Podemos tomar a Carta aos Romanos como uma mensagem que desceu à Terra do modo como uma folha desprende-se e cai de uma árvore, sem qualquer mediação da cultura humana. Durante milhões de anos, tantas folhas que se soltaram e caíram de árvores o fizeram pela mesma e única causa: a ação da força gravitacional. No entanto, não é assim com objetos culturais como palavras. A utilização de um verbo não é como a queda de uma folha. Dependendo da época e do contexto cultural em que é empregado, o mesmo verbo pode assumir significados bastante distintos.
A inspiração divina da Bíblia não existe para tratarmos as palavras como se fossem folhas. Deus ter inspirado a Epístola aos Romanos não significa que as suas palavras sejam independentes das convenções linguísticas e teológicas da época em que foram escritas. Pelo contrário, a inspiração supõe a diferença bem demarcada entre natureza e cultura, o que significa que não podemos desconsiderar o significado específico do texto para os leitores do primeiro século. Para exemplificar, quando fala de Jesus de Nazaré e sua morte, Paulo se refere ao que as pessoas daquela época sabiam a respeito deles. E, quando trata da virtude, nos capítulos 12 a 15, da mesma forma, ele pressupõe o que essa ideia significava no contexto cultural do primeiro século.
Porém, diferenças culturais podem ser tão grandes que grupos distintos de pessoas podem ter concepções opostas sobre a virtude, na mesma época. Por isso, para entender o que era virtude para Paulo, devemos estabelecer primeiro a que contexto cultural ele pertenceu. Sabemos que Paulo foi judeu e cidadão romano, que residiu em Tarso, na Cilícia, e estudou aos pés de Gamaliel, em Jerusalém. Está, pois, claro que ele recebeu duas formações e pertenceu, de certa maneira, a dois mundos: o judeu e o romano.
No entanto, se olharmos para a figura de Saulo de Tarso, nos capítulos 8 e 9 de Atos dos Apóstolos, perceberemos que a dupla formação que recebeu resultou numa orientação de vida única e bastante clara. Saulo foi, antes de tudo, alguém devotado à religião judaica. Tudo o que ele sabia moldava-se à relação privilegiada que tinha com a fé dos judeus, especialmente como afirmada pela seita dos fariseus. Por isso, o contexto cultural em que Paulo deve ser situado preponderantemente é o da cidade de Jerusalém e do Templo da sua época.
Nas obras que publicou sobre Jesus, Bento XVI utilizou-se dos resultados da pesquisa sobre o judaísmo do primeiro século apresentados por Martin Hengel, em 1993, em A questão joanina. De acordo com o Papa, “no tempo de Herodes se formou em Jerusalém uma autêntica classe alta judaica mais ou menos helenizada com uma cultura especial” (BENTO XVI. Jesus de Nazaré. São Paulo: Planetas, 2007. p. 195).
Essa informação de suma importância permite entender que não apenas Tarso da Cilícia, onde Paulo morou, mas a própria Jerusalém, onde estudou, haviam sido permeadas pela cultura grega. Nesses lugares, muitas pessoas falavam grego e usavam palavras e ideias carregadas de significados gregos.
Com toda probabilidade, esse era o caso da ideia particular de virtude que Paulo utilizou em Romanos 12 a 15. Não devemos supor que essa ideia fosse impermeável à maneira grega de pensar. O conteúdo dela era estabelecido, sem dúvida, pela Lei de Moisés. Porém, o significado mosaico da virtude não colidia com as mais prestigiadas ideias gregas sobre ela. É improvável que Paulo tivesse divergências fundamentais com o modo de conceber a virtude de Platão, Aristóteles e os filósofos da Estoá (estoicos). Aliás, essas concepções estavam entretecidas umas às outras e, às vezes, entretecidas também com o Antigo Testamento, no ambiente amplo de Jerusalém.
Um exame detido de Romanos 12 a 15 mostrará, por exemplo, que Paulo evita conceber as virtudes como extremos morais. Ao tecer o elogio da moderação, em 12:3, ele mostra não situar a virtude nos extremos: “Digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém, antes, pense com moderação segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um”. Moderação, nesse ponto, indica a virtude moderada por uma medida.
