domingo, 2 de março de 2014

A Torre de Babel (2): O Misterioso Ninrode

Tell Nimrud, na
Mesopotâmia Central
Werner Keller relata o esplendor da antiga cidade mesopotâmica de Ur, em termos que até hoje nos assombram: “Em nenhuma outra cidade da Mesopotâmia vieram à luz do dia habitações tão esplêndidas e confortáveis. Comparadas com elas, as habitações que se conservaram de Babilônia parecem pobres, miseráveis mesmo. O Professor Koldewey [...] só encontrou construções simples de barro, de um andar, com três ou quatro cômodos, em volta de um pátio aberto. Assim vivia também a população da tão admirada e louvada metrópole do babilônio Nabucodonosor. Os cidadãos de Ur, ao contrário, já 1.500 anos antes [2.100 a. C.], viviam em construções maciças em forma de vilas, a maioria de dois andares, com 13 a 14 cômodos. O andar inferior era sólido, construído de tijolos cozidos no forno, o de cima, de barro, as paredes caiadas de branco” (KELLER, Werner. E a Bíblia tinha razão – pesquisas arqueológicas demonstram a verdade histórica dos Livros Sagrados. 3ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958. p. 36).
Ur foi habitada por vários milênios. A cidade que Keller descreve foi uma delas: a que dominou boa parte da Mesopotâmia, após o meado do terceiro milênio. Foi a cidade que venceu a Acádia de Sargão e lhe arrebatou o controle de tantas regiões entre o Tigre e o Eufrates.
Porém, antes da ascensão de Ur e da própria Acádia, os sumérios dominaram a Mesopotâmia. Os nomes de reis dessa época são conhecidos de inscrições que foram desenterradas, após laboriosas escavações. Enadu, Entemena, Urukagina são alguns desses reis sumérios, cuja existência foi firmemente estabelecida.
Por duas razões, porém, os acontecimentos de Gênesis 1 a 11 não constam nos anais de reinos como a Suméria, a Acádia e a cidade-Estado de Ur, que dominaram os lugares em que eles transcorreram: primeiramente, porque foram fatos de pequena importância econômica, política e militar cuja memória logo se dissipou para a maioria das pessoas e povos; em segundo lugar, porque não estavam relacionados à identidade daqueles reinos, pelo contrário: contribuíam para questioná-la.
Em suma, a Pré-História Bíblica é uma micro-história. É o relato de pequenos acontecimentos, que se revestiram de importância extraordinária, do ponto de vista do culto ao único Deus. Mas nem por isso, as parábolas e os relatos a respeito de Adão e Eva, Caim, Abel, Noé e seus descendentes são incompatíveis com a História dos grandes impérios que conhecemos.
O primeiro elo de ligação entre a micro-história bíblica e a História da Mesopotâmia é, provavelmente, a figura de Ninrode. Gênesis 10 diz dessa grande e misteriosa personagem: “Cuxe gerou a Ninrode, o qual começou a ser poderoso na terra. Foi valente caçador diante do Senhor; daí dizer-se: Como Ninrode, poderoso caçador diante do Senhor. O princípio do seu reino foi Babel, Ereque, Acade e Calné, na terra de Sinear. Daquela terra saiu ele para a Assíria, e edificou Nínive, Reobote-Ir e Calá. E, entre Nínive e Calá, a grande cidade de Resém” (Gn 10:8-12).
Para os padrões literários da Pré-História Bíblica, que se centra quase inteiramente em Adão e Noé, os cinco versículos sobre Ninrode formam um relato longo e significativo. A começar porque o caçador Ninrode é descrito como o primeiro a se tornar poderoso na terra. Temos aqui, a primeira menção de um rei. Até porque a Escritura declara que “o princípio do seu reino foi Babel, Ereque, Acade e Calné”.
Essas cidades ficavam na faixa central da Mesopotâmia. Notem que Gênesis não afirma que Ninrode as construiu, mas que ele edificou uma série de outras cidades, no norte da Mesopotâmia, quais sejam: Nínive, Reobote-Ir, Calá e Resém. Curiosamente, Ninrode não é associado a Ur. Disso se extrai que ele não a construiu, nem a conquistou. Como Ur ficava no sul da Mesopotâmia, e o reino de Ninrode, no centro, devemos concluir que ele foi um rei local. As ruínas de Tell Nimrud, situadas perto de Bagdá, no centro da Mesopotâmia, podem constituir um testemunho físico da região a partir da qual ele expandiu seus domínios.
