A
criação dos répteis é narrada nos versículos 24 e 25 de Gênesis 1 nos seguintes
termos: “Disse também Deus: Produza a terra seres viventes, conforme a sua
espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos, segundo a sua
espécie. E assim se fez. E fez Deus os animais selváticos, conforme a sua
espécie, e todos os répteis da terra, conforme a sua espécie. E viu Deus que
isso era bom”.
Um dos pontos mais importantes para
a compreensão desses versos é o sentido da palavra espécie. Não é incomum ela ser entendida como se tivesse sido empregada no plural, porém, no hebraico, a palavra se
encontra no singular. Por isso, cada grupo de seres vivos mencionado no texto constitui uma espécie e não várias.
Isso muda bastante a interpretação, em relação à que nos é sugerida pelo emprego da palavra espécies, no plural. Se
estivesse escrito que Deus criou os animais domésticos e selvagens conforme
as suas espécies, teríamos de entender que ele criou todas as espécies desses
grupos. Mas não é isso que está afirmado e sim que Deus criou os animais
domésticos segundo a sua espécie, no singular, os selvagens conforme a sua
espécie e os répteis, também, de acordo com a sua única espécie.
O significado disso não pode ser
outro, a não ser que os animais domésticos formam uma espécie, no sentido
bíblico da palavra, os selvagens, uma espécie, e os répteis também uma
espécie. Felizmente, não é difícil estabelecer o sentido de cada uma dessas
espécies para os judeus, uma vez que só há uma classificação de animais na
Bíblia: a de Levítico 11, repetida em Deuteronômio 14:3-21. Não há informação
de que os judeus tenham usado qualquer outra classificação além
dessa, até muito tempo depois da redação do Novo Testamento.
Em Levítico 11:2-8, um grupo de quadrúpedes
é mencionado, que inclui o camelo, o arganaz, a lebre e o porco. O mesmo grupo
aparece em Deuteronômio 14:4-8, porém, além desses quatro animais, vários
outros são citados: o boi, a ovelha, a cabra, o veado, a gazela, a corça, a
cabra montês, o antílope, a ovelha montês e o gamo. Com exceção do arganaz e da
lebre, todos os outros são animais com quatro pernas grandes. Essa é a
principal característica anatômica do grupo. A outra é o fato de incluir
animais que têm a unha fendida e o casco dividido, além dos não plantígrados (que não andam sobre as plantas dos pés).
Alguns animais desse grupo são
domesticáveis, outros não. A cabra montês é descrita como não domesticável em
Jó 39:1-4. O veado, a gazela, a corça, o antílope e o gamo podem ser mantidos
em cativeiro, mas tampouco são domesticáveis. Esses são animais ditos selvagens. O
camelo, o boi e o porco, por sua vez, são domesticáveis. Embora não citados, o cão, o gato e
outros animais também estão incluídos nesse grupo. Portanto, os quadrúpedes bíblicos incluem tanto os animais
domésticos quanto os selvagens de Gênesis 1.
Saltemos os grupos que não nos
interessam diretamente, aqui, por não serem mencionados em Gênesis 1, assim
como os peixes e os insetos, claramente definidos em Levítico. As aves
mencionadas no quinto dia da criação também aparecem em Levítico como um grupo definido. E
os répteis são mencionados nos versos 29-30 e 43-44.
Assim, uma classificação completa
dos animais é fornecida em Levítico, incluindo um grupo de quadrúpedes
(domésticos e selvagens), um de peixes, um de aves, um de insetos e dois de
répteis. A base da classificação é o modo de locomoção dos animais: sobre
pernas, sobre o ventre, sobre pés, por meio de nadadeiras ou com asas. E, para
não restar dúvida de que cada grupo é tido como definido e estanque, cada qual possui um
critério de pureza ritual distinto: para os quadrúpedes, o critério é a
ruminação, a posse de unhas fendidas e casco dividido e o fato de não ser
plantígrado; para os peixes, são as barbatanas e escamas; para as aves é
pertencer a um rol definido de espécies consideradas puras; para os insetos, é ter
pernas traseiras mais compridas que as dianteiras.
Os grupos de répteis são dois e não
um, por motivos, a meu ver, também claros. O primeiro é o fato de nenhum dos animais dos versos 29 e 30 ser artrópode (miriápode, aracnídeo etc.). Os do versículo 42
(“tudo o que anda sobre o ventre, e tudo o que anda sobre quatro pés ou que tem
muitos pés”), ao contrário, são basicamente artrópodes. Portanto, do ponto de
vista anatômico, há tão boas razões para diferenciar os animais de 29 e
30 dos do versículo 42 quanto há para distingui-los dos quadrúpedes de 2 a 8.