A moderação não é um esforço individual, mas um limite que a situação no corpo de Cristo impõe a cada um. E, se identificarmos a virtude, em geral, com uma medida de moderação, teremos de concluir que ninguém, enquanto indivíduo, pode estabelecer o que é certo e errado, já que a moderação como tal se exerce no âmbito do corpo de Cristo: “Porque, assim como num só corpo temos muitos membros, mas nem todos os membros têm a mesma função; assim também nós, conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros, tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi dada: se profecia, seja segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemo-nos ao ministério; ou o que ensina, esmere-se no fazê-lo; ou o que exorta, faça-o com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; quem exerce misericórdia com alegria” (12:4-8).
No final desses versos, as virtudes cristãs tomam forma clara. Paulo refere-se à liberalidade, à diligência, à misericórdia como se tudo o que foi dito antes devesse conduzir a elas. Para ele, a função de um membro do corpo não é apenas um exercício ou trabalho, mas a manifestação de uma virtude particular. A cada função está ligada uma virtude: à contribuição para o sustento de outras pessoas está associada a liberalidade; à liderança, a diligência; ao exercício da misericórdia, a alegria. Assim, a afirmação de que cada um deve exercer a sua função conforme a medida da fé equivale a propor que a virtude correspondente deve ser exercida com medida.
Assim, a concepção extremada da virtude parece estranha ao pensamento de Paulo em Romanos. Para ele, agir bem é o resultado de um hábito exercido moderadamente, o que nos conduz à noção de mesótes desenvolvida por Aristóteles. Mesótes é o ponto médio entre extremos que são dois vícios. Para exemplificar, a generosidade (virtude) é o ponto médio entre a avareza e a prodigalidade, que são dois vícios. E a coragem (virtude) é o meio-termo entre os vícios da covardia e da temeridade.
Para o filósofo grego, um dos extremos se caracteriza pela simples carência da virtude. A avareza, por exemplo, é a falta de generosidade, e a covardia, a falta de coragem. O outro extremo corresponde ao excesso da virtude ou de algo semelhante a ela: a prodigalidade é o hábito de gastar demais, e a temeridade, a coragem excessiva.
Não estou a afirmar que Paulo concebe as virtudes exatamente como Aristóteles, mas que, por uma espécie de infusão cultural, o seu pensamento reflete certas nuanças e concorda em vários pontos com o daquele filósofo. Estou a afirmar que as palavras de Paulo, em Romanos, não são folhas de árvores, mas objetos culturais. Se Deus inspirou aquelas palavras, ele as usou como o que são, não como outra coisa. Por isso, a referência às virtudes como hábitos moderados, como medidas ou proporções do agir humano pode bem estar em paralelo com o pensamento de Aristóteles como tinha sido incorporado, particularmente, ao judaísmo de Jerusalém.
Nas suas epístolas, Paulo quase sempre se refere às virtudes como conceitos abstratos. Ele quase nunca se preocupa em mostrar em que consiste a virtude numa situação concreta. Deixa a determinação desse ponto para os destinatários das suas epístolas. Mas, em Romanos 12, ao abrir a seção sobre os valores cristãos com alusões à moderação, à medida e à proporção da fé, ele emite sinais claros de uma concepção geral da virtude como hábito equidistante de extremos viciosos.
Esse modo de pensar de Paulo não fica sem consequências. Se a virtude é o ponto médio entre a carência e o excesso, o pecado da sodomia deve ser caracterizado não como orientação sexual divergente da média da população, mas como um excesso disso. Como um homossexualismo levado ao ponto da monstruosidade. Admitamos que Paulo considerasse a heterossexualidade o paradigma do comportamento sexual virtuoso. É muito provável que ele, de fato, o fizesse. O problema é que, para tratá-lo como paradigma, ele tinha de situar toda uma gama de comportamentos entre dois vícios, um correspondente à falta de impulso sexual (assexualismo), e o outro, ao impulso sexual monstruoso (sodomia). Sob essa concepção, nem a castidade forçada é virtuosa, já que coincide com o assexualismo, nem as variedades de comportamento sexual do mundo grecorromano são pecaminosas, na medida em que permanecem afastadas da sodomia.