O fato de Ninrode ter construído Nínive, Reobote-Ir, Calá e Resém não implica que as tenha fundado. Gênesis narra a recolonização do norte da Mesopotâmia, após o Dilúvio. Se a arca de Noé pousou no Monte Ararate, que fica na Armênia, no extremo norte, a inundação de Gênesis 6 a 8 deve ter atingido, precisamente, a parte setentrional da Mesopotâmia. Assim, nada mais natural do que as cidades daquela região terem sido reedificadas e não construídas por Ninrode. Em Assur, Nínive e Calá, foram desenterradas cerâmicas de 5.000 a 3.000 a. C. (TOGNINI, Eneas. Geografia das terras bíblicas. São Paulo: Louvores do Coração, 1980. p. 59), o que confirma a sua anterioridade a Ninrode.
É útil lembrar os termos com que Josefo transmitiu a tradição dos judeus sobre esse ponto: “Ninrode, neto de Cão, um dos filhos de Noé, foi quem levou [os descendentes de Noé] a desprezar a Deus [...] Ele os persuadiu de que deviam unicamente ao seu valor, e não a Deus, toda a sua boa fortuna. E como ele aspirava ao governo e queria levá-los a escolhê-lo para seu chefe e deixar a Deus, ofereceu-se para protegê-los contra Ele (se Ele ameaçasse a terra com outro dilúvio), construindo uma torre para esse fim” (JOSEFO, Flávio. História dos hebreus. 5ª ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2001. p. 53). Essa passagem evoca tradições adicionais às de Gênesis sobre Ninrode. Os acréscimos parecem seguir o significado do nome da personagem, que em hebraico é ma-rádh, rebelar-se (www.wikipedia.org/nimrod).


Lutero demonstrou ter recebido essa antiga tradição, a respeito de Ninrode, pois escreveu: "Abraão, juntamente com seu pai e irmãos, era idólatra e não era justo diante de Deus, mas diante de Nimrod, cujo culto segui [...] A religião babilônica de Nimrod tinha uma belíssima aparência. Eles cultuavam a Deus sob o título de Luz, que é a melhor forma ou a [melhor] figura da majestade divina, haja vista que as próprias Sagradas Escrituras chamam Deus de Luz" (LUTERO, Martinho. Preleção sobre Gênesis. In Martinho Lutero – obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/ Concórdia, 2014. pp. 348-349).

A tradição transmitida por Josefo, que chegou até Lutero, provavelmente por intermédio dos grandes comentadores, parece ter-se originado do costume dos antigos orientais de atribuir outros nomes a pessoas de destaque, após a morte delas e de acordo com os feitos que realizaram. Essa é a razão de tantas personagens de Gênesis, como Jacó e Israel, terem nomes que refletem suas obras. É o que parece ter ocorrido com Ninrode, cujo nome lembra a rebelião que levou ao abandono do henoteísmo.
Alexander Hislop foi o mais erudito defensor da doutrina conhecida como pan-babilonismo. De acordo com ele, parte substancial dos cultos pagãos de todas as épocas originou-se de Babilônia e, particularmente, do culto prestado a Ninrode. Hislop, porém, reconheceu que "o significado do nome [dele é dado] na voz passiva, não como ‘o rebelde’, mas como ‘aquele contra quem se rebelaram’” (HISLOP, Alexander. The two Babylons. Chapter II, Section II, Sub-Section IV, p. 32).
Sabemos que Ninrode foi neto de Noé. Se considerarmos que Cuxe pode ter nascido poucos anos depois do Dilúvio, como Arfaxade, filho de Sem, é possível que Ninrode tenha alcançado a idade adulta cerca de 60 anos, contados a partir do Dilúvio. Isso nos remete a cerca de 2.610 a. C. Embora Eusébio, o historiador eclesiástico, tenha situado Ninrode, no tempo de Abraão (HISLOP, Alexander. Ob. cit. Chapter I, p. 6. Disponível em www. biblebelievers.com), ele deve ter vivido muito antes.
A localização do princípio do reino de Ninrode no centro da Mesopotâmia e a datação de sua vida, em meados do terceiro milênio a. C. constituem fortes argumentos a favor da ideia de que ele foi um rei sumeriano. Porém, terá sido um rei peculiar, já que a Suméria abrangeu o centro-sul da Mesopotâmia, enquanto Ninrode edificou cidades também ao norte.