Além disso, os critérios de pureza
dos grupos de 11:29-30 e de 11:42 são diferentes. Todos os integrantes do
primeiro grupo têm quatro pés, porém a maioria é considerada pura. Só oito espécies
são impuras. No segundo grupo, ao contrário, todos os seres de quatro pés ou
que têm muitos pés (miriápodes) são impuros. Por exclusão, só os que têm seis
pés (hexápodes) são considerados puros. Esses critérios tão bem diferenciados de pureza confirmam que tratamos de grupos distintos.
Ambos os grupos de répteis são
mencionados em Gênesis 8:19, que afirma
que “todos os animais, todos os répteis, todas as aves e tudo o que se move
sobre a terra” saíram da arca de Noé. O grupo de Levítico 11:29-30 são "todos os
répteis" mencionados em Gênesis 8:19; o de Levítico 11:42-43 é o composto por “tudo o que se
move sobre a terra”. De sorte que não há dúvida que a Bíblia e Gênesis, em
particular, referem-se a dois grupos de répteis e não somente a um.
No entanto, Gênesis 1:25 afirma que
Deus fez “todos os répteis da terra, conforme a sua espécie”. O termo espécie,
no singular, significa que apenas um dos grupos de répteis de Levítico 11 e de
Gênesis 8:19 foi criado no sexto dia. De novo, há pouca dúvida de que o grupo foi aquele do qual os artrópodes estão excluídos, já que, no quarto dia, Deus criou os luzeiros a fim de servirem “para sinais e para estações”. Plantas não se orientam por sinais emitidos por corpos celestes. Portanto,
a referência deve ser a algum animal terrestre. Como os marinhos
do quinto dia e os terrestres do sexto ainda não tinham sido produzidos, restam os artrópodes, aos quais a referência aos sinais e às estações parece ter sido feita. Portanto, eles já deviam existir no quarto
dia.
Por esses motivos, podemos concluir que apenas os seres do grupo dos répteis superiores de Levítico
11:29-30 foram feitos no sexto dia. De todos os pontos da teoria da criação que
tenho defendido na presente série, este é um dos mais decisivos, pois alude a um
número muito grande de formas de vida ("todos os répteis").
Com base na diferença entre os
verbos criar (em hebraico, bara) e
fazer (asah), que discutimos em outro
texto, sabemos que os seres criados não haviam existido antes, ao passo que os que foram feitos
em Gênesis 1, na verdade, foram recriados. Um dos motivos
desse entendimento é o fato de Gênesis 1:1-2:4 ter sido escrito com o propósito
de contar a história das origens, o que está manifesto não só na narrativa dos sete
dias como no versículo final da passagem, que afirma expressamente: “Esta é a gênese dos céus
e da terra” (Gn 2:4).
Como a opção do autor sagrado foi
narrar as origens por uma sequência de dias, estamos diante de duas e somente duas alternativas: se não admitirmos que houve recriação, mas apenas criação, os dias narrarão uma só sequência de atos divinos; porém, se
reconhecermos como válida a interpretação de que houve uma criação original e
uma recriação, teremos duas séries de atos originadores e não uma só. Nesse último caso, os dias serão aplicados em sequência
tanto à criação original quanto à recriação, com a única exceção do quinto e da
última parte do sexto dias, durante os quais Deus criou seres antes inexistentes.
Assim, a diferença entre criar e fazer é o
critério que nos permite compor a sequência em que a criação original se deu. Essa
sequência é constituída pelos quatro primeiros dias e pela primeira parte do
sexto. Quando a comparamos com a série de origens que a ciência descobriu, temos a seguinte situação:
Texto Bíblico
|
Origem dos Mesmos Itens Segundo a Ciência
|
1º dia (origem
da luz)
|
4,5 a 3,9
bilhões de anos atrás
|
2º dia (origem da
atmosfera, das nuvens e do oceano)
|
3,9 a 3,5
bilhões de anos atrás
|
3º dia (origem da
crosta terrestre, das ervas e árvores frutíferas)
|
3,5 bilhões a
360 milhões de anos atrás
|
4º dia (origem
dos luzeiros - desanuviamento da atmosfera)
|
360 milhões de
anos atrás
|
1ª parte do 6º
dia (origem dos animais terrestres)
|
360 milhões a
50 milhões de anos atrás
|
Como mostrei
detalhadamente em A hipótese de Darwin,
a tabela acima recorda que, de acordo com os dados científicos disponíveis, os
itens da criação original surgiram na exata sequência dos dias de Gênesis 1.
