É incrível, mas aos olhos do mundo o Brasil ainda se confunde tanto com o futebol ou, quando muito, com o futebol e as mulheres. Metade do globo nos vê assim; a outra simplesmente não nos vê. E eis-nos próximos de uma Copa do Mundo, a ser disputada no país do futebol. Um pouco de realismo fará concluir que isso significa sermos exibidos e transmitidos como nunca para todo o planeta. Via Internet, no celular e no computador, pela televisão, na mídia impressa, enfim por todos os meios, seremos representados, de novo e até enjoar, como futebol.
O show já começou e não só sob a forma de preparativos para a Copa ou de tentativas de direcionar a influência que ela irá exercer sobre a economia, a política e as eleições, mas também nos protestos e manifestações de rua que a acompanham e deverão continuar a acompanhá-la. A relação do torneio com a política foi antecipada, no ano passado, quando a Copa das Confederações foi aqui disputada num ambiente de intensas manifestações populares.Na superfície, é claro, as manifestações daquela época questionaram a Copa, assim como os protestos de hoje o fazem. Porém, num nível mais profundo, o antagonismo com a Copa não me parece tão óbvio, se é verdade que nos vemos como a pátria de chuteiras. Pelo contrário, se a nossa identidade tem especial relação com o esporte e o futebol em particular, é preciso suspeitar se as manifestações, combatendo embora a Copa, não reafirmam dialeticamente nossa autoimagem de país da bola, cujo coroamento é de certa forma o torneio. Sobre esse tema, pretendo deter-me um pouco no presente artigo.
A simultaneidade da Copa e das manifestações de meados de 2013 não foi casual. Foi consequência do modo como nos vemos e que guarda estranha semelhança com aquele como nos veem lá fora. Dizem que as manifestações do ano passado foram mais espontâneas e que as de hoje são mais manipuladas por grupos e movimentos sociais. Isso é em parte verdade, mas, se considerarmos a relação das manifestações do ano passado e deste ano com a nossa identidade esportiva, teremos de admitir que a espontaneidade prossegue, vai muito bem, obrigado, já que, no Brasil, as coisas emanam, sim, e naturalmente, do futebol.
Há nisso espontaneidade. Mas há, ao mesmo tempo, inculcação. A imagem que se conserva do Brasil, lá fora, como país do futebol e de mulheres seminuas, mais do que exagerada, é distorcida. Não representa as coisas como realmente são. E, por razões parecidas, a autoimagem que forjamos aqui e que nos leva a ligar tantas coisas ao futebol não é menos falsa, se não for até mais invertida. Não passa de uma imagem inculcada.
E, se o é, não há tanto espontaneísmo nas manifestações de rua. É claro que os protestos de junho e julho de 2013 tomaram forma nas redes sociais. Nesse sentido, eles foram descentralizados, mas não teriam sido o que foram se grupos e movimentos organizados não tivessem exercido o papel de catalisadores deles. Claro também que as organizações por trás dos protestos não só do ano passado como deste ano vão do extremo da criminalidade ao extremo oposto de movimentos sociais legítimos. Mas o que liga os extremos, entre outras coisas, é a tendência dos protestos de reforçar nossa falsa identidade de país do futebol, pela ligação umbilical com as Copas.
Somos o que fazemos e, se fazemos protestos tão associados ao futebol, é porque nos entendemos, sim, como país do futebol. Mas a simplificação que nos apresenta como o país da bola não é simples, nem verdadeira. É complexa e tão exagerada que distorce significativamente a realidade. Não somos nosso futebol, embora esse esporte revele tanto da nossa alma.
Mais do que isso, se as considerações acima fazem algum sentido, podemos identificar a atuação de dois fatores nas manifestações: o fator político, mais evidente, e o cultural, mais profundo. Prometi deter-me no segundo fator, mas nem por isso deixo de reconhecer o primeiro. Porém, o número de participantes nas manifestações do ano passado (864 mil, só durante a Copa das Confederações, de acordo com o Ministério da Justiça) já sugere que o fator mais profundo explica, em maior medida, a espontaneidade e a relação dos protestos com o futebol.