Não é comum uma personagem ser inserida nas Escrituras somente em razão de seus feitos políticos. Se foi mencionado em Gênesis, Ninrode deve ter sido o pivô de importantes acontecimentos da História do culto ao Deus único. Seguindo as pegadas da tradição judaica, Hislop propôs que essa importância foi negativa: para ele, Ninrode foi o líder de uma rebelião contra o Deus único, que continuou e se disseminou pelo mundo após a sua morte. Vimos, porém, que o significado do nome Ninrode não é “o rebelde”, mas “aquele contra quem se rebelaram”. Por isso, ele pode não ter liderado rebelião alguma, mas sido derrubado ou vitimado por uma.Além de ter apontado a incongruência entre o significado hebraico do nome de Ninrode e a ideia de que ele teria sido um rebelde, Hislop lembrou que nossa personagem deve ter sofrido morte violenta (HISLOP, Alexander. Ob. cit. Chapter II, Section II, Sub-Section IV, p. 32), o que é compatível com a ideia de que uma rebelião foi movida contra ela. A ideia se coaduna com a afirmação bíblica de que Ninrode foi “poderoso caçador diante de Iahweh” (Gn 10:9). Em Gênesis 1 a 11, “diante de Iahweh” é uma expressão com significado positivo, assim como “invocar o nome de Iahweh” (Gn 4:26) e “andar com Deus” (Gn 5:22; 6:9). Não vejo por que interpretá-la em sentido negativo. E notem que a expressão “diante de Iahweh” é empregada como um resumo ou síntese da vida de Ninrode, o que ressalta ainda mais o valor positivo dela.
A atividade de caçador não é, em si, meritória. Mas o é, certamente, no contexto pós-diluviano em que o número de habitantes da região havia diminuído, e o de feras, aumentado proporcionalmente. E ainda mais se, depois do Dilúvio, Deus permitiu a Noé e seus filhos alimentar-se de carne (Gn 9:3). Situado, pois, no contexto da época, o ofício de caçador de Ninrode não só se revertia em benefício da população local como se baseava diretamente numa autorização de Deus.
Lembremos, por fim, que Ninrode reedificou Nínive, Reobote-Ir, Calá e Resém, arruinadas pelo Dilúvio e situadas fora dos seus domínios históricos. E admitamos que também isso aponta para um benfeitor de populações locais.
Tudo argumenta em favor de que a divinização de Ninrode não é, por certo, improvável. Santo Agostinho lembrou que os deuses gregos e romanos foram homens de grande destaque adorados pelos seus pósteros, após a morte: “A razão mais verossímil que se pode dar [para o politeísmo] é haverem os deuses sido homens e deverem à lisonja que os fez deuses as solenidades e os ritos que souberam compor segundo o espírito, o caráter, os atos e o destino de cada um deles” (AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus – contra os pagãos. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 1990. Livro Sétimo, Cap. XVIII. p. 279). E de novo: “Os deuses [...] é mais crível hajam sido homens, como dizem não apenas os escritos poéticos, mas também os históricos” (idem. Livro Sétimo, Cap. XXVII, p. 289).
Os escritos históricos a que Agostinho se referiu são obras, como as de Evêmero, que ele mencionou expressamente: “Não é verdade que todos deram aprovação a Evêmero, que escreveu, não com charlatanice mítica, mas de História em punho, haverem todos esses deuses sido homens e mortais?” Por isso, “nos escritos gentios não se encontram ou com dificuldade se encontram deuses que não hajam sido homens e não tenham, uma vez mortos, recebido honras divinas” (idem).
E exemplificou: “Telexião reinou sobre os siciões. Durante o seu reinado, houve paz e alegria em tal medida que, após sua morte, o povo passou a adorá-lo como deus, ofereceu-lhe sacrifícios e celebrou jogos [...] Após a morte de Foroneu, seu irmão mais jovem, Fego, construiu um templo sobre seu túmulo, no qual ele passou a ser adorado como deus [...] O nome da filha de Inaco foi mudado para Ísis, a partir de quando ela passou a ser adorada como uma grande deusa no Egito, embora alguns afirmem que Ísis foi uma rainha procedente da Etiópia” (AGOSTINHO, Santo. Ob. cit. pp. 538-539).
É provável que Agostinho tenha conhecido e aderido à opinião de Evêmero, por intermédio de Cícero, que divulgou as ideias daquele filósofo. Lemos, em Cícero, que "os fazendeiros romanos, ao descobrirem que as terras da Boécia eram isentas de tributo por serem consideradas propriedade dos deuses, sustentaram que ninguém que um dia foi humano pode-se tornar divino" (CÍCERO, Marco Túlio. De natura deorum. III, xix. p. 333). A alegação dos fazendeiros só foi possível, porque era admitido que os deuses haviam sido originalmente homens. Cícero prossegue: "Se estes [os deuses da religião pública] são divinos, não o são igualmente Erecteu e Codro? [...] É fácil perceber que, na maioria dos Estados, a memória de homens de valor foi santificada com honras divinas, a fim de promover a bravura e tornar as pessoas desejosas de arrostar perigos pela nação. Por isso, Erecteu e suas filhas foram divinizados em Atenas. Pela mesma razão, o sacrário de Leonático se encontra em Atenas. O povo de Alabanda presta culto a Alabando, fundador da cidade, com maior devoção do que a qualquer outra divindade" (idem).
