terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A Torre de Babel (1): Um Deus, Muitos Deuses

No Ocidente, a ruptura pós-moderna começa com o abandono da inspiração divina das Escrituras. Porém, essa ruptura não se deu, ao mesmo tempo ou na mesma intensidade, em relação a todas as partes do Antigo e do Novo Testamento. A rejeição da ideia de que as Escrituras são infalíveis, por terem sido inspiradas por Deus, começou com as dúvidas sobre o que se usa denominar Pré-História Bíblica, ou seja, sobre os 11 primeiros capítulos de Gênesis. Não vem ao caso quando isso aconteceu. Todos sabemos que aconteceu. Sabemos que o leite da ruptura se derramou. Trata-se de entender por que se derramou e, principalmente, como devemos viver numa cultura que se privou em tão grande medida dele.
Contraditoriamente com o que os céticos mais extremados sustentam, há poucas razões para duvidarmos de que a edificação da torre e da cidade de Babel (Babilônia) ocorreu, na Mesopotâmia, por volta de 2.500 a. C. A descoberta de zigurates (edificações em forma de torre), em escavações arqueológicas, tornam no mínimo plausível que o relato de Babel constitua a memória de um acontecimento real: "Robert Koldewey e Bruno Meissner puderam demonstrar que as grandes torres em degraus, os chamados zigurates (‘colinas do céu’, ‘montanhas dos deuses’) eram característicos dos templos e das cidades da antiga Mesopotâmia, como o são hoje as torres das igrejas e os arranha-céus" (LÄPPLE, Alfred. A Bíblia hoje – documentação de História, Geografia, Arqueologia. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 1981. p. 46.).
Läpple acrescenta que torres assim foram edificadas “em todas as grandes cidades da Mesopotâmia”. Mas o que chama muito a atenção é que a de Babilônia não foi descrita só em Gênesis, mas também nos escritos do historiador grego Heródoto, que viveu de 482 a 420 a. C. De acordo com Heródoto, a torre tinha cerca de 90 metros de cada lado. À altura de 33 metros surgia o primeiro patamar e, sobre ele, outros seis. O último patamar do edifício dedicado aos deuses foi revestido de azulejos azuis. Essa torre a que Heródoto se referiu foi edificada por Nabopolassar e Nabucodonosor, sobre a “gigantesca base” de uma outra (a torre bíblica), cujo nome tomou. Essa gigantesca base foi o monumento desenterrado por Koldewey e sua equipe.
A “primeira torre” a que Läpple aludiu, portanto, foi a edificação mencionada na Bíblia. Embora a data da sua construção não tenha sido estabelecida, por dados arqueológicos, o também historiador C. W. Ceram mostra que a sua existência é estreme de dúvidas: "Koldewey desenterrou a gigantesca base [da torre primitiva]. Mas as inscrições provaram-lhe que a torre existira. Pelo menos a torre de que fala a Bíblia (e que, sem dúvida alguma, foi construída) já devia ter desaparecido nos tempos de Hammurabi. Mas a mais recente fora erguida ali pelos sucessores em memória da antiga. Nabupolassar deixou estas palavras: “Naquele tempo, Marduk ordenou que se construísse a Torre de Babel, que tinha enfraquecido e desmoronado em tempos anteriores a mim” (CERAM, C. W. Deuses, túmulos e sábios – o romance da Arqueologia. 7ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958. p. 252).
A convicção com que Ceram afirma que a torre foi construída não é gratuita ou destituída de fundamento histórico. Poucas linhas antes, ele se referiu às “informações que temos sobre a lendária Semíramis” como “duvidosas”. Percebe-se por essas palavras que Ceram não estava disposto a acreditar em qualquer documento ou a aceitar o depoimento de qualquer testemunha. Portanto, a existência da primitiva Torre de Babel é, historicamente, provável.
Comparemos essas informações com o que se encontra em Gênesis. Diz esse livro que o princípio do reino de Ninrode foi Babel, na terra de Sinear (Gn 10:10). A construção de Babel, por sua vez, aparece no capítulo 11 de Gênesis. Ninrode não é aí mencionado, porém a edificação de outras cidades lhe é atribuída (Gn 10:11).
