segunda-feira, 3 de março de 2014

Livre Exame de Romanos (capítulos 9 a 11)

A ELEIÇÃO DE DEUS



Após discorrer sobre a condenação universal e a salvação de judeus e gregos realizada por Deus em Cristo, Paulo não dá sua exposição do evangelho por encerrada. Passa a enfrentar o duro fato de que uns recebem essa salvação e outros, não. Enfrenta-o, em particular, no seio do seu próprio povo, Israel: “Tenho grande tristeza e incessante dor no coração; porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus compatriotas, segundo a carne” (9:2-3).
Paulo tem esse cruel sentimento, por causa dos judeus que não receberam Cristo como o Messias e o Filho de Deus e que, por isso, não foram salvos: “Israel que buscava a lei da justiça não chegou a atingir essa lei. Por quê? Porque não decorreu da fé, e, sim, como que das obras. Tropeçaram na pedra de tropeço” (9:31-32). 
Seria muito fácil explicar a rejeição dos judeus só pelas obras. Paulo já havia estabelecido a condenação universal. Havia também mostrado que Deus, em Cristo, provera o remédio para essa situação. Seria consequente, da sua parte, afirmar que, se alguém rejeitasse o remédio, continuaria com a moléstia e morreria dela, isto é, que tanto os judeus como os gregos incrédulos permaneceriam sob condenação.
Mas Paulo não adota o princípio das obras e sim o da graça. Por meio de Cristo, Deus salva gratuitamente o homem perdido nos seus pecados. E, se assim é, como explicar o fato desconcertante de que alguns não abraçam a fé e permanecem na condenação? Se não vem do homem crer no evangelho, pode vir dele o não crer?
Fiel ao seu princípio de exposição, Paulo não vacila em enfrentar essa dificuldade do mesmo modo como lidara com a justificação, ou seja, olhando-a pelo ângulo de Deus e não do homem. Como a salvação procede de Deus, não é diferente, em princípio, com a rejeição do evangelho. O ato de Deus escolher a uns implica o de não escolher a outros, pura e simplesmente.
Assim, a rejeição do evangelho pelos que não creem é descrita como o resultado de uma predestinação negativa. Repito que isso está implícito no fato de Deus escolher alguns para serem salvos. A eleição implica a não eleição. Por isso, os que não foram escolhidos para serem salvos foram destinados à rejeição e a permanecerem sob condenação. Paulo chora e deplora esse fato, mas o aceita, pois nada pode fazer para mudá-lo, se Deus sumamente bom não pôde. Paulo pode ter “grande tristeza e incessante dor no coração”, e estamos certos de que Deus também as sentiu, mas nada é possível fazer quanto a isso.   
Precisamos, porém, introduzir uma diferenciação entre a predestinação positiva e a negativa, isto é, entre a predestinação à glória e à perdição. A primeira é absoluta. Não admite, por isso, o menor contraste. Nenhuma obra humana, seja interna, do coração, seja externa, do comportamento, pode ser causa da salvação. Isso porque a salvação é a concessão de um dom divino, e o divino é incomensurável, incomparável com qualquer coisa humana. Ou Deus o concede esse dom ao homem, ou ele permanecerá totalmente inacessível. Porém, quando entramos no campo da predestinação negativa, o contrário se torna verdade. A Bíblia afirma, o tempo todo, que o ímpio perece por causa das suas obras. A morte é o salário do pecado (6:23), não o dom gratuito de Deus. Isso exige uma reformulação da doutrina, no tocante à predestinação negativa. Essa modalidade de determinação deve consistir num condicionamento e não no estabelecimento de um destino inescapável. As circunstâncias da vida do pecador são condicionadas de maneira a incliná-lo à perdição, porém ela pode ser evitada, mediante o arrependimento.   
Isso não significa que o pecador possa alcançar a glória a que Deus predestina seus eleitos. Se essa glória é inalcançável por meio das obras, ninguém a pode lograr pelo arrependimento, mas apenas pela eleição divina. Porém, deve haver destinos e estados eternos que não se confundem com a bem-aventurança à qual Deus predestina, nem com a perdição. Esses destinos intermediários, que não equivalem ao purgatório, são uma consequência necessária da doutrina da predestinação como Paulo a formula em Romanos.
Deus não tem de que se queixar, se alguns o rejeitam em razão de um decreto imutável dele próprio. Mas não ter de que se queixar não é o mesmo que não sentir “grande tristeza e incessante dor no coração”. Podemos crer que Deus as sentiu e sente. Dirão: mas se sente, por que não escolheu os que rejeitam o evangelho para serem salvos também? Seria tão fácil para Deus pôr fim a essa tristeza...A resposta de Paulo é que seria fácil, mas não justo. Ele pergunta: “Há injustiça da parte de Deus?” E responde: “De modo nenhum” (9:14). Podemos, pois, responder o questionamento sobre a não eleição dos que se perdem, admitindo que seria fácil para Deus sobrepor sua vontade à deles, mas não o faz porque não é justo. Dirão por acaso que essa explicação nos leva de volta às obras? Leva, de fato, mas a Escritura diz, todo o tempo, que o ímpio perece pela sua impiedade, isto é, pelas suas obras. Só não diz que o justo se salva pela sua capacidade, mas por um dom de Deus.
Podemos, pois, admitir que, em algum ponto e de alguma maneira, a justiça obriga Deus a não ouvir a “grande tristeza e a incessante dor no coração”. Sei que os adversários dessas ponderações não se contentarão com a minha explicação. Dirão insaciáveis: por que não ouvir a tristeza e a dor, em vez de a justiça? Diante disso, só nos resta replicar: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?” (9:20).
A tristeza e a dor pela perdição de alguns não devem obstruir o caminho da justiça de Deus, que consiste em estender a muitos o mérito de um só. O Universo tem todos esses motivos de lamento. Mas eles não devem parar a história da salvação. Nem nos devem levar a desassociar a salvação da graça e a associá-la às obras. Paulo paga o alto preço da tristeza e da dor para manter a verdade basilar da graça.
E vai buscar na Escritura o fundamento para a sua posição: “Ainda não eram os gêmeos [Esaú e Jacó] nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já lhe fora dito: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei a Jacó, porém me aborreci de Esaú” (9:11-13). Paulo vê o amor e o aborrecimento de Deus como sinais de eleição. Deus amou porque escolheu, não escolheu porque era amável. Aborreceu, porém, Esaú, porque era digno de aborrecimento.
A indignidade de Esaú aparece com todas as letras em Hebreus 12:16-17: “Não haja algum impuro, ou profano, como foi Esaú, o qual, por um repasto, vendeu o seu direito de primogenitura. Pois sabeis também que, posteriormente, querendo herdar a bênção, foi rejeitado, pois não achou lugar de arrependimento, embora, com lágrimas, o tivesse buscado”.
Esses versos alijam Esaú completamente da bênção a Israel. Excluem-no não por ter dado origem a outra descendência, mas por não ser parte de Israel em espírito, isto é, por não ter o coração circuncidado. Um homem assim, ainda que busque a bênção com lágrimas, não um só dia, mas mil, não a alcançará, pois não possui o princípio necessário para alcançá-la. Esse princípio é a eleição de Deus.
Notem que Esaú cria em Deus. Mas essa fé era uma construção sua. Não vinha de Deus. Não era um dom divino. Portanto, nem mesmo a fé, como gênero, basta para garantir a bênção de Deus. O que basta é a fé que é dom. Em Apocalipse 3:14, Cristo é chamado o Amém. Nenhum vocábulo simboliza tanto a fé nas promessas de Deus quanto esse que se pronuncia ao final de toda palavra inspirada. No entanto, o amém não está em nós, não vem de nós: é o próprio Cristo. Dele é a fé que Esaú não possuía.
Assim Paulo responde a inquietação sobre a eleição dos santos, que implica a dos incrédulos. Assim ele demarca com força, no chão da própria casa de Isaque, o campo dos que se salvam e o dos que não se salvam. É levado a isso pela contemplação do terrível espetáculo da incredulidade dos judeus. Paulo olha para tantos compatriotas, amáveis sob outros aspectos, e chora a sua incredulidade. Olha, por outro lado, para si, para os outros apóstolos e para os judeus cristãos e diz: há também vasos de misericórdia. Na mesma casa, ele vê “vasos de ira, preparados para a perdição” e “vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão” (9:22-23).
