quarta-feira, 19 de março de 2014

História Hipotética da Igreja (3): Os Grandes Apócrifos

O período que antecedeu a difusão da fé cristã no mundo foi marcado pelo florescimento sem precedentes da literatura entre os judeus. A composição do Antigo Testamento se completou e um longo rol de outros textos foi redigido, nessa época. De modo que, quando Jesus e os apóstolos fizeram ressoar sua mensagem, não só os judeus da Palestina como os que se achavam dispersos pelo Império Romano estavam preparados para interpretá-la e pregá-la ao mundo, com base naquela literatura.
O que nem sempre se discute é o papel desempenhado pelos livros apócrifos nesse processo de interpretação e pregação da mensagem cristã. Por apócrifos, entendemos as obras que foram suficientemente acolhidas e copiadas para chegar até nós, mas não entraram no cânon das Sagradas Escrituras. Por se distinguirem pela não inclusão na Bíblia, esses livros são geralmente tomados como verdadeiros acréscimos às tradições conservadas nela.
Mas, se isso for mesmo verdade, será uma verdade incompleta, já que o papel da literatura apócrifa não se restringiu a introduzir acréscimos à mensagem cristã. Os apócrifos tiveram função mais ampla que a de suplementar o Novo Testamento. Serviram também para explicá-lo, regulamentá-lo e até para questioná-lo (no caso dos apócrifos derivados de seitas como as gnósticas).
Se nos ativermos apenas à Bíblia e aos apócrifos, pondo de parte as cartas, os textos de edificação, os escritos apologéticos e todas as outras obras que têm autores conhecidos, poderemos concluir que o estabelecimento dos fatos, do ensino e do sentido da vida de Jesus realizou-se nas páginas do Novo Testamento, porém não a transformação desse material numa regra de vida individual e coletiva bastante clara para ser preservada, ao longo dos séculos. Essa última função foi exercida, em grande medida, pela literatura apócrifa.
Dentre os apócrifos do período neotestamentário, alguns tiveram maior aceitação, como o Livro de Enoque, a Didaqué, a Epístola de Barnabé e O pastor de Hermas. O primeiro é a única obra apócrifa citada diretamente nas Escrituras (Jd 14-15). O interesse e a alta estima que despertou talvez se expliquem por esclarecer o papel escatológico de uma figura, cujo título Jesus utilizara para se referir a si mesmo, a saber: o filho do homem. Em Enoque, o filho do homem é, de fato, um juiz que se manifestará no final dos tempos.
Porém, passado o intenso interesse escatológico por Enoque, o apócrifo neotestamentário que teve influência mais duradoura nas comunidades cristãs parece ter sido a Didaqué ou Ensino dos doze apóstolos. Da leitura desse livro depreende-se a intenção tipicamente judaica de seu autor de dar concretude à mensagem cristã, mediante uma prática individual e comunitária que a tornasse manifesta ao mundo. É exatamente isso que a Didaqué realiza.
Ao realizá-lo, ela deixa de lado a intenção de complementar ou acrescer às tradições do Novo Testamento. Quase nada encontramos, na Didaqué, com esse caráter. Tudo nela, ao contrário, transparece a intenção de transformar em vivência individual e coletiva a mensagem cristã. Daí o nome pelo qual se tornou conhecida e que a identifica como compêndio de ensinamentos dos apóstolos.
Há hoje um consenso de que a Didaqué foi escrita por um judeu cristão, por volta da última década do século I d. C. Essa época e a autoria judaica indicam que o livro foi escrito com um propósito não muito distinto do dos escribas e rabis judeus que usavam as glosas ao Antigo Testamento para regulamentar um ensino considerado sagrado. No caso dos escribas e dos rabis, esse ensino era a Torá; no do autor da Didaqué, era a mensagem de Jesus.
O livro executa esse trabalho em quatro seções, a primeira dedicada à ética, a segunda ao culto cristão, a terceira à ordem interna da comunidade, e a última à perseverança no caminho de vida apresentado por Jesus. A parte relacionada à ética mostra que a fé cristã foi logo concebida como uma prática da virtude. É nela evidente a intenção de simplificar a observância da lei de Deus pela redução dos seus mandamentos ao amor a Deus e ao próximo, como Jesus ensinara ao intérprete da lei (Mt 22:34-40).