Claro que essa interpretação depende de entendermos os quatro dias e meio como
eras, mas essa é uma das traduções possíveis da palavra hebraica yom (dia),
o que também demonstrei no meu livro.
É
importante recordar, ainda, que a origem dos corpos celestes mencionada na
tabela consistiu no desanuviamento da atmosfera, após a colisão de um
meteorito com a Terra, há 360 milhões de anos. A colisão foi
com-provada pela descoberta, em 2013, de uma gigantesca cratera na
bacia de East Warburton, no sul da Austrália, com nada menos que 10 a 20 km de diâmetro.
O cientista Andrew Glikson, da Universidade Nacional da
Austrália, declarou que a queda desse asteroide provocou um "impacto
regional e mundial" (GLIKSON, Andrew. UOL
News. 20/02/2013, 19h32).
Esse evento
cataclísmico marca o momento em que a obra do quarto dia ocorreu. O período dos
répteis começou não muito depois, do ponto de vista da escala geológica de
tempo. Assim,
além dos itens cuja origem está mencionada na tabela (luz, atmosfera etc.),
temos de situar a criação de "todos os répteis" entre 360 milhões e
50 milhões.
Felizmente, a época da origem
desse grande número de formas de vida pode ser obtida na Wikipedia. De 123
famílias de animais com as características dos répteis de Gênesis 1:24-25 e
Levítico 11:29-30 que pude pesquisar nessa fonte, 92 se originaram entre 360 e
50 milhões de anos atrás, somente cinco surgiram depois, nenhuma antes. Sobre
26 famílias não são fornecidas informações.
Isso
significa que temos 92 outras localizações corretas de grupos de seres vivos,
além das compreendidas na tabela. Para formarmos uma noção, ainda que
grosseira, do que isso significa, basta considerarmos quantas combinações
desses 92 itens com os demais mencionados nos quatro dias e meio são possíveis.
O link http://matematica2.no.sapo.pt/
12ano/Matemilhoes2.htm nos
ajuda a estimar esse número, pois calcula quantas combinações de apostas a
partir dos 49 números da loteria conhecida como Totoloto são possíveis. A
resposta é 13.983.816.
O
cálculo é simples. Para ganhar no Totoloto, um apostador precisa acertar a
combinação de seis dos 49 números incluídos no sorteio. Não é necessário
acrescentar que a chance de alguém acertar a combinação “certa” é quase zero,
pois, do contrário, a loteria não existiria por absoluta falta de meios para
pagar os prêmios.
Que
dizer das /92 famílias de seres vivos localizadas corretamente em Gênesis 1?
Na realidade, a escolha dos grupos de seres vivos que compõem a sequência
bíblica é muito mais improvável do que a dos números da loteria, já que 92 não
é o número de opções das quais devemos escolher as que integrarão a sequência
de seres vivos. As 92 famílias de répteis estão para a sequência bíblica como
os seis números sorteados estão para a Totoloto. Portanto, o número de opções
das quais devemos retirar as 92 famílias é muito maior. Ele é igual ao número
total de famílias de seres vivos que o homem antigo conhecia. Portanto, além
das 92 famílias de répteis, precisamos considerar as de plantas, de árvores, de
peixes, de artrópodes etc. que eram do conhecimento do homem antigo.
O
número de famílias desses outros grupos é muito maior que o de répteis, o que
aumenta a dificuldade de acertar a sequência correta de itens. Se a sequência
correta contém 92 itens (na verdade, tem mais de 100, pois inclui também os
seres inanimados), o universo do qual elas foram retiradas é muito maior.
Certamente, inclui milhares de combinações diferentes de famílias de seres
vivos que podiam ter sido mencionadas em lugar da que encontramos no texto bíblico.
Quantas
formas de peixes diferentes, quantos insetos, quantos artrópodes os antigos
conheciam? A verdade é que não sabemos. Porém sabemos que eram
muitíssimas. Quantos peixes, insetos e outros artrópodes conhecia Aristóteles,
que escreveu uma História dos
animais com centenas de
páginas, em que se refere um sem-número de seres vivos? Quando menciona “todos
os répteis” e outros grupos de animais, a Bíblia não parte de um conhecimento
muito inferior ao de Aristóteles, por um motivo simples: a necessidade de
separar animais limpos de impuros foi levada a tal ponto, em Israel, que os
judeus foram constrangidos a criar uma classificação extremamente abrangente e
rigorosa dos animais para os padrões da Antiguidade.