Não vacila em escrever desses últimos: “os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios” (9:24). Ao observar a piedade sincera em alguns, Paulo não se reprime: admite-a como sinal de eleição. Chama vasos de misericórdia os que têm o coração repleto dessa piedade. Isso pode parecer preconceituoso, na medida em que tantos outros são excluídos por ele de idêntica condição. Mas é consistente com o princípio em que toda a exposição de Romanos se baseia. Esse princípio é o da evidência empírica. Paulo escreveu Romanos 1 a 3 constrangido pela impiedade que grassava no mundo à sua época. Mas, se admitia o fato evidente da impiedade, por que Paulo não admitiria a piedade de outros? Por que deveria olhar para os ímpios e reconhecer que eram ímpios e olhar para os justos e calar que eram justos?
A evidência da piedade existente no mundo levou Paulo a identificar os vasos de misericórdia como determinadas pessoas. E não há erro algum nisso. Só não devemos pensar que a identificação tenha validade absoluta. Podemos considerar alguém um vaso de misericórdia hoje e amanhã concluir que não é. O conhecimento dos vasos de misericórdia é essencialmente provisório. Só se sedimenta após longo tempo. Para usar a linguagem de Santo Agostinho, só podemos ter certeza de quem perseverará até o fim, após ter perseverado.
Quando se refere à bênção introduzida pelo evangelho, Paulo tem em vista a vida eterna em glória. Afirma que Deus dará a vida eterna aos que procuram glória, honra e incorruptibilidade. Lembra que a criação aguarda a glória e a liberdade da glória dos filhos de Deus (8:19,21). E que aqueles a quem Deus, de antemão, conheceu e predestinou também os chamou, justificou e glorificou (8:29-30). Por fim, reitera que os vasos de misericórdia foram preparados para a glória (9:23).
A salvação tem em vista um fim, que é a glória, a não salvação, outro fim: a perdição (9:22). Embora especulemos, não sabemos como será a glória a que o apóstolo se refere. E, se há algum equilíbrio na revelação de Deus, tampouco sabemos em que consistirá a perdição dos ímpios. Sobre esse ponto, é preciso fazer reinar um prudente silêncio.
Mesmo assim, aquilo que não sabemos o que é estamos certos de que virá. O Livro de Apocalipse, ao revelar-nos “as coisas que hão de acontecer” (Ap 1:19), não nos confunde com uma série de julgamentos finais e uma série de paraísos vindouros, mas apresenta um só juízo e uma só Nova Jerusalém. Isso torna absolutamente claro que não haverá mais do que dois destinos finais para os que viverem até aquele momento.
Esses destinos constituem um limite importante para os purgatórios localizados no futuro. Não há lugar, no pensamento de Paulo ou no Apocalipse, para tais lugares intermediários. Talvez por isso, por volta do ano 150 d. C., tenha vindo a lume um livro chamado O pastor de Hermas, que trata do arrependimento dos cristãos que retornaram ao pecado. A lição do livro é de que essas pessoas podem alcançar estados os mais diversos e receber tratamentos também diversos de Deus. Porém, isso acontece no período em que a igreja é edificada, não no tempo de vida de cada pessoa na Terra.
Talvez o mais significativo sobre O pastor de Hermas tenha sido a acolhida que teve no meio cristão, durante os primeiros séculos. Muitas igrejas incluíram o Pastor no rol das Sagradas Escrituras para mais tarde excluí-lo, não sem razões. Porém, a ideia fundamental da obra continuou a ser aceita por muitos e discutida por um número ainda maior. E não pode haver dúvida de que ela constituía um novo desdobramento do problema enfrentado por Paulo em Romanos 9: se a salvação é pela graça, que envolve a predestinação, torna-se difícil admitir que todos os eleitos que recaem em pecado sejam restaurados antes da morte. No entanto, o próprio Paulo não se manifestou sobre esse ponto. Nunca houve silêncio mais eloquente...

O REMANESCENTE
O quadro das divisões ocorridas ao longo da História leva os cristãos a se perguntarem que ramos da enorme árvore de igrejas representam a comunidade que Jesus fundou. Não raro, a resposta oferecida à pergunta exige que uma igreja seja suficientemente antiga ou tenha vínculos claros com igrejas antigas para ser considerada legítima.
Por um instante, isso pode parecer insensato aos que pensam que não adianta uma igreja existir há muito tempo, se abandonou a fé dos apóstolos. Contudo, os defensores do critério da antiguidade não o pretendem aplicar a comunidades apóstatas, mas apenas às que professam a fé dos apóstolos. Assim utilizado, o critério faz mais sentido, por duas razões: desautoriza qualquer divisão não baseada numa necessidade e impede que a igreja seja refundada, sob pretexto dos erros ocorridos nela. Nesses casos, a antiguidade ergue barreiras à desunião e à presunção.
Todos concordam que a igreja cristã deve ser identificada pela fé no evangelho. Romanos confirma esse ponto de vista, mas o faz de modo diferente daquele pelo qual os cristãos costumam responder a pergunta sobre a igreja. De fato, ou os cristãos afirmam que os limites da igreja são invisíveis, por coincidirem com a fé dos seus integrantes, ou os associam a uma instituição, como a Igreja Católica.
A ideia de Paulo em Romanos é diferente. Por um lado, ele enfatiza a suficiência da fé como critério de determinação dos limites do povo de Deus. Por outro lado, trata esse povo, o tempo todo, como Israel. Quer dizer que o povo é uma descendência, uma linhagem histórica, não corações crentes que não sabemos a quem pertencem por formarem uma igreja invisível.
Como judeu, Paulo concebe Israel em termos genealógicos. Esse modo de pensar está implícito na palavra povo, que ele utiliza em vários versículos. Para o homem antigo e Israel em particular, todo povo era uma descendência. Não é diferente com o Israel espiritual, que Paulo também considera uma estirpe, linhagem ou descendência.
É correto definir esse povo, Israel, com base na fé. Paulo o faz e com grande ênfase. Mas é importante lembrar que a fé muito genérica não define bem Israel. No versículo 7, o povo de Deus é tratado como o conjunto dos filhos de Abraão. Isso significa que ele começou com esse patriarca. Portanto, não é qualquer fé, mas a fé de Abraão que o define.
Adão não creu na promessa a Abraão, pelo motivo óbvio de que a promessa não existia na sua época. As promessas de Deus a Adão não são idênticas, em conteúdo, às que ele formulou a Abraão. Se fossem, Paulo teria construído Romanos 4 e 9, bem como o Livro de Gálatas sobre Adão, não sobre Abraão. Mas ele os construiu sobre Abraão. Por outro lado, se Adão tivesse recebido promessa tão gloriosa quanto a de Abraão, Paulo não teria feito referências sempre tão negativas a ele, em Romanos 5 e 1ª aos Coríntios 15. Para que eclipsar promessa tão radiante de Deus, vinculando Adão ao pecado, como Paulo faz nesses capítulos?
Em Romanos 11, Paulo se refere ao povo de Deus como uma árvore cuja raiz é constituída pelos patriarcas (11:16). Reafirma, assim, o que diz no capítulo 9, a saber: que Israel existiu a partir dos patriarcas. Isso não significa que Adão e seus descendentes anteriores a Abraão não tenham sido salvos. Em Hebreus 11:4-7, lemos que Abel, Enoque e Noé tornaram-se aceitáveis a Deus pela fé. Porém, nesse mesmo capítulo, nenhuma promessa é citada, até Abraão e Sara entrarem em cena. Sobre eles, diz o autor bíblico: “Pela fé Abraão, quando chamado, obedeceu [...] Pela fé, também, a própria Sara recebeu o poder para ser mãe, não obstante o avançado de sua idade, pois teve por fiel aquele que lhe havia feito a promessa [...] Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas” (Hb 11:8,11,13).
Portanto, se Adão e Noé receberam promessas de Deus, elas não devem ser equiparadas às que foram formuladas, mais tarde, a Abraão, Isaque e Jacó. As promessas a Adão e Noé foram de salvação; as que foram feitas a Abraão, Isaque e Jacó foram também fundadoras do povo de Deus. Por isso, os que creram nas promessas, antes de Abraão, serão introduzidos no povo de Deus no futuro, mas não fizeram parte dele no passado.
Para Paulo, o povo de Deus, Israel, situava-se entre Abraão e a sua própria época. Mas, se assim é, não faz sentido os cristãos travarem tantos conflitos, a fim de estabelecerem qual é a legítima igreja de Cristo. O Israel de Deus é a única igreja e começou com Abraão.
Característica importante da igreja é a antiguidade. No entanto, devemos conceber essa antiguidade em toda a sua extensão. A Igreja de Roma é antiga. Tem peso e importância por isso. Mas Israel é muito mais antigo que ela. E, se é absurda a pretensão de fundar ou refundar a igreja, no nosso próprio tempo, devemo-nos integrar à que existiu desde o princípio, isto é, a Israel.
