra de Miguel Reale. Ele
lembra que “criticistas, positivistas, pragmatistas etc. surgiram e surgem no
mundo jurídico, coincidindo no reconhecimento de que não nos é dado conhecer
senão o direito que se revela na História e indagar de suas condições de
possibilidade. Para os adeptos de uma solução inspirada em Kant, tais condições
são de caráter lógico-transcendental, como formas a priori que tornam a experiência jurídica possível [...] Todos
[criticistas, positivistas, pragmatistas etc.] repelem, no entanto, a ideia de
um Direito Natural transcendente, anterior à positividade jurídica e superior a
ela, lógica e ontologicamente bastante a si mesma, embora possa ser aceita por
alguns – como é o caso dos neocriticistas e dos neorrealistas – a ideia de um
Direito Natural transcendental” (REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed., São Paulo: Saraiva, 1991. pp.
170-171).
Para melhor esclarecer o sentido do direito
natural transcendental a que apenas se referiu na passagem acima, Reale
escreveu Direito Natural/ direito
positivo, em que lemos: “O Direito Natural é o grande envolvente ou o
horizonte histórico-cultural da experiência [jurídica], na medida em que esta é
pensada no seu todo e no seu fundamento. Note-se que não digo na medida em que
é conceituada, porque o conceito, como ponto culminante de um juízo verificado
ou verificável, não se coaduna com a ideia do Direito Natural, empregando eu,
neste passo, a distinção essencial de Kant entre conceito e ideia” (REALE,
Miguel. Direito Natural/ direito
positivo. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 9).
Não é, o direito natural,
transcendente ou divino. É transcendental, no sentido que Kant deu a essa
palavra. Corresponde a uma ideia, não a um conceito verificado ou verificável. Como
ideia, o direito natural não traduz algo real; é um objeto ideal: o próprio território da
experiência jurídica possível.
Essa ideia de direito natural é uma
forma? A resposta deve ser sim, pois, além das duas formas da sensibilidade (o
espaço e o tempo) e das doze do intelecto (as categorias), que mencionei no
texto anterior, Kant se referiu a três formas da razão (Deus, o mundo e a alma)
entendida como o próprio intelecto nos momentos em que vai além da experiência
possível (REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 1990. Vol. 2, p.
898).
Como Stammler e del Vecchio atribuem ao
conceito de direito e a outros conceitos a função de formas a priori, Reale faz o mesmo com o
direito natural, que considera uma ideia ou forma da razão quando
tende aos limites da experiência jurídica possível. Mas, se o conceito de direito não é
uma forma e sim um produto das formas do intelecto, a ideia de direito natural
não é diferente. Ela tampouco é uma forma da razão, mas um produto do
intelecto.
En
passant, Goffredo sugere que conceitos como esses, insistentemente apresentados
como formas a priori, na verdade, indicam
a matéria das representações jurídicas. Ele emprega a palavra matéria no
sentido aristotélico de substância ou relações substanciais. Se o conceito de
direito e o de direito natural não são formas, não indicariam em vez disso relações substanciais
invariáveis num número enorme de representações jurídicas: planos inteiros das
relações intersubjetivas? O velho conceito aristotélico de matéria não nos faculta
um insight dessas relações que chega a ser superior ao propiciado pela noção kantiana de
forma? São perguntas interessantíssimas, mas que permanecem por responder.
A falta de resposta sugere-me tanto
o perigo de negar o conceito de direito natural quanto o de reinventar o conceito,
como fazem certos seguidores de Kant, sem superar realmente o problema da sua
formulação. Como deve, o direito natural, ser formulado? Qual é a sua estrutura
lógica? Repousa o conceito na distinção clássica entre matéria e forma ou na
noção kantiana de forma? Dependendo da profundidade da reflexão sobre essas
perguntas, chegaremos a uma ou outra posição sobre o problema multissecular do
direito natural. Essa variabilidade de posições é inteiramente bem-vinda. É
mesmo própria da ciência. O que não lhe é próprio é o impasse, é a suspensão
indefinida da reflexão sobre tais questões. É, enfim, a tentativa de
desenvolver uma superciência com abstração de sua questão filosófica mais
cruciante.