Os leitores do Pasquim, que circulou nos anos de chumbo da ditadura militar, riam às fartas da sua irreverência e das críticas implacáveis que dirigia aos governos da época. Mas, conscientes dos riscos que corriam com as críticas, seus editores os preveniam, fazendo estampar abaixo do nome do periódico, na primeira página, a mordaz explicação: “órgão de oposição ao governo grego”. Assim, quem lesse o Pasquim entendia que falava mal do governo, mas não, é claro, do nosso.
Ao tratar da questão espinhosa do planejamento, nesta série de textos, não posso me furtar a abordá-la, também, em relação às políticas adotadas, no Brasil, durante o seu desenvolvimento capitalista. Mas não o pretendo fazer com o preconceito dos que permanecem incapazes de reconhecer os méritos deste ou daquele governo, porque seus chefes não pisavam em determinado campo do território político. Pretendo, ao contrário e de boa-fé, tratar das políticas dos governos recentes com a maior isenção possível. Porém, se não o lograr, neste tempo pré-eleitoral conturbado, peço que entendam que me referi a todos eles como “governos gregos”.O desenvolvimento econômico se fez, entre nós (como em outras grandes nações), sob o conselho e o signo da intervenção estatal. Sem intenção de desculpar os sacrifícios de direitos realizados naquele tempo, do ponto de vista econômico, o processo foi bem-sucedido, já que o desafio formidável do desenvolvimento foi superado. Deixou, porém, uma herança, sob a forma da disposição excessiva a resolver problemas econômicos pelo método da intervenção estatal.
O problema da intervenção é que um só remédio não pode curar todas as doenças. Se o desenvolvimento se fez, entre nós, por recurso à intervenção, os males que o sucederam já não puderam ser curados pelo mesmo método. Uma, portanto, no cravo, outra na ferradura. E é claro que não padecemos de um único mal, nem tivemos um só problema econômico, após termos atingido o primeiro plano da produção mundial, nos anos 70. Porém, um problema se destacou dos demais e atraiu mais esforços dos governos para combatê-lo. Refiro-me à inflação crescente, que se instalou no Brasil a partir dos choques do petróleo.
Quem, como eu, alcançou a idade adulta nesse período acostumou-se logo com a mudança cada vez mais veloz dos preços das coisas. Não entrarei em detalhes a respeito da gênese e da espécie do processo inflacionário da época. Tampouco discutirei se tivemos processos vários e sobrepostos ou se causas diversas desencadearam um só fenômeno galopante de carestia. O que importa ao olhar retrospectivo é que, em certo momento, a inflação atingiu patamar e índole tais que se tornou a sua própria causa, passou a alimentar-se de si mesma e se fez um fenômeno inercial.
O uso popular atribui à palavra inércia o sentido comum de resistência ao trabalho ou ao movimento. Estar inerte é nada fazer. Porém, em Física, inércia é o princípio segundo o qual um corpo tende a manter o estado (de repouso ou de movimento) em que se encontra.
O que os economistas fizeram foi lançar mão da imagem de um movimento (não do repouso) físico para descrever a inflação brasileira daquele período. Como a carestia devastava o país independentemente das causas clássicas da inflação, os economistas passaram a denominar inercial o processo de aumento de preços que se autoalimentava.
Mas por que a inflação se tornou a sua própria causa? A explicação mais simples talvez seja a que mostra a relação do fenômeno com as expectativas. Num sistema econômico fechado ou aberto, quanto mais inflação se produz, mais se espera, mas não só isso: quanto mais a inflação persiste, por causas várias, mais os agentes econômicos passam a antecipar os aumentos de preços para se protegerem da desvalorização da moeda.