Quando Jesus declarou “Tu és Pedro e sobre essa rocha edificarei a minha igreja” (Mt 16:18), não quis dizer que a igreja cristã seria edificada sobre Pedro. No capítulo 11 de Romanos, Paulo compara a igreja a uma oliveira. Pedro é um ramo dessa oliveira, não sua raiz. Não faz sentido pensar que a oliveira deve crescer sobre ele, mas sobre as raízes.
Nenhum ramo tem o direito de se gloriar sobre outros: “Não te glories contra os [outros] ramos; porém, se te gloriares, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti” (11:18). Acaso essa exortação não se aplica também aos ramos naturais? Não se aplica, em particular, a Pedro como ramo natural da oliveira? Um ramo atribuir-se importância superior à de outros é sinal de soberba: “Dirás: Alguns ramos foram quebrados, para que eu fosse enxertado. Bem! Pela sua incredulidade foram quebrados; tu, porém, mediante a fé estás firme. Não te ensoberbeças, mas teme” (11:19-20).
Está claro que Paulo identifica o povo de Deus com Israel e, por isso, o localiza quase inteiramente no passado. Não faz sentido pensarmos nesse povo como uma coletividade centrada no bispo de Roma. Pedro não tinha sequer se estabelecido em Roma, quando Paulo escreveu Romanos, como se depreende da ausência de qualquer referência a ele na carta. No entanto, o povo de Deus é mencionado como já existente. Quando diz “nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos” (9:7), Paulo quer dizer que o povo de Deus vem de Abraão, portanto é tão antigo quanto ele.
Quando travam tão grande conflito, a fim de estabelecer qual é a legítima igreja, os cristãos esquecem-se de que o povo de Deus antecede a encarnação do Verbo. Não há solução de continuidade na sua existência. Existiu no Antigo Testamento e continua a existir até hoje. Por isso, se a intenção de fundar ou refundar esse povo denota soberba, devemos recuar ao passado para encontrá-lo, porém não ao passado que interessa a essa ou àquela igreja em particular, mas a um passado suficientemente longínquo para constituir a origem dele. Devemos recuar ao tempo da raiz da oliveira.
Nenhum recuo menor do que esse é suficiente. Porém, o recuo é dificultado pela afirmação de Paulo de que “Israel que buscava a lei de justiça não chegou a atingir essa lei [...] Tropeçaram na pedra de tropeço” (9:31-32). Só uma minoria de judeus, um remanescente, acreditou em Cristo: “Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo” (9:27). A nação como um todo, a maioria do povo e dos líderes, rejeitou a Cristo. E, se isso ocorreu, como devemos realizar o necessário recuo a Israel, a fim de nos integrarmos ao povo de Deus em toda a extensão necessária?
Sobre esse grave problema, Paulo se debruça nos capítulos 9 a 11. E não o faz por motivos estritamente judaicos, mas como algo de interesse também dos gentios. O interesse dos gentios por Israel decorre de o povo de Deus continuar a ser Israel. Não o Israel que foi rejeitado, mas o “que o é interiormente, cuja circuncisão é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus” (2:29). Que se passou com esse Israel?
Paulo o responde, com base numa série de profecias do Antigo Testamento: “Chamarei povo meu ao que não era meu povo; e amada à que não era amada; e no lugar em que se lhes disse: Vós não sois meu povo; ali mesmo serão chamados filhos do Deus vivo” (9:25-26). Aplica esses versos claramente aos gentios, mas prestemos bastante atenção, pois o faz de modo a identificá-los com Israel. Ou alguém pensa que o povo que Deus chama seu, em Oseias, é algum outro? Não é outro, mas o próprio Israel.
Oseias prediz um milagre: pela fé, os gentios tornar-se-iam Israel. Mas, para que o fariam, a não ser para seguirem a fé de Israel? Os gentios tornarem-se Israel tem o propósito de que Israel seja a regra de fé para eles. E, se Israel se perdera, integrar-se a ele só podia significar integrar-se a um remanescente: “Ainda que [...] Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo”.
Esse remanescente, que não dobrou os joelhos a Baal (11:2-4), tornou-se o padrão para a igreja de Deus. A quem seguimos hoje? A Jesus, mas por meio dos judeus Pedro e Paulo. Por meio de João e Tiago. Mas, assim como só nos miramos em Lucas enquanto reflete Paulo, imitamos Pedro enquanto permanece judeu. O Pedro católico nada tem de judeu. É o bispo de Roma, o primeiro Papa, uma autoridade ocidental. Que Igreja esse Pedro encabeça? A que se formou na Idade Média, regida pelo Direito Canônico e pela teologia medieval. Não a igreja que é Israel.
Dos dons feitos por Deus à humanidade, o remanescente judeu é o mais precioso depois do Verbo encarnado. Mas, como é próprio dos dons mais excelsos, ele se dissipou quase sem deixar rastros. A geração dos Doze passou, sem que outra semelhante a sucedesse. Além do que está no Novo Testamento, temos muito pouco a respeito dela. Os católicos creem que Pedro deixou uma cátedra. Mas, se isso tiver ocorrido, e há dúvidas, a cátedra se fez um império medieval, e isso é certo. Apartou-se de tudo o que se assemelha a Israel e, do ponto de vista criado por essa inovação, rege até hoje boa parte dos cristãos. Claro que nada disso nos permite identificar, na Igreja Católica, a autoridade espiritual que ela se atribui.
Paulo trata esse assunto como um grande mistério: “Não quero, irmãos, que ignoreis este mistério” (11:25). Não mereceria o nome de mistério, se fosse um tema nacional e terreno. Mas, exatamente por ser mistério, é pouco palpável. Temos dele não mais que um conhecimento precário. Da ofuscante visão do cometa que enche de luz o céu, ao passar, restou-nos o brilho que emana das páginas do Novo Testamento.
O brilho é, porém, uma regra tão forte quanto a que o navegante deriva do astro que o orienta. Descoberta por milagre a seus olhos, dada a distância que os separa, essa luz não é muda. Fala-lhe e até mesmo lhe ordena: “Esse é o caminho. Segue-o.”
Deus nos deu instituições, mas não muito grandiosas. Agradou-lhe governar a noite pela luz em extinção de um povo remanescente. Não abrasará mais o céu para a vermos. Quer, ao contrário, que a nossa visão dependa mais da atenção com que olhamos do que da intensidade da luz. “A candeia do corpo são os olhos” (Mt 6:22). A luz mensageira está dada. Vê-la depende do nosso olhar.
CRER E INVOCAR
Em Romanos 10:4, Paulo se refere à mensagem nuclear das Escrituras como o fim (télos) da lei: “Pois o fim da lei é Cristo para justificação de todo aquele que crê”. Chega a essa conclusão, após ter discutido amplamente com os judeus o vasto conjunto de manuscritos hebraicos e a tradução grega do Antigo Testamento que então circulavam. Infelizmente, a conclusão não era compartilhada pela maioria dos seus compatriotas, mas o modo de ver o Antigo Testamento deles e de Paulo é o mesmo. Podemos dizer que consiste em reconhecer a inspiração divina de todo o conjunto de manuscritos existente.
Os originais e a tradução grega reconhecidos pelos judeus eram praticamente todos os textos que possuíam das Escrituras. Sabemos da existência de uma ou outra tradução parcial do Antigo Testamento fora desse conjunto, porém, na prática, elas eram muito difíceis de encontrar. Não estavam realmente disponíveis para a maioria dos judeus. De modo que o conceito de Sagrada Escritura implicava a aceitação da quase totalidade dos manuscritos como inspirados.
Chama atenção o fato de que esses numerosos textos divergiam em muitos pontos, sem que isso causasse perplexidade aos judeus. Para eles, a palavra de Deus era o conjunto completo de manuscritos hebraicos e a tradução grega do Antigo Testamento, com todas as divergências que apresentavam. Não é preciso acrescentar que essa concepção é muito distinta da dos católicos e protestantes do nosso tempo, que veem a Bíblia sob o ângulo limitado do feixe de manuscritos utilizado em traduções centenárias e rejeitam outros, por causa das variações que contêm em relação a eles.
Essas concepções antiga e moderna da Bíblia são como dois idiomas. É impossível nos entendermos com quem abraça uma delas, utilizando a outra. E, como Paulo adotava a primeira concepção, é impossível entendermos o que ele diz, com base na ideia moderna. Ao afirmar que toda Escritura é inspirada por Deus, 2ª a Timóteo 3:16 se refere aos incontáveis manuscritos hebraicos e à Septuaginta. Nós não dizemos a mesma coisa, quando sustentamos que as Escrituras são a palavra de Deus. E as consequências de ideias tão distintas não são de pequena monta. Para dizer o mínimo, uma ideia é aberta, não comprime a palavra de Deus num dogma, considera-a tão insondável quanto o próprio Deus, ao passo que a outra resolve todas as coisas e o próprio Universo no dogma que cristaliza.