Esse
é um ponto importantíssimo. Sabemos por incontáveis testemunhos históricos que
a necessidade de separar animais puros de impuros deixou de ser apenas religiosa
para se tornar uma das bases da convivência social em Israel. Por isso, os
judeus criaram a ampla classificação de animais puros e impuros que encontramos
em Levítico e Deuteronômio e que é repetida, com certa rigidez, ao longo de
toda a Bíblia. É fundamental perceber que o único modo de um judeu decidir se um
animal era puro ou impuro era criar uma classificação abrangente como eles
fizeram. Por isso, por volta da época do Exílio babilônico, quando os judeus
foram expostos a uma alimentação diferente daquela a que estavam habituados,
deixou de ser concebível que a tábua de seres vivos da sua Lei não incluísse,
ao menos, alguns milhares de animais.
Assim, somos forçados concluir que, quando Gênesis 1 se refere aos grandes grupos de seres vivos, tais como ervas, árvores, aves e quadrúpedes, sem a palavra todos(as), a origem dos próprios grupos é mencionada. Porém, quando o versículo 25 alude a todos os répteis, algo diferente é implicado. A alusão não é ao grupo geral dos répteis, ou seja, à primeira espécie dele que veio a existir, mas a todas as espécies de seres compreendidas no grupo. Isso faz uma grande diferença, pois adiciona centenas e não apenas uma forma de vida à sequência bíblica.
Assim, somos forçados concluir que, quando Gênesis 1 se refere aos grandes grupos de seres vivos, tais como ervas, árvores, aves e quadrúpedes, sem a palavra todos(as), a origem dos próprios grupos é mencionada. Porém, quando o versículo 25 alude a todos os répteis, algo diferente é implicado. A alusão não é ao grupo geral dos répteis, ou seja, à primeira espécie dele que veio a existir, mas a todas as espécies de seres compreendidas no grupo. Isso faz uma grande diferença, pois adiciona centenas e não apenas uma forma de vida à sequência bíblica.
Por
tudo isso, o mais importante para entendermos as chances de menção da
sequência correta de origens não é o número de seres vivos citados,
efetivamente, em Gênesis 1, mas o número de seres conhecidos pelos antigos
judeus. Só esse número permite termos uma ideia realista do grau de dificuldade
envolvido em compor as sequências da criação e da recriação. É espantoso que
esse número não seja 49, nem 92, mas milhares! E que desse número tenhamos de
retirar não apenas um que foi colocado na posição correta da sequência de
origens, mas 92!
Não
é fácil entender corretamente o paralelo entre a sequência de origens de
Gênesis e o Totoloto. Como a estrutura da sequência não é composta só pelos
répteis do sexto dia, mas por todos os itens que se originaram nos outros dias,
colocar um grupo de répteis no lugar correto dessa se-quência corresponde a
acertar a Totoloto uma vez. Logo, colocar os 92 grupos nos lugares certos
equivale a acertar 92 vezes consecutivas. Sem esquecer, é claro, que a Totoloto
sorteia 6 números dentre 49, ao passo que os 92 grupos de répteis foram
escolhidos dentre centenas ou mesmo milhares.
Sentemos
e arrazoemos com toda calma: quantas combinações de centenas ou milhares de
números inteiros são possíveis? Podemos até calcular, mas será debalde: não
temos a menor noção da diferença entre um simples milhão e esse número
desafiadoramente elevado. As ordens de grande-za envolvidas são tais que não
somos capazes de compreender qual é, exatamente, a magnitude do acerto na
escolha sequência de origens em Gênesis 1.
Terminamos?
Ainda não. Temos de considerar ainda outras coisas que fazem aumentar o número
de combinações possíveis de itens criados e feitos. Os resultados dos sorteios
da Totoloto ou da Megasena são considerados apenas enquanto conjuntos de
números. A tarefa de escolher a sequência certa de origens é muito mais
complexa. Na verdade, é infinitamente mais complexa, pois, além de escolher os
itens certos dentre milhares de outros, é preciso localizá-los numa estrutura
de tempo, já que os seres vivos não foram criados em uma semana, nem em um mês.
Não será de proveito algum colocarmos a sequência certa nos lugares errados da
linha do tempo. Somente a sequência certa nos lugares certos será de proveito.
