terça-feira, 4 de março de 2014

O Exagero da Fé (e o da Descrença)

Mequinho enfrenta o campeão mundial
Boris Spassky
"Ruy: Ó bucéfalo anácrono! Não te interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito de minha habitação, levando meus onívoros à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares de minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência do que o vulgo denomina nada.
Ladrão: Dotô, eu levo ou deixo os pato?"

A anedota acima é uma caricatura dos absurdos a que a linguagem pode levar, quando transformamos seu uso em culto irracional. Ruy Barbosa foi, talvez, o caso maior de manejo a um tempo belo e abstruso da língua portuguesa. No relato acima, surpreende o ladrão a subtrair uns patos de seu quintal. Interpela-o veementemente e recebe resposta tão magnífica quanto perplexa.
Conhecimento e linguagem são inseparáveis. O problema é que os dois são vizinhos do absurdo. E o pior é que a fronteira entre eles nem sempre é bem demarcada e, portanto, respeitada. Os desprecavidos podem passar de um a outro sem o perceberem.
A Teologia também é um conhecimento. É possível afirmar que a própria fé também o é. O texto de Isaías o trai: “O  meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento, justificará a muitos” (Is 53:11). Sabemos que o texto em que esse verso se encontra foi tomado como a mais clara predição do Messias, no Antigo Testamento. Como tal, foi aplicado incontáveis vezes a Jesus. Por isso, quando o verso diz que o servo justificará a muitos, devemos entender que o fará pela fé, pois nada é tão cristalino nos escritos autênticos de Paulo quanto que a justificação se dá pela fé. Porém, no verso de Isaías, o que justifica é o conhecimento. Só resta concluir que, no pensamento bíblico, a fé não é o contrário do conhecimento, mas uma de suas espécies.
Isso se torna evidente, quando percebemos quanto a fé se reporta ao princípio conhecido como tertium non datur. Com a identidade e a não contradição, esse princípio
, também conhecido como terceiro excluído, compõe o elenco dos cânones fundamentais e primeiros da Lógica. Afirma, sucintamente, que algo é ou não é. Não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Chamamos primeiro princípio o que não se fundamenta em qualquer premissa ou em outro conhecimento. O que constitui a sua própria base. Observamos os princípios lógicos, simplesmente, porque pensamos assim.
Deus é ou não é: tertium non datur. Não há outra possibilidade. Mas exatamente por isso, a fé é tão fundamentada. Ela é conforme aquilo que costumamos denominar pensamento consistente. Já por esse motivo e até prova em contrário, podemos considerar que a existência de Deus é 50% provável. Mas, com 50% ou menos de probabilidade de cair um temporal, ao nos ausentarmos de casa, fechamos as janelas. E, com 50% de chance de ser assaltados, não vamos a certo lugar. Que dizer de coisas ainda mais importantes que um temporal e um assalto!
Para dizê-lo numa paráfrase, se Deus não existe, comamos e bebamos porque amanhã morreremos. Mas, se a verdade estiver no outro prato da balança das probabilidades, as consequências devem ser muito mais certas e ter muito maior impacto do que não ir a um lugar para não ser assaltado. Se Deus existe, nosso pensamento deve elevar-se muito mais amiúde a ele. Revelações de Deus ao homem devem ser procuradas. E a vida deve passar a refletir os princípios encontrados nessa comunicação como diretrizes fundamentais. Tudo porque Deus é ou não é.
Porém, por ser lógica, a fé corre constantemente o risco da redução ao absurdo. Não é novidade que, nos tempos modernos, os exageros da fé, as várias espécies de fanatismo, foram desmascarados como contrassensos e de fato o são. O que nem sempre se repara é que as pessoas, ao mesmo tempo, crédulas e muito brilhantes tendem a cair em contrassensos pelo procedimento particular da redução ao absurdo. Exageram a fé até dar à luz o contrassenso.