Com base na primeira concepção, Paulo afirma que a justiça da lei e sua consequência (a vida eterna) estão claramente reveladas no versículo em que Deus ordena: “Guardareis os meus estatutos e as minhas leis, cumprindo os quais o homem viverá” (Lv 18:5). Mas o apóstolo conclui que não há um judeu ou prosélito capaz de cumprir todos os mandamentos da lei. Assim, ele se afasta da teologia rabínica, que supunha o contrário. Devemos indagar por que o faz. Que o leva a pagar o alto preço da discordância em relação aos seus compatriotas?
Paulo extrai a conclusão da incapacidade do homem de cumprir a lei da observação do que acontece. Qualquer um pode chegar a conclusão idêntica, se observar os atos humanos como ele o faz, ou seja, de mente aberta e sem preconceitos. A pecaminosidade humana não é uma ideia genial ou acessível apenas aos muito inteligentes. É acessível também aos menos dotados, desde que não sejam menos dotados de realismo.
No entanto, essa conclusão do bom senso fecha o acesso à salvação tão eficazmente quanto o querubim com a espada obstruiu o caminho para a árvore da vida, em Gênesis 3:24. Como Moisés diante da Terra Prometida, quem alcança essa consciência é capaz de vislumbrar, mas não de alcançar a salvação pelo caminho apontado em Levítico.
Paulo, porém, não desiste. A obstrução de um caminho coloca-o em busca de outro. Já o tinha encontrado no verso de Habacuque que afirma que “o justo viverá pela fé”. Reencontra-o em Deuteronômio 30. Nessa passagem, Moisés pronuncia as bênçãos e as maldições em que Israel haveria de incidir, respectivamente, pela obediência e pela desobediência a Deus. Nas bênçãos, Paulo acha “a justiça que provém da fé”: “Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu?” (10:6). E interpreta: “Para fazer descer Cristo” (10:6). “Ou: Quem descerá ao abismo? Isto é, para fazer Cristo levantar-se dentre os mortos” (10:7).
Sabemos que, em Deuteronômio, Moisés se refere ao mandamento da lei outorgada a Israel. Afirma que ele não está no céu ou no além-mar para que Israel os tenha de buscar tão longe. De que técnica interpretativa Paulo se vale para encontrar Cristo e não o mandamento em Deuteronômio? Da técnica da escola rabínica de Alexandria, cujo expoente maior, Fílon, se referira ao Logos (palavra) como um ser pessoal gerado de Deus. Se o mandamento da lei é palavra (Logos), é legítimo descrevê-lo como esse ser, ou seja, como o próprio Cristo. Como a passagem de Deuteronômio afirma, em seguida, que o mandamento está no coração e na boca de quem o conhece, não é equivocado espiritualizá-lo do modo como faz Paulo.
Lançada, pois, a base dessa interpretação, o apóstolo avança em direção à conclusão que quer compartilhar com os romanos. Se há, na lei, uma justiça inalcançável e outra alcançável, por estar perto de nós, no nosso coração e na nossa boca , Paulo não hesita em interpretar a proximidade dessa segunda justiça por meio dos versículos: “Quem nele crê não será confundido” (10:11; Is 28:16) e “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (10:13, Jl 3:5).
Diz mais: “Como invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? Como pregarão se não forem enviados? Pois está escrito: Quão belos são sobre os montes os pés do que anuncia boas-novas sobre coisas boas!" (10:14-15).
Cada palavra, nesses versículos, foi escolhida para exprimir o cerne da experiência inicial de salvação. Invocar é a continuação necessária de crer, como crer é o prosseguimento normal de ouvir. Mas, do modo como nem toda fé conduz à justificação, o invocar a que Paulo alude é específico. Para nada aproveita crer como os demônios creem (Tg 2:19) ou invocar como os que dizem “Senhor, Senhor” e não entram no reino dos céus (Mt 7:21). Crer é algo específico; invocar também o é.
No Antigo Testamento, Deus se tornou conhecido como Iahweh. Por isso, invocar era invocar esse nome (Gn 4:26). Se o nome de Iahweh não devia ser usado em vão (Êx 20:7), invocá-lo era o único meio de salvação disponível para o homem. Não era uma transgressão do terceiro mandamento, mas o contrário exato disso. No Novo Testamento, porém, a revelação foi além desse ponto. Invocar passou a ser invocar Jesus como Iahweh. Sob essa luz, “todo aquele que invocar o nome do Senhor” significa todo o que invocar Jesus como Senhor. As palavras Jesus, Senhor e Iahweh não são elementos de um rito. Por isso, o que importa não é a ordem ou a frase em que as pronunciamos, mas o sentido que lhes atribuímos ao pronunciá-las.
Paulo é muito claro nesse ponto. Afirma que com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa para salvação. Atrela, assim, a justificação à fé e a salvação, à confissão. Para ter valor, a invocação do nome de Jesus deve corresponder a uma confissão, exatamente como a fé, para ter validade, deve ser um ato do coração.
A confissão verdadeira é diferente de dizer apenas “Senhor, Senhor”. Em grego, confessar é homologéo, que significa dizer o mesmo. A palavra da salvação é a mesma que Cristo pregou. É a mesma que os apóstolos anunciaram. Não é outra, pois “se alguém, ainda que nós ou um anjo do céu, vos anunciar evangelho diferente do que vos temos pregado seja anátema” (Gl 1:8).
Quanto mais nos apartamos dessa palavra, menos capazes de invocar o nome do Senhor nos tornamos. Não importa o quanto falamos. A salvação não é uma experiência de loquacidade. É questão de falar o mesmo, de confessar o senhorio de Jesus: “Porque, se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos serás salvo” (10:9). Confessa-o quem diz “Senhor, Senhor”? Não, mas quem afirma, publicamente, por fé, que se sujeita ao jugo de Cristo.
E se a pessoa, após invocar desse modo o Senhor, retornar aos pecados? Essa complicação do problema da salvação é resolvida, em Hebreus, pelo arrependimento. Se nós, que somos maus, devemos perdoar o irmão arrependido 70 vezes sete, como Deus, que é bom, pode negar o perdão a alguém?
Quando diz que não é possível ao crente que retornou ao pecado lançar novamente a base do arrependimento, Hebreus 6:6 se refere à fé em Deus, à confissão e ao batismo (Hb 6:1) que concretizam o arrependimento. A confissão é um ato simbólico. Como tal, ela deve assimilar-se àquilo que representa: o ato de justiça de Cristo. Se Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados, devemo-nos arrepender também uma vez. Se, após tê-lo feito, voltamos a pecar, não devemos lançar novamente a base de arrependimento, mas apenas retornar a ela.
Como não cabe discutir que palavras, quando pronunciadas, implicam usar o nome do Senhor em vão, não é o caso de estabelecermos fórmulas invariáveis de confissão. Invocar o nome do Senhor não é dizer palavras sacramentais, mas dizê-las com o sentido de uma confissão. É confessar a mesma verdade, não a mesma palavra, pois a verdade pode ser expressa por diferentes palavras.
Paulo descreve assim o processo da justificação e da salvação inicial. Não utiliza estas duas palavras como sinônimos. Refere-se à justificação como parte da salvação inicial e a divide em quatro passos: o envio, a pregação, a escuta e a fé. O primeiro desses passos é dado por Deus; o segundo, pelo pregador, os dois últimos, pelo ouvinte da palavra de Deus. A esses passos podemos acrescentar o entendimento, pois Paulo afirma que muitos judeus têm zelo por Deus, mas sem entendimento (10:2), o que os impede de crer e de ser justificados.
A salvação completa, porém, inclui um passo adicional: a confissão. No Evangelho de Marcos, inclui também o batismo, que acompanha a confissão (Mc 16:16). Tudo considerado, chegamos a sete passos: o envio, a pregação, a escuta, o entendimento, a fé, a confissão e o batismo. Esse é o inteiro processo da salvação inicial.
Uma consequência prática emerge da diferença entre a justificação e a salvação: a de que algumas pessoas podem ser justificadas e não completar o processo da salvação inicial, por falta da confissão e do batismo. Paulo parece não só admitir essa consequência como entender a situação de alguns de seus compatriotas com base nela. Ao distinguir as experiências de crer e invocar, ele torna possível um entendimento mais flexível da situação espiritual dos seus concidadãos. Evita votá-los todos a um destino idêntico.
Muitos judeus creram em Jesus, mas não o confessaram. Nicodemos é um dos casos notórios. Em Romanos 10, Paulo parece inseri-los numa situação peculiar caracterizada pela presença da fé e pela ausência da confissão. É muito difícil entender o que isso significa em termos do destino eterno da pessoa. Mais ainda afirmar que essas experiências diferentes implicarão uma só consequência.