As práticas mais arraigadas a que a identidade nacional está associada são espontâneas e pouco relacionadas ao poder. É difícil imaginar que, sendo assim, o orgulho nacional autorize um verdadeiro protesto contra a Copa. Estou a sugerir que não há verdade nos protestos? De modo nenhum. Porém, a verdade deles não radica na contrariedade propriamente dita, mas nos graves problemas do país nas áreas de educação e saúde. Os protestos não exprimem tanto a contrariedade ao torneio mundial ou o desejo da maioria dos manifestantes de que os investimentos necessários à realização dele fossem canalizados à educação e à saúde. Tal desejo seria contrário à relação do nosso povo com o futebol. Por isso, não pode ser facilmente concedido. É de universal conhecimento que, em muitas áreas, o país gasta mais do que investiu para sediar a Copa. Não podemos duvidar de que a população tenha disso, ao menos, um conhecimento intuitivo. E, se o país gasta mais, por exemplo, em juros da dívida pública, por que não se organizam protestos contra a elevação da Selic em 0,25%? Por que não tivemos manifestações contra as consecutivas altas da taxa nesse percentual ou em outro ainda mais gravoso no último ano? Tudo isso indica que as manifestações contra a Copa são tão problemáticas quanto a própria identificação do país com o futebol.
Há fontes muito mais profundas da nossa cultura do que o futebol. A música é uma delas. Desconfio que, no Brasil, o futebol reflita maior influência e expresse mais a música do que o contrário. O samba e outros ritmos são, para nós, decisivos. Explicam tanta coisa. Se no século passado se discutia se o samba nasce no morro ou na cidade, podia-se debater, com igual propriedade, se o futebol vem de um ou de outro. Noel Rosa respondeu, com razão, que o samba não é privativo do morro ou da cidade. Pode-se afirmar outro tanto do futebol. Mas, mesmo assim, a pergunta sobre a fonte primária deles nunca foi descabida.
Vindo da cidade, do morro ou de outra parte, não importa, o futebol vem do samba, mais do que o samba procede dele. O Brasil é a sua música, num sentido mais fundamental do que é o seu futebol. Mesmo assim, percebem-nos e nos percebemos muito mais como futebol do que como samba.
Para Noel, o samba revestia a vida. Dava-lhe forma própria e original. Quem conceberia elogio tão belo e autoafirmativo quanto o que ele rasgou à Vila Isabel, em “Feitiço da Vila”? Sim, “tenho de dizer/ Modéstia à parte, meus senhores/ Eu sou da Vila”! A Vila e seu samba formam uma identidade que nada tem de bairrista. É antes movida pela grandeza do artista que exaltou Estácio, após ter exaltado a Vila. Não o ouvimos cantar, em “O X do problema” “Eu sou diretora da escola de Estácio de Sá/ E felicidade maior neste mundo não há/ Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema/ Ser estrela é bem fácil/Sair do Estácio é que é o X do problema”? Não escreveu “Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira/ Oswaldo Cruz e Matriz”?
O que há de espontâneo mesmo, no Brasil, é assim. Nasce do morro e da cidade, sob forma de música. E renasce depois, da música, sob outras formas, inclusive a do futebol. Toda uma autoimagem forma-se por esse processo. E, à diferença da outra, que nos assemelha e reduz ao futebol, essa segunda imagem é muito mais verdadeira, pois além de espontânea é inclusiva como o é nossa cultura.
O futebol, nos melhores momentos, é arte. Mas o é sem deixar de ser competição e exclusão. Ninguém torce para todos os times. Torce por um e exclui os demais. Não que isso esteja errado, mas não é muito digno da arte que o futebol chega a ser em seus momentos mágicos. Em alguns casos, a paixão exacerba a competitividade a tal ponto que o resultado é a pura violência e o querer o pior do pior para os outros times e seus torcedores.
Tive um amigo que era torcedor fanático da Ponte Preta. Porém, seu amor não o impedia de confessar que maior era o ódio que tinha pelo Guarani. Quantas vezes o ouvi bradá-lo! Dirão que as escolas e os morros se digladiam, por causa do samba? Mas a penetração da música é muito maior que a da bola e, mesmo assim, a violência é menor. O samba envolve muito mais gente que o futebol. “Quem nasce lá na Vila/ Nem sequer vacila ao abraçar o samba”. O genuíno samba é uma herança. A música conforma o morro. A bola não o faz tanto assim. Por décadas, as mulheres não iam aos estádios, no Brasil. As que iam, no mais das vezes, era para ganhar a vida vendendo sorvete ou o corpo.
Não estou a afirmar que somos só nossa música. Dou a música por exemplo do que somos. Podem incluir outros ritmos: a bossa nova, o forró, o baião, o frevo, o chorinho, tantos outros. Não é o caso de reduzir o ser brasileiro a qualquer dessas fontes da nossa cultura. Muito menos de entregar a redução assim alcançada à apropriação política, como chego a pensar que as manifestações de rua fazem. Mas cabe lembrar que certas fontes da nossa cultura têm peso maior do que outras.