É inevitável que os bens de um agente tenham determinado valor em moeda, em dado momento histórico. No contexto de uma inflação inercial, para evitar que esse valor se deprecie rapidamente, os agentes aumentam os preços dos bens em circulação, independentemente da atuação de qualquer outra causa inflacionária. Fazem-no simplesmente por esperarem mais inflação. Ao se generalizar, esse comportamento empresta à inflação o caráter inercial. E, não poucas vezes, a ele se segue, ainda, o aumento concertado e ritmado dos preços pelos agentes, a fim de corrigir distorções causadas pelo aumento espontâneo deles. Essa recomposição dos preços relativos costuma ocorrer por mecanismos como os gatilhos e os índices inflacionários.
Se, a princípio, a inflação que assolou o Brasil, entre meados da década de 70 e meados da de 90, teve causas específicas e distintas da própria inflação, como as ameaças à oferta internacional de petróleo e o déficit público interno, a partir de determinado momento, o componente inercial tornou-se o mais importante. Para combatê-lo, o país lançou mão do método de ação maciça no mercado que tradicionalmente utilizara para promover o crescimento econômico e ao qual estava habituado, a saber: a intervenção estatal.
O emprego antiinflacionário da intervenção materializou-se nos planos econômicos conhecidos como Cruzado I e II, Bresser, Verão e Collor I e II. Todos tiveram por núcleo o alto grau de intervenção estatal, a fim de baixar os preços. Nos quatro primeiros, a intervenção assumiu a forma do congelamento de preços. Nos outros, teve por fundamento o sequestro de dinheiro das pessoas físicas e jurídicas. Esses planos tiveram sucesso, maior ou menor, em reduzir a inflação no curtíssimo prazo. Nada mais do que isso. Passado o alívio da primeira hora, a inflação retornou mais forte do que antes dos planos.
A recordação desses acontecimentos não é intempestiva, já que o país ainda se ressente não só do insucesso dos planos para conter a inflação, mas de consequências negativas que eles ainda produzem. Falemos apenas do dia de hoje e da semana em curso: o Supremo Tribunal Federal está prestes a julgar as perdas causadas por vários daqueles planos a correntistas e poupadores. Tal é a sombra que o julgamento projeta sobre o país e tal a ameaça que os planos ainda representam para o sistema financeiro que os bancos propuseram ao STF beneficiar um pequeno grupo de poupadores e correntistas em troca do encerramento das demandas. A alternativa a esse acordo, segundo os próprios bancos, é um rombo nas suas contas de cerca de R$ 150 bilhões.
É claro que o acordo ou a condenação dos bancos em última instância ocorrerá porque eles teriam sido beneficiados pelos expurgos inflacionários e outras medidas decretadas no bojo dos planos. Puseram dinheiro no bolso: terão de devolvê-lo. Mas as coisas não são tão nítidas, no país da matemática. Delfim Netto assim se pronunciou sobre o tema:
“Trata-se, no final, de uma questão objetiva e simples: o poder de compra dos depósitos das cadernetas de poupança diminuiu entre o período imediatamente anterior e imediatamente posterior aos planos? Uma honesta e competente Nota de 18/11/2008, da Secretaria Extraordinária de Reformas Econômicas e Fiscais do Ministério da Fazenda, demonstrou que não!
É possível que haja uma pequena exceção no Collor 2. Estudos posteriores (Ernest & Young Terco, agosto de 2013, e Eric S. Maskin, fevereiro de 2014), mostraram, por outro lado, que não há evidência empírica que os planos tenham resultado em lucros excepcionais para o sistema bancário público e privado” (DELFIM NETTO, Antonio. Folha de S. Paulo. 12/11/2014, p. A 2).
Devemos, pois, concluir que os planos impuseram graves perdas à população e às empresas, sem mitigar o problema inflacionário. Não beneficiaram, claramente, segmento econômico algum, nem mesmo os bancos. E ainda deixaram a bomba das indenizações a serem pagas, não só pelo sistema financeiro, mas também pela União. É ainda de hoje a notícia de que a União terá de pagar a bagatela de R$ 6 bilhões à antiga Varig como indenização pelo congelamento das tarifas aéreas, nos anos 80 e 90. Ainda não saímos do noticiário do dia e já concluímos que os planos beliscaram o dragão da inflação, piscaram para ele, provocaram sua fúria, não o mataram e ainda deixaram despesas altíssimas de funeral deles próprios para serem pagas.