Porém, o capítulo 8 ajuda-nos a resolver o dilema: “Aqueles que de antemão conheceu também os predestinou [...] e aqueles a quem predestinou a esses também chamou, e aqueles a quem chamou, a esses também justificou, e aqueles a quem justificou a esses também glorificou” (8:29). É possível inverter a ordem dessas afirmações? É possível afirmar, por exemplo, que aqueles que glorificou, justificou e chamou Deus também predestinou?
Parece que não, pois Jesus declarou que “muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos” (Mt 22:14). Se a diferença entre os grupos constituídos pelos chamados e pelos escolhidos puder ser estendida ao grupo dos justificados, será possível ser justificado sem ter sido predestinado, do modo como é possível ser chamado sem ter sido escolhido.
Na parábola do banquete, em Lucas 14:15-24, um homem convida muitas pessoas para um banquete, mas apenas alguns (os menos dotados) comparecem. O convite é, assim, um símbolo do chamamento. Mas ao símbolo basta ter algo em comum com o que é simbolizado para cumprir a sua função. Não é preciso que ele seja semelhante à coisa simbolizada em todos os outros aspectos. Por isso, Jesus pôde se referir a Deus como um juiz iníquo. Na parábola do banquete, o fato de o convite ter sido recusado não implica que o chamamento de Deus seja comumente rejeitado. A parábola não foca esse aspecto do chamamento. Alguns dos que foram convidados e não compareceram à festa podem ter mantido excelente relação com o anfitrião, tanto antes como depois do convite. Devemos até supô-lo, pois o princípio da urbanidade o exige. Porém, se assim é, o chamamento não constitui um convite que, declinado, ponha fim à relação de Deus com o homem.
A frase “muitos são os chamados, poucos os escolhidos” deve ser interpretada literalmente. O chamamento de Deus é real. A eleição também. Não há motivo algum para a entendermos alegoricamente. Por isso, muitos são muitos, e poucos são poucos, não outra coisa. A lição da parábola é de que o número dos chamados é maior que o dos escolhidos, sem que uns ou outros estejam excluídos da relação com o anfitrião que representa Cristo.
Essa é a ideia presente, também, em Romanos 8:29-30 e 10:14-15. Paulo sugere que o grupo dos que creem e são justificados não é idêntico ao dos que invocam e são salvos. Há muitos pontos de semelhança entre os grupos, mas eles não são idênticos em tudo.
Podemos prosseguir, na senda de Romanos, e perguntar se a glória não é como a justificação e o chamamento. Se o número dos glorificados não excede o dos predestinados. Não podemos negar que as respostas a essas perguntas estão implícitas, não manifestas, nas parábolas e em Romanos. Aqui e ali, Deus semeou mistérios na revelação. Não entendemos mistérios, como não ceifamos sementes. Apenas as reconhecemos, esperamos que cresçam e se tornem vegetais maduros. Esse esperar não é destituído do mais fundo sentimento. Como o agricultor espera a messe com que sonha, também nós esperamos que as sementes da revelação se transformem em luz meridiana. E, enquanto esperamos, lembramo-nos dos entes queridos e rogamos por eles, como Paulo lembrava dos seus compatriotas (9:1-5) e intercedia em favor deles (10:1). Mas Deus é quem faz crescer a messe. Fará crescer isso ou aquilo, como lhe apraz, mas também como esperamos nele.

CRER E OUVIR
Depois de ter estabelecido que Deus salva o homem da escravidão do pecado, pelo ouvir seguido da fé e da confissão, Paulo passa a explicar por que seus compatriotas, descendentes de Abraão, não alcançaram a salvação. Diz sem rodeios que não foram salvos, porque não creram ou porque, tendo crido, não confessaram a sua fé em Jesus.
Para o afirmar, Paulo se apoia em Isaías, que pergunta quem creu na pregação dos profetas (10:16; Is 13:1). O termo traduzido pregação, nesse verso, é akoi, do qual provém a palavra acústica. Akoi denota o ato de ouvir. A pregação a que Isaías se refere é o ressoar da palavra de Deus aos judeus. A partir dela, o crer ou descrer dos judeus os faz responsáveis diante de Deus.
Giorgio Agamben mostrou o percurso seguido pela instituição do juramento (horkos) na cultura grecorromana. Mostrou que, em todas as etapas desse percurso, o juramento esteve ligado à fé (pistis). E que jurar foi o ato pelo qual gregos e romanos sempre prestaram fé da verdade de um fato ou da intenção de cumprir uma promessa. Nesses povos, o valor violado pela quebra do juramento era tão sobranceiro que nenhum castigo ou sanção humana era imposto ao transgressor para que os deuses, pessoalmente, o punissem.
Essas considerações sobre o juramento e a fé tornam tão evidente o sentido jurídico dos termos grego e latino que os designam que, às vezes, Agamben o antepõe ao próprio uso religioso. Ajudam a entender por que, em Romanos, Paulo tece argumentação tão manifestamente jurídica. A salvação, como a apresenta, é um ato jurídico praticado por Deus. Não poderia ser de outro modo, se a palavra pistis estava permeada de tamanho significado legal. Claro que a inteira discussão sobre o caráter judicial ou orgânico, mais judicial que orgânico, mais orgânico que judicial ou tanto orgânico quanto judicial da salvação, que alguns gostam de sustentar, perde sentido, à luz desses dados. Simplesmente não havia, na palavra pistis, a menor implicação de algo orgânico.
Agamben recorda que a fé é “a confiança que depositamos em alguém – a fé que damos – tanto quanto a confiança com que contamos junto a alguém – a fé, o crédito, que temos” (AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem - Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. p. 34). E acrescenta imediatamente que, embora recíproca, a fé não implica uma relação entre iguais. Indica, ao contrário, “a desigualdade das condições [entre as partes que se relacionam]. Trata-se de uma autoridade que é exercida conjuntamente com a proteção sobre aquele que se submete, em troca da sua submissão e na mesma medida desta” (idem. p. 34).
Esse é um ponto por demais fundamental da pistis grega: o fato de relacionar duas partes em situações profundamente desiguais. Não por acaso, Romanos se refere à relação do homem com Deus como  uma servidão. Não por acaso, apregoa que, de escravo do pecado, o homem se faz servo de Deus. A servidão cabe no leque de significações de pistis, por constituir uma relação entre desiguais.
Em todos esses pontos, a descrição que Agamben nos fornece da fé concorda com o que o Novo Testamento revela. Contudo, uma comparação mais atenta dos sentidos do termo, num e no outro âmbito, revela também divergências. E é natural que assim seja, pois Paulo usa a palavra pistis para exprimir uma ideia proveniente da cultura judaica, que era muito distinta da grega. Vale a pena indicar quais as principais diferenças no emprego de pistis por Paulo, em relação ao uso grecorromano.
Vimos que, no mundo romano, pistis exprimia uma relação jurídica. Mas o direito que o termo implicava era um método de poder e um regime de força (kratos). Ao usar a palavra fé, Paulo mantém intacto o sentido jurídico dela, mas elimina a implicação de poder. Emprega a palavra de modo a sugerir que Deus, ao nos salvar, volta o direito contra o poder.
Essa implicação decorre dos três primeiros capítulos de Romanos, em que Paulo descreve o pecador, tanto judeu como grego, como alguém enfermo pelo pecado. O enfermo está a tal ponto destituído de força que é incapaz de contrair relações de poder. Quanto mais uma relação com o Deus Todo-Poderoso! E, se assim é, não há razão alguma para pensarmos na fé como expressão de poder. A força e o poder eram significados do termo, no idioma grego e no mundo romano, não no pensamento de Paulo.
A segunda diferença da fé neotestamentária consiste em designar um ato do coração. “Com o coração se crê” (10:10), diz Paulo. Entre os romanos, "fides era um ato verbal acompanhado em geral de um juramento” (idem. p. 35). Esse ato verbal Paulo o transforma num evento silencioso que se passa no coração, numa espécie de assentimento interior à palavra de Deus.
A fé exclui a loquacidade. Exclui toda forma de verbalização. E, se a exclui, devemos entender que rejeita também outras formas de exteriorização. Fé é um momento em que o homem fica a sós com o seu Criador. Por isso, em outra passagem, Paulo nos diz: “Cri, por isso falei; também nós cremos, por isso falamos” (2 Co 4:13). Nesse verso como em Romanos, a fé exclui o falar, ainda que seja seguida por ele. É secreta e silenciosa. Transcorre diante de Deus e apenas ali. É, por definição, o encontro do homem com Deus. O falar é o seu complemento. É o voltar-se do homem que creu para fora de si. Mas, por ser o seu complemento, o falar não é a própria fé. É um ato que se passa diante dos homens: o invocar que Paulo tanto encarece em Romanos 10.