A Teologia está cheia de exemplos disso. Um dos mais proeminentes (para os críticos da fé, pelo menos) é o do brasileiro Henrique da Costa Mecking. Mequinho, como é conhecido, era um dos três maiores ídolos esportivos do Brasil, nos anos 70, pelo seu extraordinário desempenho no xadrez e pela incongruência de um gênio desse esporte surgir num país tão atrasado em ciência e outros campos do pensamento analítico quanto o Brasil. Por meio da propaganda, o regime militar, no auge de seu poder, criou a ufania de um Brasil imbatível da cabeça aos pés, numa alusão a Mequinho e Pelé.
Infelizmente, Mequinho foi acometido de uma doença mortal, quando ocupava o terceiro lugar no ranking mundial: a miastenia gravis. Foi desenganado pelos médicos, antes de visitar uma senhora da Renovação Carismática Católica, conhecida como tia Laura, da qual se dizia ter o dom sobrenatural de cura. Ao chegar à casa de tia Laura, Mequinho tremia de frio, por causa do estágio avançado da doença degenerativa. Tia Laura disse-lhe para tirar a camisa, pois Jesus o aqueceria. Ele o fez. Ela orou por ele e, a partir daquele dia, contra todos os prognósticos, Mequinho começou a melhorar. Atribuiu sua cura a Jesus e escreveu um livro (Como Jesus Cristo salvou minha vida) para dar testemunho disso.
O relato da cura de Mequinho é parecido com dezenas de outros, nos quatro Evangelhos. Sob esse aspecto, não surpreende. Mas choca e chama atenção a incompreensão com que a sua experiência é até hoje recebida, pelos de tendência cética. Numa entrevista concedida em 2010 à Rádio Xadrez (http://vidaemminiatura.blogspot.com.br/2010/12/ rx26-henrique-costa-mecking.html), Mequinho tornou a narrar sua cura. Disse que quer retornar à parte mais alta do ranking mundial, o que é impossível em atividades como o xadrez e a matemática, em que o apogeu costuma ser alcançado entre os 20 e os 30 anos de idade, e o declínio tende a ser inevitável a partir daí.
O que mais espanta, na entrevista, permitam-me dizê-lo, não é Mequinho crer contra toda essa improbabilidade que voltará ao topo do ranking. O espantoso são os comentários que se seguem à entrevista, que, em vez de focar igualmente os vários assuntos dos quais ele fala, tratam quase exclusivamente dos planos esportivos de Mequinho. E os tratam como delírio ou alucinação. Quase como uma demência religiosa.
Mequinho estudou Teologia e Filosofia Católica, depois de sua cura. É, para mim, patente que desenvolveu sua aspiração, com base nessa formação. E que não há delírio ou demência alguma nisso. Um pouco da sua entrevista bastará para mostrá-lo:
“Rádio Xadrez: Que planos tem para o futuro?
Mequinho: Voltarei a ser um dos melhores jogadores do mundo. Para Deus, tudo é possível. A maioria das pessoas acha que não conseguirei. A cura que Jesus me deu é progressiva e estou quase bom. Em 1979, estive à beira da morte. Não conseguia mais mastigar, só ingeria alimento líquido e não tinha força sequer para escovar os dentes. Hoje, estou quase curado e retornando ao xadrez. Tenho 58 anos de idade [62 em 2014] e, por minhas próprias forças, não teria a menor condição de alcançar esse nível novamente. Minha idade é só 10% da dificuldade. O que resta da doença corresponde aos outros 90%. Mas, assim que estiver totalmente curado, creio que retornarei ao topo. Meu rating [número de pontos que define a posição do enxadrista no ranking mundial] aumentará e meu jogo ficará progressivamente mais forte [...] Deus quer fazer coisas em que ninguém acredita, apenas para que entendam que foi ele quem as fez”.
É claro que os aficcionados e comentadores da entrevista se escalpelaram sobre essas declarações. Abandonaram o resto para deter-se na inspiração religiosa de Mequinho. Debateram, principalmente e de modo apaixonado, se ela é delirante. É uma boa pergunta: há delírio nas declarações de Mequinho? Duvido, apesar de ele levar uma vida monástica dedicada à fé e aos seus planos de retornar ao xadrez.