Não é demais lembrar que só uma pequena parte das pessoas lesadas requereu a indenização a que tinha direito. Mesmo assim, os valores a serem pagos sobem às cifras citadas. Imaginem se todos os que sofreram prejuízo tivessem reivindicado a reparação devida. Imaginem se o ordenamento jurídico tivesse sido aplicado inteiramente, como é normal, aos planos econômicos. Que teriam eles, então, produzido para a nação?
Os planos antiinflacionários ilustram sobejamente os perigos do excesso de intervenção estatal na economia. E, para que não digam que o grau de intervenção foi casual e não refletiu um elenco de princípios, cumpre lembrar que os planos foram criados por economistas abertamente favoráveis à intervenção mais acerba.
Pobre país o que não preserva a memória de fatos como esses. Claro: aprendemos muito com os planos antiinflacionários, o que não é uma pequena vantagem. O fracasso das medidas interventivas do Cruzado, do Bresser, do Verão e do Collor foi condição sine qua non do sucesso do Plano Real, que controlou finalmente a inflação no país. Mas o fato de termos aprendido com o fracasso não o torna recomendável, nem credencia a sua reprodução.
E o mais importante a se extrair de um fracasso são as lições que nos lega sob a forma da confirmação de princípios. A primeira lição emana da gênese e da estreita relação dos planos com o excesso de intervenção estatal. Não reconhecer, nessa gênese e nessa relação, um ensinamento é não aprender com a História.
A intervenção estatal é sempre necessária e, muitas vezes, benéfica. No entanto, há uma diferença entre intervenção planejada e política errática. A diferença define o que é joio e o que é trigo, em matéria econômica. No entanto, os planos conseguiram ser, ao mesmo tempo, exemplos de planejamento desastroso e de intervenção errática. Digo-o, na oportunidade das mudanças que o país atravessa e da eleição que se avizinha e não apenas para avivar o passado. O Brasil precisa acertar o caminho que leva a um futuro luminoso. Não pode, portanto, errar. Menos ainda errar grosseiramente.
Precisamos de política econômica, isso é certo. O difícil é acertar o tom dela. Qual deve ser a essência dessa política? Talvez possamos afirmar que ela deve consistir em caracterizar o processo atual do país como uma emergência continuada. O Brasil foi progressivamente visto como um dos principais e mais promissores países emergentes do mundo, depois de ter controlado a inflação. A tarefa dos próximos governos consiste em promover as condições necessária para que não percamos essa situação e as vantagens que decorrem dela.
Alguns mercados começam a emitir sinais contrários à ideia de que somos um país emergente. Cada vez mais, ouvem-se argumentos contrários à inclusão do Brasil nos BRICS e ao papel grandioso destes e dos emergentes na cena mundial. Olham para o Brasil e perguntam: ainda é um país emergente? O próprio sentido da ascensão econômica de nações está em xeque. Sabemos o que era emergência até a crise financeira de 2008. Mas, depois dela, continuamos a sabê-lo? Os que respondem prontamente sim não parecem entender bem a crise e seus reflexos atuais. Por isso, superar o desafio de continuar a ser um país emergente deve constituir o núcleo de toda política econômica do país, nas próximas décadas.
Para crescer a taxas típicas de emergente, com aceitável distribuição de renda, o Brasil não pode incidir repetidamente no erro das políticas orientadas a fins eleitorais ou voltadas à hegemonia política de uma ou outra coalizão. As políticas públicas, inclusive as de menor alcance, devem trazer a marca do planejamento, não de coalizões e, muito menos, de interesses partidários.