Estas as características estranhas, porque estrangeiras, que Paulo introduz na pistis grega. Ele as introduz não com base em qualquer tradição ou na sua própria opinião, mas por meio das Escrituras. Do solo bíblico, o apóstolo transplanta esses novos significados ao território do grego koiné. Por meio deles, a fé se torna uma experiência distinta da que os gregos e os romanos conheceram. Torna-se o ato de crer sem amparo do poder e sem apelo à exteriorização ritual.
Que experiência surpreendente é essa que Paulo descreve, meticulosamente e em toda a sua extensão? Que palavra nos transmite a sua suma? A que melhor lhe cai é justiça. Paulo diz, tantas vezes, que crer é submeter-se à justiça de Deus! Não pode deixar de dizer, outras tantas , que os judeus não conheceram a justiça de Deus e, por isso, estabeleceram a sua própria: “Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus” (10:3).
Justiça é a suma da experiência de fé, como confissão o é da experiência de salvação. Por isso, substituir a justiça de Deus pela própria é errar do pior de todos os modos, com as consequências dignas de lástima que daí decorrem e que vão desde a multidão a clamar “Crucifica-o, crucifica-o” até o endurecimento permanente de Israel.
Paulo lança mão de todas as categorias até então apresentadas, na sua epístola, para explicar esse grave desvio. Cita a pergunta cheia de espanto do profeta Isaías: “Senhor, quem creu em nossa pregação?” Sugere, por ela, que os judeus não creram. E encontra, na incredulidade deles, a resposta que tanto busca. Afirma que os judeus estabeleceram a sua própria justiça, por não terem crido na de Deus.
Mas, essa resposta, Paulo a considera ainda parcial. Não se dá por satisfeito, pois continua a indagar por que os judeus não creram. Põe-se em busca de resposta mais profunda. Teriam, os judeus, permanecido na incredulidade por não terem ouvido? Não é o caso, pois, “por toda a terra saiu a sua voz, e até os confins do mundo as suas palavras” (10:18). A terra citada nesse versículo é a que Deus prometeu a Abraão; confins do mundo (oikoumenes) são os países onde os judeus da Diáspora se estabeleceram. Tanto num como no outro lugar, o evangelho foi pregado. Portanto, as comunidades judaicas, em todo o mundo, o ouviram.
Mas, se ouviram, por que se mantiveram incrédulas? Como um médico incansável, Paulo busca o diagnóstico da doença cujos sintomas se tinham tornado evidentes. Questiona: “Porventura não o souberam?”, como quem pergunta se teriam ouvido, mas não entendido (10:19). Responde que não, pois Deuteronômio afirma que Deus haveria de despertar ciúme em Israel “por causa de um povo insensato” (10:19; Dt 32:21). Se Israel não entendeu e não creu, por que os gentios, que eram faltos de entendimento (insensatos), puderam crer?
E, se a falta de entendimento não explica a incredulidade de Israel, poderia explicá-la a ausência de busca espiritual? De novo não é o caso, pois Isaías profetizou: “Consenti em ser encontrado por aqueles que não me procuravam. A uma nação que não invocava o meu nome disse: Eis-me aqui” (10:20; Is 65:1). Portanto, se os judeus não se mantiveram incrédulos por não terem ouvido, por não terem entendido ou por não terem procurado, segue-se que não creram, simplesmente, porque a fé não lhes foi dada.
Um olhar de águia sobre a História permite-nos entender que a fé romana, tão igual e tão diferente da que Paulo apresenta, ligada como ela ao direito, mas calcada no poder mais cruento, produziu como resultado o hedonismo. Não um hedonismo completo, pois o prazer não reina absoluto onde o punhal interrompe a lei. Nem um hedonismo democratizado, pois os escravos, os bárbaros e os citas nunca tiveram acesso a ele. Mas, de qualquer modo, um hedonismo substancial. Um dos maiores de toda a História. O hedonismo da Corte dos Césares, das casas dos nobres, das classes abastadas e da legião sempre presente dos que, sem o serem, tentavam ser como eles. Nos centros desse hedonismo, a música mais sublime, os poemas e a literatura mais arrebatadores sempre se misturaram à traição e aos bacanais, como fios de um tecido improvável.
 Porém, a civilização calcada no mais extenso poder, em toda a Antiguidade, fracassou ao tentar tornar-se uma civilização do prazer. Após ter-se firmado como a civilização com poder mais extenso, o Ocidente realiza tentativa semelhante, nos nossos dias. Com sua incomparável força, tenta fazer-se uma civilização do prazer. E, como Roma teve de opor o seu hedonismo à fé cristã ao tentar promovê-lo, é necessário que o Ocidente enjeite a fé que o deu ao mundo para propor o seu próprio.
Por que o poder, embora mesclado com a fé, termina assim no hedonismo? Por que terminou assim em Roma e termina do mesmo modo, no nosso tempo? Será porque falte à fé que é poder o elemento capaz de conservar a convivência humana? Será tal poder conservador algo privativo da fé-humildade, que Cristo nos revelou?
A proposta de Cristo ainda se faz ouvir. É a proposta de uma fé sem poder, de uma fé que é humildade e, se é também poder, é poder humilde. Nem por isso o poder é visto pela fé como negativo. Mas ele a vê como tal. Sempre a viu, e isso faz a diferença entre um e outro. Entre fé humilde e poder hedonista. Sobre a histórica cena desse conflito, Santo Agostinho talvez dissesse que duas civilizações tentam erguer duas cidades ao prazer, pela negação de uma só fé. E que a negação nunca trouxe paz ao mundo, somente espada. Trará hoje paz?

A MISERICÓRDIA UNIVERSAL
  
Romanos 11:32 traz uma declaração exatamente inversa à de 3:23. Enquanto este último verso atesta que “todos pecaram e carecem da glória de Deus”, o capítulo 11 se encerra com a afirmação de que “Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos”. Na estrutura cuidadosamente concebida da Carta aos Romanos, esse não é um pormenor irrelevante. Indica, ao contrário, que, como o pecado se tornou universal, a misericórdia divina também atinge todos os homens.
Simplesmente não é correto enfatizar a condenação geral e não a misericórdia de Deus para com todos. Mais do que isso, a condenação é a situação inicial; a misericórdia, a situação final, na linha do tempo em que Paulo situa a revelação do evangelho. Temos, portanto, motivos para nos perguntarmos se, por vir depois da condenação, a misericórdia não a suplanta e cancela. Mas, para concluir se isso de fato acontece, precisamos considerar primeiro o que Paulo ensina no capítulo 11.
Logo no início, ele afirma a distinção existente entre o povo de Deus e Israel. Diz que o primeiro foi preconhecido por Deus (11:2). Sabemos que o que Deus conhece, conhece totalmente. Portanto, não só conhece o seu povo como sabe que ele será salvo. O preconhecimento de Deus implica que o que ele conhece realizar-se-á. Não é o conhecimento do possível, mas do certo. É, por isso, inseparável da predestinação (8:29).
O povo de Deus mencionado em 11:1-2 é, portanto, o conjunto de todos os que haverão de ser salvos. Mas Israel, citado a seguir, não o é. É uma nação igualmente eleita por Deus, pois Paulo diz que os judeus são inimigos quanto ao evangelho e amados quanto à eleição (11:28). Porém, a eleição deles é distinta da que a igreja cristã recebe. Visa a cumprir o propósito secular de Deus, ao passo que a igreja cumpre o seu propósito espiritual.
Por isso, a eleição dos membros da igreja é chamada da graça (11:5). É formada por pessoas como os sete mil que não curvaram os joelhos a Baal (11:4). O Israel secular, porém, inclui não só os sete mil, mas também aqueles a quem “Deus deu espírito de entorpecimento, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir” (11:8). Dos quais diz o salmo: “Torne-se-lhes a mesa em laço e armadilha, em tropeço e punição; escureçam-se-lhes os olhos para que não vejam, e fiquem para sempre encurvadas as suas costas” (11:9-10).
Trata-se de grupos bastante distintos, porém entrelaçados. E o que os entrelaça é a vontade de Deus expressa pela palavra eleição. Tanto um como o outro grupo foi eleito por Deus. E, embora se trate de eleições distintas, eles devem conviver harmonicamente por terem sido escolhidos pelo mesmo Deus. O propósito das duas eleições não é entrarem em conflito. Daí o entrelaçamento do povo de Deus com o Israel secular.