Ninrode é, hoje, o nome de um lugar na Mesopotâmia. Como muitos nomes de cidades foram atribuídos em homenagem a personalidades destacadas do passado, é provável que Ninrode tenha realmente existido. Se assim for, ele deve estar relacionado não apenas com a construção de Babel e sua torre, mas também com o movimento religioso que inspirou essas notáveis obras da Antiguidade.
No seu clássico The two Babylons, Alexander Hislop propôs que esse movimento consistiu no abandono do culto ao Deus único (HISLOP,Alexander. The two Babylons. Disponível em www.biblebelievers.com/babylon/sect225.htm). Embora tenha levado longe demais essa intuição, é possível que Hislop estivesse correto ao relacionar a construção da torre bíblica à substituição do culto a uma divindade única pelo de vários deuses. Não que essa substituição tenha constituído uma simples transformação do monoteísmo em politeísmo. O que hoje denominamos monoteísmo não estava presente, no Oriente Médio ou em outro lugar do mundo, naquela época. É verdade que a história de Melquisedeque, em Gênesis 14, e a de Jó, no livro de mesmo nome, nos falam do culto ao Deus único, fora do povo de Israel. Sabemos da existência, nessa região, de muitos povos (chamados henoteístas) que adoravam um só Deus, mas não devemos pensar que o faziam do modo como Israel cultuava Iahweh. O culto monoteísta propriamente dito firmou-se em Israel, por volta da época de Moisés. De sorte que Melquisedeque, Jó e outras personagens bíblicas anteriores devem ter sido precursores desse monoteísmo, mas não exatamente monoteístas.
Sabemos que, quando Deus chamou Abraão para fora de Ur dos caldeus, não apenas a sua família, mas todas as tribos semitas daquela região adoravam outros deuses (Js 24:2). A exceção eram núcleos remanescentes do henoteísmo, não muito distintos dos de Melquisedeque e de Jó, espalhados pelo Oriente Médio. Gênesis explica essa situação como resultante do abandono do henoteísmo, a partir da construção da Torre de Babel.
Karen Armstrong informou que, no centro de Babilônia, o zigurate de Esagila era considerado a morada dos deuses na terra. De acordo com ela, “a cidade é chamada bab-ilani” (portão dos deuses), por esse motivo (ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 61). Através de Babilônia, o divino penetrava no mundo dos homens.
Armstrong chegou a afirmar que, no Período Paleolítico, pessoas de diversas partes do mundo passaram a representar o céu como um Deus Celeste ou Deus das Alturas único e sobranceiro, que criou todas as coisas a partir do nada. Sua opinião não se distancia da do filósofo do século XVIII David Hume, de acordo com o qual “o plano da natureza evidencia um autor inteligente, e nenhum investigador racional pode, após uma séria reflexão, suspender por um instante sua crença em relação aos primeiros princípios do puro monoteísmo” (HUME, David. História natural da religião. São Paulo: UNESP, 2004. p. 21). Embora essas palavras do cético Hume transpareçam alguma ironia, a posição que ele assume sobre a religião, na obra citada, não parece divergir da sua convicção íntima, a não ser por figuras de exagero (e ironia) empregadas aqui e ali.
Hume afirmou, por exemplo, que a mente humana só se fixa na ideia da existência de vários deuses, quando deixa “de lado as obras da natureza” e passa a observar “os sinais do poder invisível em diversos e contrários acontecimentos da vida humana”. Somente quando isso acontece, somos “levados ao politeísmo e ao reconhecimento de várias divindades”. A elevação da divindade “aos mais altos níveis de perfeição engendra enfim os atributos de unidade e infinitude, de simplicidade e espiritualidade. Esses conceitos sutis, que ultrapassam o alcance da compreensão comum, não conservam por muito tempo sua pureza original, mas precisam ser apoiados pela noção de intermediários inferiores ou de agentes subordinados que se interpõem entre os homens e a divindade suprema” (idem. pp. 30, 72).