Essa é uma chave interpretativa extraordinariamente importante. O Decálogo, com seus vários mandamentos relativos a Deus e ao próximo, reduz-se a esses dois. Não ter outros deuses, não usar o nome de Deus em vão, não cultuar imagens de escultura e guardar o sábado reduzem-se a amar a Deus. Honrar pai e mãe, não matar, não adulterar, não furtar, não prestar falso testemunho e não cobiçar dizem respeito ao amor ao próximo.
Com a redução da lei a esses únicos mandamentos, o cristianismo pretendeu não só tornar inteligível a vontade de Deus na Torá, mas indicar como ela pode ser posta em prática de maneira eficaz. Na dúvida entre proteger ou apedrejar o culpado de um crime, deve-se optar pelo que mais exprime o amor; na contingência de optar entre o dízimo e o culto de coração a Deus, deve-se preferir o que exprime com maior perfeição o afeto ao Criador.
Se ouvir a palavra de Cristo é a parte da experiência cristã que se realiza no coração, o cumprimento dos preceitos do amor a Deus e ao próximo é essa mesma fé posta em movimento. E visto que toda prática se manifesta como poder, o amor cristão é uma espécie de violência contra os instintos e os costumes baseados neles: “Não se deixe levar pelos impulsos instintivos. Se alguém lhe dá uma bofetada na face direita, ofereça-lhe também a outra face, e você será perfeito. Se alguém o força a acompanhá-lo pelo espaço de um quilômetro, acompanha-o por dois; se alguém tira o seu manto, entregue-lhe também a túnica. Se alguém toma alguma coisa que pertence a você, não a peça de volta” (Didaqué. In Padres apostólicos. 4ª e., São Paulo: Paulus, 2008. p. 344).
Em Romanos, Paulo se demora na descrição da experiência do coração, isto é, na internalização da lei de Deus. Mostra que, além de trazer a lume os mandamentos do amor, a prática de meditar a lei de Deus revela a fraqueza do mandamento por causa da carne, isto é, dos instintos que a enfraquecem e tornam o homem incapaz de colocar a lei em prática. Mas o autor da Didaqué não retorna a esse ensinamento, até porque a doutrina que ele transmite é a dos Doze, não a de Paulo.
Essa forma de apresentação da experiência cristã não é casual. Mostra que, por volta do ano 100 d. C., a interpretação do evangelho encontrada nos escritos de Paulo estava em vias de ser encoberta pela interpretação da Didaqué, segundo a qual a vontade divina se reduz ao amor a Deus e ao próximo, sem qualquer necessidade de diferenciar, como em Romanos, se a fonte desse amor é o próprio Deus ou a vontade do homem. O cuidado com essa diferenciação reaparecerá, aqui e ali, nos séculos seguintes, mas ela só será afirmada com energia máxima (antes da Reforma) nas obras de Santo Agostinho e dos autores que o seguem a respeito da graça.
A segunda seção da Didaqué define o que se deve fazer para celebrar a nova vida em Cristo. Em primeiro lugar, o cristão deve ser batizado. O autor o afirma, sem se preocupar em esclarecer que o batismo expressa o arrependimento diante de Deus. Preocupa-se mais em transmitir que ele deve ocorrer em água fria e corrente. A preocupação com a forma do ato mostra como era urgente a necessidade de dar concretude à vida cristã, no fim do primeiro século.
O batismo é apresentado como o ato que introduz a pessoa na vida cristã, como a prática vestibular da fé. Só depois dele são mencionadas as práticas por excelência do culto individual: o jejum e a oração. O primeiro deve ocorrer em dias certos, e a última há de conter determinadas palavras (idem. pp. 352-353).
Em tudo, nota-se a preocupação de definir o que deve ser feito no culto a Deus, não de um ponto de vista mecânico, mas a fim de expressar a fé do coração. No plano coletivo, o culto se centra na Eucaristia, da qual só os batizados podem participar. O autor estabelece, sucintamente, mas de modo completo, como há de ser celebrada essa comemoração. Cita as frases, as orações que devem ser pronunciadas em cada parte dela. Mas não diz o que vem antes ou depois da Eucaristia, o que permite entender que ela era o culto cristão inteiro (idem. pp. 353-354).
Na parte relativa à vida comunitária, a Didaqué trata principalmente da pregação. Esboça uma separação entre culto e vida comunitária que sugere que o primeiroéa o memorial de ação de graças da assembleia a fim de comemorar a salvação, ao passo que a pregação é o núcleo da vida comunitária, ou seja, do restante da vida cristã coletiva.