A oliveira cultivada é a imagem perfeita disso. Ela não foi plantada, nem veio a existir, no momento em que os gentios foram enxertados. Já existia antes. E, se alguns ramos dessa oliveira foram cortados, é claro que ela não inclui somente a eleição da graça, mas também a da lei.
A oliveira cultivada não é a assembleia dos eleitos, a igreja invisível, universal ou como mais a chamemos. É, antes, a mescla das duas eleições: o Israel histórico, no qual coexistiam judeus de sangue e os eleitos para receberem a graça de Cristo.
Porém, a situação da oliveira mudou, quando os ramos incrédulos (judeus) foram cortados, e os crentes gentios, enxertados. Essa mudança separou a eleição da graça da eleição da lei e a relacionou a um terceiro grupo representado pela oliveira brava. As árvores cultivada e selvagem não se tornaram uma só, o que indica que o mundo e a igreja não foram mesclados, como Israel e a igreja antes foram, mas muitos ramos da oliveira brava foram enxertados na cultivada.
A oliveira brava representa uma terceira eleição. Não a eleição da lei, nem a da graça. Mas, se acompanharmos cuidadosamente a narrativa de Gênesis, perceberemos que os gentios mencionados pelas Escrituras descendem dos filhos de Noé, com quem Deus celebrou uma aliança ao dizer: “Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra. Pavor e medo de vós virão sobre todos os animais [...] Disse também Deus a Noé a seus filhos: Eis que estabeleço a minha aliança convosco e com a vossa descendência” (Gn 9:1-2,8-9).
Quando Deus rejeitou os judeus, a eleição da graça foi separada da lei. Os ramos incrédulos foram cortados da boa oliveira, e os da oliveira brava foram enxertados. Nem por isso, deve reinar a desarmonia entre judeus e cristãos, pois Deus pretende reintroduzir o Israel secular na sua oliveira. Mas a ligação estreita, no tempo atual, da boa oliveira não é mais com os judeus e sim com os descendentes de Noé, ou seja, com o mundo gentio.
Claro: os gentios são idólatras. Por isso, a oliveira cultivada não é assimilada a eles. Eles é que se transformam na boa oliveira. Porém, embora essa ressalva deva ser formulada, a parábola mostra que a eleição da graça é colocada em união com o mundo. A oliveira cultivada passa a receber ramos não cultivados, com todas as suas características selvagens.
Tanto os ramos naturais da oliveira como os que foram enxertados nela e a própria oliveira brava têm a mesma natureza. Todos são oliveiras: o mesmo vegetal, com a mesma essência e a mesma vida. Isso reforça o que temos afirmado, ao longo deste livre exame: que a salvação não consiste na comunicação de uma nova vida ou numa mudança de natureza no crente ou fiel, mas num procedimento legal realizado por Deus em Cristo. Falamos bastante disso, ao tratar do capítulo 4. Não o retomaremos aqui. Mas cabe ressaltar que a parábola das oliveiras reforça esse ponto.
Uma oliveira, três eleições. Deus não atua por meio das obras do homem, a não ser enquanto preparadas por ele próprio para que andássemos nelas (Ef 2:10). A salvação não procede do homem, mas de Deus. Esse é o princípio, a única base na qual Deus salva. Mas, de certa maneira, a parábola das oliveiras nos fala de três experiências de salvação. Uma é a salvação dos que guardam o pacto com Noé; outra, a dos que são da lei; e ainda outra, a da graça.
Se todas são eleições, todas implicam salvação. Quando Deus escolheu os gentios para encherem a terra de homens, seu propósito não era que isso não se cumprisse. A figura das oliveiras mostra que uma não cumpre o papel da outra. A oliveira selvagem cumpre a missão de encher a Terra com a vida humana e temor a Deus. A outra existe para fim diverso: para dar frutos ao agricultor e àqueles com quem ele os compartilha.
Voltamos, assim, ao princípio com que abrimos este texto. Romanos 11 nos fala da misericórdia geral e irrestrita de Deus. Misericórdia para com os judeus e misericórdia para com os gentios. Misericórdia para com os judeus que creem e para com os que são cortados, para com os gentios enxertados e para com os que permanecem na oliveira brava. Misericórdia de várias espécies e que produz resultados diversos, mas sempre misericórdia.
Vejamos o caso dos judeus incrédulos. Paulo afirma que “quanto ao evangelho, [eles] são inimigos por vossa causa; quanto, porém, à eleição, amados por causa dos patriarcas” (11:28). “Porventura tropeçaram para que caíssem? De modo nenhum” (11:11). Não há propósito na queda dos judeus. Nem eles quiseram cair, nem Deus quis que caíssem. E quem nunca quis que caíssem, um dia, os restaurará: “Virá de Sião o libertador, ele apartará de Jacó as impiedades” (11:26). Essa é a porção de misericórdia de Deus para os judeus incrédulos.
Mas e os gentios, que vivem nos seus pecados e na vacuidade dos seus pensamentos? Eles foram chamados a povoar a Terra com temor a Deus e respeito aos seus semelhantes. Quer Deus que isso se cumpra ou que não se cumpra? O que Deus quer pode ser frustrado? Nas bênçãos inerentes à aliança do povoamento da Terra consiste a misericórdia de Deus para com os gentios.
Porém, a parábola das oliveiras se centra na que representa a igreja, não na outra. Isso significa que a misericórdia de Deus para com o seu povo consiste em dispensar-lhe o seu cuidado como o agricultor cuida da lavoura. Nem os gentios, nem os judeus que foram cortados recebem esse cuidado. Portanto, o cuidado consistente no cultivo é a misericórdia específica e suprema de Deus para com o seu povo, que só é povo enquanto objeto do cuidado divino.
Na salvação daqueles que creem, o que faz a diferença é o que Deus realiza, não a natureza do homem. Podemos ser bons ou maus, fortes ou fracos, inteligentes ou ignorantes: isso importa para outras coisas, não para a salvação. Só o trabalho de Deus salva, só ele torna a oliveira útil para os homens. E esse trabalho consiste em cortar e enxertar. Deus corta a desobediência e enxerta a fé. Mas o faz de maneira tal que os cortados hoje poderão ser enxertados amanhã, e os enxertados poderão ser cortados (11:22-23).
Há um amor que é vizinho do ódio e se transforma nele. Um amor que motiva o crime passional. A misericórdia de Deus é o contrário dele: é a dissipação da ira. É a ira que o amor transfigura e cai sobre o mundo em forma de bênção. Deus, que faz nascer o seu sol sobre maus e bons e cair a sua chuva sobre justos e injustos, acaso fará descer a sua misericórdia só sobre alguns? Haverá impossível maior do que esse?
A misericórdia estende-se sobre os homens, como o céu cobre a Terra. Nenhuma parte do mundo lhe escapa. E não há nela traço de ira. Como a flor que não tem um só ponto de que se possa dizer: não é belo!, a misericórdia de Deus é isenta do mais leve aspecto do qual se possa afirmar: não é pura bondade!


O TEMPO DO ARREPENDIMENTO

No texto sobre a oliveira cultivada, Paulo não vacila em afirmar que os ramos desobedientes serão cortados. A afirmação é feita de maneira tão clara que somos levados a concluir que a reprovação da pessoa que inicialmente creu no evangelho era uma possibilidade clara, na mente do apóstolo. Todo aquele que um dia creu pode permanecer nessa fé ou decair dela.
Paulo não desenvolve além desse ponto a doutrina do desvio da fé. Limita-se a afirmar que essa é uma possibilidade real, mas não esclarece se os desviados podem ou não ser restaurados e até quando a chance de restauração lhes é oferecida. Duas são as razões principais da omissão: primeiramente, Paulo não tem o objetivo de entrar em detalhes sobre esse ponto específico; em segundo lugar, parece implícito que, se a fé produz o enxerto, não importa o momento em que o indivíduo crê: se ele o faz ou não após uma queda; em todos os casos, o que crê é enxertado.
A declaração “se não permanecerem na incredulidade serão enxertados” (11:23) aplica-se tanto aos que creem, na primeira oportunidade que lhes é oferecida, quanto aos que se arrependem, após terem caído da fé. Seria cruel Deus cortar pela falta de fé e não enxertar pela fé. Portanto, Se corta, ele também enxerta. Se corta sempre que há incredulidade, enxerta todas as vezes em que há fé, inclusive após uma queda espiritual.
Mas há quem duvide de que seja assim. O motivo da dúvida são textos como Hebreus 6:4-6, que declara ser “impossível que aqueles que uma vez foram iluminados e provaram o dom celestial e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que de novo estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia”.