Não se deve pensar que a História das Religiões tenha seguido um desenvolvimento único, do monoteísmo racional de Armstrong e Hume ao politeísmo posterior. O que a Pré-História Bíblica aponta é a existência do henoteísmo ao lado do politeísmo. Hans Küng resume de modo cristalino os estudos que levaram a essa conclusão: "Estudiosos do final do século 19 [...] como por exemplo Sir James G. Frazer (1854-1941), viam toda a história da humanidade dentro de um esquema preconcebido de estágios: primeiramente magia – em seguida religião – e hoje ciência [...] Na linha oposta, outros estudiosos, que em vez de seguirem a Darwin acreditavam na Bíblia – como por exemplo o Pe. Wilhelm Schmidt (1868-1954) e sua escola histórico-cultural – achavam que [...] os primitivos habitantes da Austrália teriam partido de um monoteísmo primordial. Só com o tempo este teria evoluído para um politeísmo, vindo por fim a degenerar em magia [...] Hoje estas duas teorias extremas estão abandonadas. Falta-lhes simplesmente a base empírica, porque na realidade as culturas dos diversos grupos tribais desenvolveram-se de maneira totalmente assistemática [...] Hoje os estudiosos estão convencidos de que os fenômenos e as fases [monoteístas e politeístas] se interpenetram. Por isso, em vez de se falar de fases e épocas (de uma sequência), prefere-se falar (de uma superposição) de camadas e estruturas, que podem se encontrar em estágios, fases ou épocas inteiramente diferentes [...] Em lugar algum se pode encontrar uma religião primordial" (KUNG, Hans. O princípio de todas as coisas. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 226-227).
Pode parecer que Küng exagera a importância do monoteísmo, ao mencionar a presença de elementos desse tipo de culto, ao lado de crenças e ritos politeístas tão remotos. Porém, a predominância do politeísmo é válida apenas do ponto de vista cultual. O reconhecimento de um Deus Supremo não cultuado é quase tão comum quanto o politeísmo. Armstrong se referiu a ele: "Quase todos os panteões têm seu Deus do Céu. Os antropólogos também O encontraram entre povos tribais, como pigmeus, australianos e habitantes da Terra do Fogo. Ele é a Causa Primeira de tudo e Senhor do céu e da terra. Nunca é representado por imagens, não tem templo nem sacerdotes, sendo sublime demais para o culto humano” (ARMSTRONG, Karen. Ob. cit. p. 23).
O que a história da Torre de Babel preserva é, portanto, a substituição do culto a um Deus único pelo culto a diversos seres divinos. Por que, no capítulo seguinte à história de Babel, Abraão deixa Ur dos caldeus? Sabemos que a sua migração está relacionada não só ao culto a Iahweh, mas à renúncia do que se tributava a outros deuses. “Então Josué disse a todo o povo: Antigamente vossos pais, Terá, pai de Abraão e de Naor, habitaram dalém do Eufrates, e serviram a outros deuses” (Js 24:2). Como surgiu esse culto, se a Mesopotâmia foi povoada pelos descendentes de Noé, que adoravam um só Deus? A resposta bíblica se centra em Babel e na construção da sua torre. Ali, embora não somente ali, o culto do único Deus foi traído e substituído pelo de muitos outros. Ali, o henoteísmo cedeu lugar ao politeísmo.
Porém, contra toda essa evolução da pesquisa bíblica e extrabíblica, o caráter lendário, quando não infantil e atrasado, dos relatos da Pré-História Bíblica é-nos proposto não só como provável, mas como certo. A ideia é sedutora, mas só para quem não conhece bem a estrutura dos textos bíblicos. Para quem compara com atenção as listas de personagens de Gênesis 5 e 10 com as de Esdras 2 e Neemias 7, cujo conteúdo é aceito como verdadeiro pelos críticos de Gênesis, a ideia do caráter lendário da Pré-História Monoteísta é que se afigura contraditória. Por que Adão, Sete, Enos, Cainã, Maalaleel, Jerede, Enoque teriram sido inventados, e Zorobabel, Jesua, Neemias, Seraías e outros não?
As simples palavras pós-moderno infundem impressão da mais alta inovação e do mais profundo poder crítico. Custa, porém, acreditar nesse ponto particular do grande movimento, cuja aceitação não cessam de nos demandar como se fosse o Everest diante do alpinista. Para propiciá-los ou simplesmente calá-los, só posso prometer que crerei no seu monte crítico no dia de São Nunca!