Em suas leituras, Orígenes deve ter cumprido percurso semelhante de Agostinho, pois afirmou que a divinização de “Dióscuros, Héracles, Asclépio e Dioniso” era “uma crença grega” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. Livro I, 37.p. 220). A palavra divinização implica que, antes de terem sido deuses, Dióscuros, Héracles, Asclépio e Dioniso foram mortais, isto é, personagens históricas. Outro cristão erudito da Antiguidade, Tertuliano, também sustentou que os deuses pagãos foram homens (TERTULIANO. Apologético. Cap. 10). Trata-se, pois, de uma ideia disseminada, a partir de Evêmero, sob influência de Cícero.
Nem Cícero, nem Agostinho, Orígenes ou Tertuliano ignoravam o que Hermann Usener mais tarde mostrou, a saber: que, entre os deuses romanos, alguns eram considerados especiais e tratados à parte. Esses deuses não apareciam nas fontes literárias, mas em livros litúrgicos particulares. Usener provou que eles se originaram de tarefas do dia a dia, como o ato de semear, o de lavrar a terra e o de adubá-la com esterco. Mostrou ainda que os nomes desses deuses conhecidos por meio das fontes, como Proserpina e Promona, derivam de eventos cotidianos, no caso o aparecimento dos brotos (prosero) e a maturação dos frutos (poma). Chegou a propor, aliás, que os nomes dos deuses eram, em geral, derivados de atos ou fatos cotidianos (AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: UFMG, 2011. pp. 54-55).
A proposta se deve a um provável exagero, já que os autores antigos nunca excluíram a gênese humana dos deuses antropomórficos por causa da relação dos seus nomes a determinados fatos naturais. Cícero, por exemplo, escreveu na sua obra clássica sobre o tema: “Se o nome de Ceres deriva da sua fertilidade, a terra é uma deusa (como é, de fato, considerada, já que é idêntica à deusa Telos). E, se a terra é divina, o mar identificado com Netuno, os rios e as fontes também devem ser [...] Devemos refutar a teoria de que esses deuses, que são seres humanos deificados e constituem objeto da mais devota e universal veneração, não existem na realidade, mas apenas na imaginação. Primeiramente, os chamados teólogos enumeram três Júpiters, dos quais o primeiro e o segundo nasceram na Arcádia. O pai do primeiro foi Éter, que é considerado progenitor de Proserpina” (CÍCERO, Marco Túlio. De natura deorum. III, xxi. P. 337).
Vemos com que naturalidade Cícero, ao mesmo tempo, admite a relação dos nomes dos deuses com fatos naturais e a origem humana deles. Ele afirma que Proserpina, que Usener dá como exemplo de divindade especial, foi filha do grego Éter, originário da Arcádia. Portanto, o fato de alguns deuses receberem nomes de eventos da natureza, de modo nenhum afasta, a sua origem humana.
Evêmero foi um von Daniken mais crível e mais bem-sucedido. É difícil negar que as suas ideias expliquem o paganismo, em alguma medida. Não precisamos exagerá-las para concluir que Ninrode recebeu a apoteose pós-diluviana. É a mais provável explicação para a inclusão do relato sobre aquele descendente de Cão, num texto que marcha em direção a Abraão. Não há suficiente evidência de que Ninrode tenha sido um apóstata. Mas há grandeza bastante, em seus feitos, para tremermos ante a ideia de que eles podem ter sido exagerados até o ponto da divinização.
O homem nunca pensou de um modo distinto do esquema das divinizações. Só tornou o esquema maleável para assumir variadas cores, em situações também variadas. Para que Iahweh, se um bezerro basta como memória do Êxodo? Para que Deus, se uma torre que chega ao céu é capaz de livrar de dilúvios? A obsessão atual do homem é provar que fez Deus à sua imagem, mas tudo o que consegue é mostrar que faz sucessivos deuses e os troca uns pelos outros. Em vez de deuses, astronautas: por que não? Não há novidade alguma nisso. Exatamente como não há no fato de o homem contemporâneo se perguntar para que Jesus Cristo, se as suas mãos já plasmaram o seguro social.