Contudo, a impossibilidade a que Hebreus se refere não é de que o pecador seja restaurado. É, antes, impossibilidade de renovação do arrependimento ou, como o autor já dissera, de lançar novamente a base do arrependimento (Hb 6:1). O judaísmo envolvia muitos atos de purificação, o que levava o judeu a questionar se o arrependimento devia ser renovado cada vez em que ele se purificava. Porém, em grego, arrependimento (metanoia) significa mudança de mente. Não é possível, ao ser humano, mudar tantas vezes de mente. Embora possamos sentir arrependimento em muitas ocasiões, só podemos lançar uma vez a base do arrependimento. Como Efésios afirma que há um só batismo (Ef 4:5), o qual é para arrependimento (At 13:24), devemos entender que há um só arrependimento.
Embora Paulo não entre em detalhes, está implícito no seu pensamento que os ramos cortados da oliveira podem ser restaurados, pelo retorno à base do arrependimento. Resta, portanto, indagar até quando a chance de restauração permanece para eles. Podem os decaídos ser restaurados até o instante da sua morte ou mesmo depois dela?
Que o homem será julgado pelo que tiver feito no corpo está claro, nas Escrituras. Paulo afirma que “importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo” (2 Co 5:10). Porém, no versículo anterior a esse, o apóstolo diz que “nos esforçamos, quer presentes, quer ausentes, para ser agradáveis” a Deus (2 Co 5:9). Ausentes significa ausentes de Cristo, pois a passagem esclarece que, “enquanto no corpo, estamos ausentes do Senhor” (2 Co 5:6). É, pois, fácil entender, por essa passagem, que o cristão pode esforçar-se para agradar a Deus não só enquanto permanece no corpo, mas também depois de se despojar dele.
Digamos que uma pessoa se desvie da fé e morra no estado de incredulidade. Estamos em condição de afirmar que, após a morte, ela ainda terá oportunidade de se arrepender? Podemos declarar que a oportunidade lhe será oferecida assim como foi em vida, ou seja, de modo ininterrupto? As Escrituras não respondem essas perguntas de maneira clara. E o que não está claramente revelado pode ser objeto de diferentes opiniões. Mas uma coisa está clara: que a incredulidade leva à separação, e à fé, à reimplantação na oliveira. Disso não podemos duvidar.
O clássico O pastor de Hermas, escrito em meados do século II, ensina que o tempo do arrependimento não é a vida no corpo, mas o período em que a igreja de Cristo é edificada. Enquanto a edificação da igreja não houver terminado, o arrependimento estará à disposição tanto dos vivos quanto dos mortos.
O Pastor foi mantido em alta estima pela igreja cristã, durante muito tempo. Chegou a ser incluído no cânon das Sagradas Escrituras, mas foi finalmente retirado e incluído no rol dos apócrifos. Os termos em que ele coloca a oportunidade do arrependimento são excessivamente fluidos. Não parece diferenciar entre arrependimento dos que um dia creram e dos que nunca chegaram a crer. A todos os tipos de pessoas, em todas as situações possíveis, oferece alguma possibilidade de arrependimento.
Fixa esse ensinamento em visões. Uma delas é a da construção da torre (a igreja). Algumas pedras são incluídas na construção, outras não. “Ouve agora o que se refere às pedras que entram na construção”, diz a mulher que explica a visão a Hermas. “As quadradas e brancas, que se ajustam bem entre si, são os apóstolos, os bispos, os doutores e os diáconos [...] Uns já morreram e outros ainda vivem [...] As [pedras] que entram na construção sem ser talhadas são os que o Senhor aprovou, porque andaram no caminho reto do Senhor e respeitaram perfeitamente seus mandamentos [...] E aquelas que são levadas e postas na construção são os novatos na fé, porém fieis” (O Pastor de Hermas. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. pp. 181-182).
As pedras não incluídas na torre, porém, “são aqueles que pecaram e que desejam fazer penitência. Por isso não foram jogados muito longe da torre. Se fizerem penitência, serão úteis para a construção [...] contanto que façam penitência agora, enquanto a torre ainda está em construção” (idem. p. 182). Por fim, as pedras “jogadas bem longe da torre são os filhos da iniquidade: têm fé hipócrita e nenhuma forma de maldade se afastou deles. É por isso que não alcançam a salvação” (idem). Esses que foram jogados longe da torre “tiveram fé, mas, devido às suas dúvidas, abandonaram o verdadeiro caminho” (idem. p. 183).
Após essas explicações, o autor pergunta à mulher: “As pedras rejeitadas e impróprias para a construção podem fazer penitência e encontrar lugar na torre? Ela lhe responde: Podem fazer penitência, mas não podem se encaixar nessa torre. Elas se encaixarão em outro lugar muito menor e só depois que tiverem passado pelas provações da penitência e cumprido os dias necessários para expiar seus pecados” (idem. p. 184).
Vê-se que, na visão do Pastor, o tempo do arrependimento é o da construção da torre, ou seja, da igreja (idem. p. 256). Ensina também que, a cada tipo de penitência, corresponde uma espécie de salvação. Os próprios filhos da iniquidade, deixados longe da torre, podem arrepender-se e ser incluídos no “lugar muito menor”, ainda que não na torre. De sorte que não há penitência a que não corresponda salvação.
Pode, porém, não haver penitência alguma, como no caso dos “apóstatas e traidores da igreja que, com seus pecados, blasfemaram o Senhor e que ainda se envergonharam do nome do Senhor invocado sobre eles. Tais indivíduos estão definitivamente mortos para Deus” (idem. p. 240). Os que não alcançam arrependimento não podem ser salvos, porém os que o alcançam, ainda que tarde, não podem deixar de o ser.
Claro que o Pastor não pertence ao cânon das Escrituras. Não tem, por isso, a autoridade de Romanos. Mas ilustra como os cristãos antigos pensavam. No mínimo, deixa claro que eles criam firmemente na eficácia do arrependimento. E esse ensinamento de O pastor de Hermas não desafia o das Escrituras, antes o reflete. Hebreus, por exemplo, não afirma que Esaú arrependeu-se, mas não foi salvo. Diz, ao contrário, que “não achou lugar de arrependimento, embora, com lágrimas, o houvesse buscado” (Hb 12:17). Esaú buscou, mas não encontrou o que buscava. Se tivesse encontrado, teria sido aceito.
Tudo indica, portanto, que o arrependimento verdadeiro e único, aquele no qual Hebreus nos exorta a permanecer, foi posto por Deus como uma base segura e certa de salvação. A vida inteira do homem, não só parte dela, deve refletir o seu arrependimento. Deve ser marcada por ele. Isso significa, com toda simplicidade, que quem um dia se achegou a Cristo não pode e não deve, de maneira alguma ou por pretexto qualquer neste mundo, voltar-lhe as costas. Fazê-lo seria arrepender-se do arrependimento pelo qual foi salvo. E arrepender-se do arrependimento é não se arrepender de maneira alguma.
Vivemos num mundo cheio de cantos de sereia. Cada qual entoa uma tentação. Uns dizem: “Quando a pessoa se acha em estado de desespero, crer é aceitável, mas não quando ela se liberta do desespero”. Outros arrazoam: “Para quem não é instruído ou autossuficiente, a fé pode ser uma boa alternativa de vida, mas não para quem o é”. E ainda outros propõem: “Na idade imatura, crer pode ser uma atitude romântica, mas é preciso abandonar as coisas de criança, quando a razão pede o seu preço”. A esses cantos de sereia, que turvam a mente e alucinam o coração, respondo somente: por que um homem que se arrependeu dos seus pecados deve arrepender-se do seu arrependimento? Não agiu responsavelmente ao se arrepender? Para que deve revogar o seu ato responsável, a não ser para assumir uma vida de pura irresponsabilidade?
Não importa se somos modernos ou antigos, cultos e inteligentes ou ignorantes e ineptos, somos antes de tudo responsáveis para com Deus. Pode parecer lindo o homem inventar o seu próprio pós-cristianismo. No fundo, é um canto de sereia medonho, que leva a trocar a promessa pelo repasto, o bem eterno pelo festival dos prazeres: “Guarda-te não te esqueças do Senhor teu Deus [...] para não suceder que, depois de teres comido e estiveres farto, depois de haveres edificado boas casas, e morado nelas; depois de se multiplicarem os teus gados e os teus rebanhos, e se aumentar a tua prata e o teu ouro, e ser abundante tudo quanto tens, se eleve o teu coração e te esqueças do Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão” (Dt 8:11-14).
Esse texto é o evangelho no Antigo Testamento. Exorta-nos a não experimentar o arrependimento como algo fugaz, passageiro, que a mesa que engorda o coração dissipa como uma névoa. Exorta-nos a ter o coração marcado, de modo perene, pelo arrependimento e a terminar por meio dele o que se iniciou com ele.