Dirão
que a sequência bíblica não é datada. Que a Bíblia se limita a colocar os itens
criados uns após os outros, sem localizá-los aqui ou ali no tempo.
Acrescentarão que só a sequência científica é datada. Concordarei em parte. A
sequência científica é realmente datada, mas em lugar ne-nhum de Gênesis está
escrito que a bíblica é atemporal. Mais do que isso: a implicação é de que ela
se ajusta à linha do tempo de uma só maneira dentre infinitas possíveis.
Quero
dizer que a mesma sequência pode ser vista diferentemente, conforme a
estiquemos mais ou menos na linha do tempo. De quantas maneiras distintas
podemos enxergá-la? Sob quantas variações cronológicas podemos concebê-la? De
infinitas maneiras e sob infinitas variações, já que o tempo e os números são
infinitos. No entanto, a pretensão do texto bíblico não é afirmar que qualquer
uma das infinitas maneiras e das infinitas variações da sequência no tempo é
a verdadeira. A pretensão é afirmar que uma só maneira e uma só variação é a
correta.
Isso
implica que, à medida que um único fato (por exemplo, a origem dos oceanos) for
identificado com um acontecimento específico na linha do tempo, a localização
de cada um dos outros ficará fixada, necessariamente, antes ou depois
dele. Esse método não nos leva a qualquer distribuição da sequência bíblica no
tempo. Leva-nos a uma localização específica. Assim, quanto mais
identificarmos os enunciados de Gênesis com fatos da História Cósmica, mais
rígida a sequência ficará, no tocante ao seu significado crono-lógico. Como o
tempo é infinito, a escolha da sequência certa de origens tende, desse modo, a
se identificar com um número dentre infinitos outros.
Essa
me parece a maneira mais correta de ex-trair o significado da sequência de
origens de Gênesis. Façamos, porém, uma concessão a mais ao ceticismo. Digamos
não estar claro se a sequência correta de origens foi sacada dentre infinitas
outras possíveis, mas que essa é apenas uma hipótese. Ficamos, assim, com duas
maneiras de estimar a dimensão do acerto da sequência correta. Uma maneira
consiste em considerar que ela dispõe uma centena de itens dentre milhares de
outros que poderiam ter sido citados, já que os judeus conheciam milhares de
grupos de seres vivos. O número de combinações de milhares de itens é
altíssimo, porém finito. Por outro lado, podemos considerar que a intenção de
colocar cada ato de criação em paralelo com um evento cósmico permite entender
que, ao realizar os paralelos corretamente, a sequência distribui os itens numa
seção cada vez mais restrita do tempo infinito. Com isso, a chance de composição
da sequência correta por acaso deve ser avaliada como um sobre um número
infinito.
Que
diferença faz, para uma ciência não alienada da práxis, um número entre
milhões de milhões de outros e um número entre infinitos outros? As chances de
escolha casual dos dois números não são iguais para todos os fins relevantes à
existência do homem na Terra? E o uso que aqui fizemos da empiria aliada à matemática, para demonstrar as duas
probabilidades, não é um método válido de demonstração científica? Por que não
poderíamos chegar, por esse método, a estabelecer um fato?
Que
é um fato? A criação é um fato? E a evolução? Em A hipótese de Darwin, admiti
que ela o é e que a criação foi considerada por Darwin uma hipótese. Não é o
caso de considerarmos que a hipótese foi confirmada?
No
século IV d. C, Hilário de Poitiers expressou a diferença não apenas
lógica, mas existencial que existe entre acreditar que o mundo é obra do acaso
e que ele foi criado por Deus: "Não seria digno de Deus fazer participar
do conselho e da prudência [isto é, atribuir dotes racionais], nesta vida, o
homem [...] de tal sorte que aquele que não existia apenas seria trazido a este
mundo para deixar de existir. Pelo contrário, deve entender-se que a única
razão de ser de nossa criação está em que o que não era começasse a ser, e não
em que o que começou a ser deixasse de existir (POITIERS, Hilário de. Tratado sobre a Santíssima Trindade. São Paulo: Paulus, 2005. p. 31).
É
possível ignorar tão grande diferença? Ignorar que a descrença produz o
incôngruo de um ser que aspira à imortalidade pelos seus dotes racionais
existir apenas para deixar de existir? Não é mais racional pensar, com Hilário,
que fomos amorosamente criados por Deus para que por ele tenhamos acesso à
imortalidade?