O país do futebol não é uma criação da mídia? A palavra mídia quer dizer meio. É o que ela devia ser e, tantas vezes, realmente é. Quando bem exercida, a mídia é um meio não só de comunicação, mas de construção da realidade social. Porém, quando mal exercida, ela cria e propaga conceitos absurdos. O país do futebol é um deles. A força desse conceito é tal que o cremos verdadeiro. Vemo-nos como nos veem lá fora, isto é, falsamente.
A relação das manifestações de rua com a Copa seria positiva, se não reforçasse uma autoimagem distorcida. Se não fosse fruto da metamorfose do real que a mídia, às vezes, opera. A canção popular já o tinha captado, na simplicidade vadia que a tipifica. Quem não se lembra de “Notícia de jornal”, que Haroldo Barbosa e Luís Reis compuseram e Chico Buarque gravou nos anos 70? “Tentou contra a existência/ Num humilde barracão/ Joana de Tal, por causa de um tal João/ Depois de medicada/ Retirou-se pro seu lar/ Aí a notícia carece de exatidão/ O lar não mais existe/ Ninguém volta ao que acabou/ Joana é mais uma mulata triste que errou/ Errou na dose/ Errou no amor/ Joana errou de João/ Ninguém notou/ Ninguém morou a dor que era o seu mal/ A dor da gente não sai no jornal”.
Se Joana apenas tivesse amado outro João! Essa é a verdade da sua história: o erro de escolha e a dor que ele lhe trouxe. Ao deslizar sobre os fatos, a notícia deixa entrever um lapso mais profundo do que aquele em que incorre sobre eles: o erro consistente em retratar o acontecimento sem a dor.
Há uma crônica de Fernando Sabino com o mesmo nome da canção: “Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, 30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante 72 horas, para finalmente morrer de fome” Até aqui, a notícia. Não é ela ainda um erro, mas nem por isso é já uma verdade. Falta à notícia o esclarecimento, que o escritor lhe acrescenta: “O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome” (SABINO, Fernando. Notícia de jornal. Disponível em http://jcconcursos.uol.com.br/vip/Arquivos/"href=http://jcconcursos.uol.com.br/vip/Arquivos/">http://jcconcursos.uol.com.br/ vip/Arquivos/ProvaAnterior/12462.pdf).
Não há tantas obras, na nossa música e literatura, que se chamem “Notícia de jornal”. Não é coincidência que as que levam esse nome mostrem falhas de notícias. É proposital. Tanto a canção como a crônica são libelos. Quando deixa de ser meio e se torna um fim, a mídia altera a representação do mundo e faz as pessoas acreditarem que a realidade transfigurada é a verdadeira.
É diferente com a nova mídia? Com os blogs, as redes sociais e outros meios eletrônicos? Absolutamente não. Aliás, uma das novas e falsas representações que esses meios têm propagado consiste em afirmar que assumiram a direção da política, depois da Primavera Árabe. Meios nada dirigem: são dirigidos. Se as redes sociais têm servido para organizar manifestações e protestos, é enquanto meios que se dão a essa função, não como redes de inteligência artificial que receberam um sopro, viveram e passaram a governar o mundo.
Uma parte da sócio-cultura brota do solo. Outra parte a recobre como uma cúpula. A economia e as manifestações culturais (em geral, artísticas e religiosas) mais influentes costumam integrar o primeiro complexo. A ciência, os meios de comunicação, o direito e todo o restante compõem a superestrutura. Devemos desconfiar quando a imagem que uma sociedade forma de si ou de outra coletividade emana da superestrutura. Essa imagem é geralmente falsa.
Talvez a música exprima tão bem a alma do povo brasileiro, porque “ninguém aprende samba no colégio”. Não o disse Noel e, como de costume, tão bem? O samba é o regime que o morro impõe à tristeza, quando ousa desafiá-la. O que é ensinado nas escolas é bem outra coisa e tem outra gênese. Não nasce de baixo, vem de cima. Não procede do solo, mas da superestrutura. Precisa, por isso, ser tomado com muito maior reserva.
Ao imbróglio que a falsa representação nos prepara para junho tanta coisa se seguirá! Luta política, rua, quartel, eleições, tentativas em todos esses níveis de apropriação da ilusão para fins práticos. Felizmente, nem tudo no andar de cima é falso. A verdade tem a força incrível do que resiste aos golpes que lhe assestam para se reerguer e se impor ao final. Mas quão longe estará, a esta hora, o final?