Em 1ª aos Coríntios 6:9, Paulo condena quatro comportamentos sexuais: a devassidão (impureza), o adultério, o homossexualismo e a sodomia. Se Romanos e 1ª aos Coríntios estiverem suficientemente de acordo um com o outro, teremos de concluir que a cada um desses vícios corresponde outro oposto. Portanto, se a devassidão é o descontrole do ímpeto sexual, seu oposto há de ser o controle demasiado, a castração, o voto de castidade sem qualquer sentido. Se o adultério é o desrespeito pelo vínculo matrimonial, seu contrário deve ser a proibição total do divórcio. Se o homossexualismo é a inclinação contrária ao aparelho sexual provido pela natureza, o oposto é a proibição da orientação divergente da natureza. E se a sodomia é o homossexualismo que se prevalece da força contra a opção sexual alheia, como vemos em Gênesis 19, o contrário há de ser o homossexualismo inerte, passivo e infenso a toda prática sexual.
Esse modo de entender as virtudes e os vícios ultrapassa o sentido literal de Romanos 12, mas não o conjunto de ideias que circulava em Jerusalém (e tanto mais em Tarso), naquele tempo. Interpretar o texto de Paulo à letra pode implicar e frequentemente implica considerar as suas palavras objetos naturais. Mas elas não o são. Há em Romanos e nas Epístolas de Paulo, em geral, um conceito subjacente de virtude colhido não só a Moisés, mas também ao pensamento grego. O fato de Romanos ter sido escrita em grego é, por si, o primeiro indício disso.
E, se os vícios hão de ser entendidos como extremos relacionados ao excesso e à privação de certas práticas, a virtude terá de ser interpretada não como uma única prática, mas como uma gama situada entre aqueles extremos. Isso não significa que o pensamento moral de Paulo reproduza Aristóteles, mas que há uma inspiração aristotélica nele. Essa inspiração parece ter levado Paulo a conceber a virtude como meio-termo entre vícios opostos. Não podemos, é claro, tecer essas afirmativas de modo peremptório, mas elas parecem condizentes com a orientação geral dos textos do apóstolo e com o ambiente cultural em que ele vivia.
Em 1ª aos Coríntios 7:10,12, Paulo escreveu: “Aos casados ordeno, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se separe do marido [...] Aos mais, digo eu, não o Senhor: Se algum irmão tem mulher incrédula e esta consente em morar com ele, não a abandone”. Notem que Paulo se referiu a duas classes de pessoas unidas sexualmente a outras: os casados e “os mais”. A estes não ordenou que se separassem de seus pares, por considerar ilícito o relacionamento sexual que mantinham. Pelo contrário, ordenou que permanecessem com seus companheiros ou companheiras, embora não fossem casados com eles. Isso mostra, com toda clareza, que o pensamento moral do apóstolo, em questões sexuais, não tinha a estreiteza que se tornou comum no meio evangélico.
Infelizmente, a história da interpretação protestante da Bíblia é tão rica em estreitamentos! Apenas recentemente, a consciência desse mal se disseminou o bastante para que o início de uma abertura passasse a ser buscado. Mas a que preço! Se não são como folhas, ideias tampouco são como obras de arte. Estas se sucedem sem se refutarem umas às outras. Portanto, sem cancelarem cada qual o valor da outra. A arte é pura soma. Mas não é possível adotar uma ideia nova sem negar outra antiga. O avanço na verdade não se faz só por somas, mas também por subtrações. E não há fim no somar e no subtrair. Não há ideia nova e revolucionária que não envelheça e se faça conservadora. Não há verdade humana que não prescreva, nem teoria que não se transforme em erro. Por isso, buscar a verdade é somar e subtrair ideias incessantemente. E o que torna essa atividade dramática não é o seu nunca acabar, mas o fato de, como seres humanos, termos muito mais deficiências na arte de subtrair que na de somar.