Não é o que tem acontecido, no país, nos últimos quatro anos. Nesse período, cometemos, sim, erros que contribuíram para que os analistas formulassem as perguntas já mencionadas, que põem em xeque a nossa condição emergente. As perguntas são menos tolas, e a situação do país envolve mais riscos do que pode parecer à primeira vista. Assim é, em parte, por causa dos erros que temos recentemente cometido.
O autoritarismo do atual governo democrático, sua truculência na relação com outras forças organizadas e até com as que apoiam o governo, mas estão fora do seu núcleo duro, são exemplos desses problemas. Mas muitos outros podem ser citados, assim como o método recentemente adotado para reduzir as contas de luz dos consumidores e que conduziu à quebra da Eletrobrás. Desde a implantação dessa política, a queda das ações da estatal foi vertiginosa, o que importou a redução brutal do seu valor de mercado. Sem mencionar os prejuízos que a redução da tarifa gerou para outras empresas do setor elétrico. E sem esquecer, é claro, outras medidas erráticas do governo, a exemplo da maquiagem das contas públicas para reduzir déficits e aumentar superávits, o financiamento da redução do IPI de automóveis e eletrodomésticos e de outros encargos das empresas com recursos de fundos destinados aos Estados e Municípios. Portanto, com prejuízo para as políticas dessas entidades. E que dizer da Petrobrás? Na época dos regimes autoritários, o ditado prevalecente era "A lei? Ora, a lei..." Hoje parece ser "A Petrobrás? Ora, a Petrobrás..."
O conjunto das políticas governamentais citadas é responsável por parte significativa da perda de dinamismo que aflige o mecanismo econômico do país no presente. Ao afirmá-lo, é preciso acrescentar o princípio de que partimos: a intervenção planejada na ordem social pode ser benfazeja e exercer um papel fundamental no desenvolvimento integral de um país, mas é difícil de conceber e implantar. Contrariamente, a intervenção errática facilmente implanta a desordem na economia e, conseguintemente, na ordem social como um todo. É o que estamos a observar no Brasil.
Digo-o do modo mais equidistante possível dos interesses do mercado e do próprio governo. Não me refiro a uma redução grave da atividade econômica, como fazem os mais assaltados de nervosismo, mas reconheço que a redução tenderá a se tornar grave se apenas continuar leve por muito tempo. Para reduzir a zero a distância que nos separa do desastre, hoje, não precisamos de mais do que complacência com problemas como os que foram apontados, já que é da índole do capitalismo converter problemas localizados e persistentes em crises de dimensões imprevistas.
Manter o país na trilha da emergência, num mundo que não sabe mais o que é emergência, por certo, não é tarefa simples. Entendê-la é entender a essência da posição que ocupamos e do papel que nos cabe, no tabuleiro das nações. E realizá-la é um desafio ainda mais tremendo. Muitos países começaram a emergência econômica e pararam no meio do caminho, às vezes por causa das circunstâncias, mas geralmente em virtude dos seus próprios erros. A emergência não tem um teto a priori, como o exemplo dos Estados Unidos, que passaram de colônia a potência maior que as maiores metrópoles, demonstra sobejamente. Afastarmo-nos da situação caracterizada pela emergência incompleta e aproximarmo-nos da completa é o desafio que está colocado diante de nós e quase a nos dizer que tarefas não privilegiadas não podem ser realizadas.
O objetivo maior da economia é a justiça social. O Brasil realizou o desenvolvimento capitalista e controlou a inflação. Não foram pequenos feitos. Para realizar a justiça social em maior medida, precisa manter o papel de emergente e as vantagens daí decorrentes, pelo maior tempo possível. Para o nosso potencial, é pouco continuarmos a ser um país emergente, mas vocacionado à sofreguidão. A pobreza e as desigualdades regionais só recuarão significativamente, se formos capazes de provar a nossa emergência continuada.