Mequinho encontrou a cura na Renovação Carismática: que há de errado em seu poderoso intelecto dobrar-se a essa experiência fortíssima? Ele estudou Teologia a fundo: que mal há em escorar sua esperança de retorno ao xadrez numa representação teológica de Deus? Haveria problema, talvez, se a escorasse numa representação ufológica ou política, mas teológica convenhamos...

O enxadrista contorna todas as pedras lógicas que o entrevistador coloca no seu caminho. Diz que retornará ao topo, mas explica, em seguida, que essa é a sua fé e que ela se sustenta na onipotência de Deus. A Teologia não ensina que Deus é, de fato, onipotente? Sim e, de novo por causa do terceiro excluído, Deus é ou não é. Se é, pode todas as coisas. Que mal pode haver em um homem, que recebeu formação teológica, comportar-se de acordo com a sua formação? O perigoso, o doentio, não é o contrário? Não é receber essa formação e tratá-la como nada?
Mequinho não deixa de reconhecer aspecto algum da realidade. Sabe que a idade, quanto mais avançada, mais prejudica o desempenho no xadrez. Só considera que a sua doença é um obstáculo maior que a idade. Ele e só ele está em sua pele. Só ele e seus médicos podem avaliar a proporção dos desafios postos pela idade e pela doença.
Quando o repórter sugere que a idade é um óbice intransponível, Mequinho não diz que não é. Não espera que Deus opere milagres contra a natureza. Argumenta somente que não saiu daquela faixa em que é possível alto desempenho enxadrístico. E o prova por meio de fatos:
"Rádio Xadrez: Karpov e Korchnoi [campeão mundial e segundo do ranking, quando Mequinho estava no auge] não estão mais entre os 20 maiores.
Mequinho: Um minuto, Korchnoi tem 21 anos mais do que eu. Então essa comparação não existe. Cerca de seis anos atrás, Korchnoi ainda conseguia ganhar torneios internacionais e fazia partidas brilhantes.”
Percebam as veredas que o pensamento de Mecking percorre. Ele crê no milagre, mas reconhece os limites postos pela natureza. Não os toma como limites ao poder de Deus, mas ao alcance do próprio milagre. Destoa, assim, do conceito teológico de que o milagre é a suspensão da lei natural. Acha que é um ato contra probabilidades muito reduzidas, mas compatíveis com a lei natural. Um ato, portanto, improvável, mas não impossível. E faz questão de demonstrar, pelo exemplo de Viktor Korchnoi, onde estão postas as probabilidades. Que é isso, afinal: racionalidade ou demência?
Na entrevista, não faltam sequer perguntas irônicas:
"Rádio Xadrez: O seu primeiro retorno, no Torneio Interzonal da América do Sul, em 1993, não foi muito bem-sucedido [...] Foi porque os outros jogadores oraram mais que você?
Mequinho: Cada pessoa tem a sua fé. Jesus disse: “Pedi e recebereis”. Então, eu posso pedir. Naturalmente, Jesus concede o que quer. Se tivesse de me conceder tudo, eu já seria campeão mundial."
Nenhum desprezo à fé de outras pessoas. Nenhum egocentrismo. Raciocínio consequente: Jesus é Deus; ele disse “Pedi e dar-se-vos-á”, então podemos pedir. Fé sem megalomania ou perda do senso do real: pedir é devido, receber é possível. Pedimos mais do que Deus pode distribuir. Se não é um limite, essa é a especial conformação que a justiça impõe à onipotência divina. Se não a impusesse, Mequinho teria conquistado o título mundial à força de encher os ouvidos de Deus.
Devemo-nos precaver contra os exageros da fé tanto quanto contra os da linguagem. Mas, tanto ou mais do que frente a eles, havemos de colocar-nos em guarda contra os exageros da descrença, que ouve a primeira possibilidade e ensurdece para a segunda, ouve que Deus pode não existir, jamais que ele “pode existir”.