O culto cristão requer o complemento de uma vida comunitária intensa e ordenada. Se o primeiro se confunde com a Eucaristia, o centro da última é a pregação, à qual a terceira seção do livro é quase inteiramente dedicada. O pregador é geralmente chamado profeta e, às vezes, também apóstolo. Com isso, pretende-se destacar que é alguém inteiramente devotado à palavra de Deus, como o profeta do Antigo Testamento, mas não um profissional da palavra, como os advogados ou retóricos da época.
Esse perfil de pregador é ressaltado quase ao ponto do exagero: “Todo apóstolo que vem até vocês seja recebido como o Senhor. Ele não deverá ficar mais que um dia ou, se for necessário, mais outro. Se ficar por três dias, é um falso profeta. Ao partir, o apóstolo não deve levar nada, a não ser o pão necessário até o lugar em que for parar. Se pedir dinheiro, é um falso profeta [...] Por isso, tomem os primeiros frutos de todos os produtos da vinha e da eira, dos bois e das ovelhas, e os deem para os profetas, pois eles são os sumos sacerdotes de vocês. Se, porém, vocês não têm nenhum profeta, deem aos pobres” (idem. pp. 355, 357).
O apostolado e o ofício profético estão relacionados a uma economia ou regime de distribuição de bens materiais. Os pregadores itinerantes (apóstolos) não podem ser pesados às famílias que os recebem. Não podem pedir dinheiro, comida podem. Ao menos é o está implícito na afirmação do direito dos pregadores de receber alimento de quem os hospeda. E os pregadores não itinerantes (chamados simplesmente profetas) têm direito de receber seu sustento não de certa família, como os apóstolos, mas da comunidade inteira, por meio do dízimo. No Antigo Testamento, esse era destinado aos sacerdotes; no Novo, é oferecido aos pregadores.
Embora se preocupe tanto em definir as bases da vida comunitária, o apócrifo atribuído aos apóstolos não se refere aos presbíteros ou aos diáconos, mas apenas aos pregadores. É como se a essência da liderança cristã se contivesse na pregação e fosse exercida por meio dela. Lutero reafirmará esse ponto, com a energia das suas palavras, quase um milênio e meio mais tarde.
Na ordem instituída pelos apóstolos, o ministério da palavra antecede a ajuda aos pobres. Por isso se diz: “Se não têm profeta, deem aos pobres”. A comunidade cristã existe para manter aceso o candeeiro da palavra de Deus. Essa é a sua missão principal no mundo. Sua missão segunda é prestar socorro aos necessitados.
A última parte da obra é dedicada à perseverança. Sua intenção é mostrar que não adianta ser cristão por uma hora. É preciso manter essa identidade, mediante as práticas da Didaqué, até o fim, já que, para Deus, a hora final é mais importante que as outras: “De nada lhes servirá todo o tempo que vocês viveram a fé, se no último momento vocês não estiverem perfeitos” (idem. p. 359).
A Didaqué transmite-nos mais que a visão de uma pessoa. É o testemunho mais completo que possuímos do modo de ver predominante, nas comunidades cristãs, no final da era apostólica. A visão do evangelho que nos transmite tem as características necessárias para ser considerada genuinamente apostólica. Verdade é que, aqui e ali, o texto diverge de Paulo, porém, como o título da obra esclarece, a Didaqué é uma interpretação do ensino dos Doze, não do de Paulo. E, se os Doze eram judeus, é provável que a sua preocupação com a prática e a exteriorização da fé se tenha refletido na doutrina que nos legaram. Aliás, a referência aos Doze indica que a Didaqué transmite o padrão, a posição predominante entre os cristãos, da qual o ensinamento de Paulo diverge, em certos momentos, por representar o ápice da pregação apostólica.
Tanto quanto a Didaqué o revele, o cristianismo primitivo era uma pregação e uma prática da palavra de Deus revelada nas Escrituras. O texto como o encontramos em manuscritos antigos nada retira, acrescenta, pretende retirar ou acrescentar àquela palavra. Seu objetivo, ao contrário, é mostrar de que modo, após a vinda de Cristo, o comando dado por Deus, em seguida à entrega dos Dez Mandamentos, se fez entender pelo povo de Deus: “Agora, pois, ó Israel, que é que o Senhor requer de ti? Não é que temas o Senhor, teu Deus, andes em todos os seus caminhos, e o ames, e sirvas ao Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma?” (Dt 10:12). A Didaqué é a resposta inspirada na encarnação do Verbo a essa pergunta da lei.