Chama atenção o fato de que esses numerosos textos divergiam em muitos pontos, sem que isso causasse perplexidade aos judeus. Para eles, a palavra de Deus era o conjunto completo de manuscritos hebraicos e a tradução grega do Antigo Testamento, com todas as divergências que apresentavam. Não é preciso acrescentar que essa concepção é muito distinta da dos católicos e protestantes do nosso tempo, que veem a Bíblia sob o ângulo limitado do feixe de manuscritos utilizado em traduções centenárias e rejeitam outros, por causa das variações que contêm em relação a eles.
Essas concepções antiga e moderna da Bíblia são como dois idiomas. É impossível nos entendermos com quem abraça uma delas, utilizando a outra. E, como Paulo adotava a primeira concepção, é impossível entendermos o que ele diz, com base na ideia moderna. Ao afirmar que toda Escritura é inspirada por Deus, 2ª a Timóteo 3:16 se refere aos incontáveis manuscritos hebraicos e à Septuaginta. Nós não dizemos a mesma coisa, quando sustentamos que as Escrituras são a palavra de Deus. E as consequências de ideias tão distintas não são de pequena monta. Para dizer o mínimo, uma ideia é aberta, não comprime a palavra de Deus num dogma, considera-a tão insondável quanto o próprio Deus, ao passo que a outra resolve todas as coisas e o próprio Universo no dogma que cristaliza.
Com base na primeira concepção, Paulo afirma que a justiça da lei e sua consequência (a vida eterna) estão claramente reveladas no versículo em que Deus ordena: “Guardareis os meus estatutos e as minhas leis, cumprindo os quais o homem viverá” (Lv 18:5). Mas o apóstolo conclui que não há um judeu ou prosélito capaz de cumprir todos os mandamentos da lei. Assim, ele se afasta da teologia rabínica, que supunha o contrário. Devemos indagar por que o faz. Que o leva a pagar o alto preço da discordância em relação aos seus compatriotas?
Paulo extrai a conclusão da incapacidade do homem de cumprir a lei da observação do que acontece. Qualquer um pode chegar a conclusão idêntica, se observar os atos humanos como ele o faz, ou seja, de mente aberta e sem preconceitos. A pecaminosidade humana não é uma ideia genial ou acessível apenas aos muito inteligentes. É acessível também aos menos dotados, desde que não sejam menos dotados de realismo.
No entanto, essa conclusão do bom senso fecha o acesso à salvação tão eficazmente quanto o querubim com a espada obstruiu o caminho para a árvore da vida, em Gênesis 3:24. Como Moisés diante da Terra Prometida, quem alcança essa consciência é capaz de vislumbrar, mas não de alcançar a salvação pelo caminho apontado em Levítico.
Paulo, porém, não desiste. A obstrução de um caminho coloca-o em busca de outro. Já o tinha encontrado no verso de Habacuque que afirma que “o justo viverá pela fé”. Reencontra-o em Deuteronômio 30. Nessa passagem, Moisés pronuncia as bênçãos e as maldições em que Israel haveria de incidir, respectivamente, pela obediência e pela desobediência a Deus. Nas bênçãos, Paulo acha “a justiça que provém da fé”: “Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu?” (10:6). E interpreta: “Para fazer descer Cristo” (10:6). “Ou: Quem descerá ao abismo? Isto é, para fazer Cristo levantar-se dentre os mortos” (10:7).
Sabemos que, em Deuteronômio, Moisés se refere ao mandamento da lei outorgada a Israel. Afirma que ele não está no céu ou no além-mar para que Israel os tenha de buscar tão longe. De que técnica interpretativa Paulo se vale para encontrar Cristo e não o mandamento em Deuteronômio? Da técnica da escola rabínica de Alexandria, cujo expoente maior, Fílon, se referira ao Logos (palavra) como um ser pessoal gerado de Deus. Se o mandamento da lei é palavra (Logos), é legítimo descrevê-lo como esse ser, ou seja, como o próprio Cristo. Como a passagem de Deuteronômio afirma, em seguida, que o mandamento está no coração e na boca de quem o conhece, não é equivocado espiritualizá-lo do modo como faz Paulo.
Lançada, pois, a base dessa interpretação, o apóstolo avança em direção à conclusão que quer compartilhar com os romanos. Se há, na lei, uma justiça inalcançável e outra alcançável, por estar perto de nós, no nosso coração e na nossa boca , Paulo não hesita em interpretar a proximidade dessa segunda justiça por meio dos versículos: “Quem nele crê não será confundido” (10:11; Is 28:16) e “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (10:13, Jl 3:5).
Diz mais: “Como invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? Como pregarão se não forem enviados? Pois está escrito: Quão belos são sobre os montes os pés do que anuncia boas-novas sobre coisas boas!" (10:14-15).
Cada palavra, nesses versículos, foi escolhida para exprimir o cerne da experiência inicial de salvação. Invocar é a continuação necessária de crer, como crer é o prosseguimento normal de ouvir. Mas, do modo como nem toda fé conduz à justificação, o invocar a que Paulo alude é específico. Para nada aproveita crer como os demônios creem (Tg 2:19) ou invocar como os que dizem “Senhor, Senhor” e não entram no reino dos céus (Mt 7:21). Crer é algo específico; invocar também o é.
No Antigo Testamento, Deus se tornou conhecido como Iahweh. Por isso, invocar era invocar esse nome (Gn 4:26). Se o nome de Iahweh não devia ser usado em vão (Êx 20:7), invocá-lo era o único meio de salvação disponível para o homem. Não era uma transgressão do terceiro mandamento, mas o contrário exato disso. No Novo Testamento, porém, a revelação foi além desse ponto. Invocar passou a ser invocar Jesus como Iahweh. Sob essa luz, “todo aquele que invocar o nome do Senhor” significa todo o que invocar Jesus como Senhor. As palavras Jesus, Senhor e Iahweh não são elementos de um rito. Por isso, o que importa não é a ordem ou a frase em que as pronunciamos, mas o sentido que lhes atribuímos ao pronunciá-las.
Paulo é muito claro nesse ponto. Afirma que com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa para salvação. Atrela, assim, a justificação à fé e a salvação, à confissão. Para ter valor, a invocação do nome de Jesus deve corresponder a uma confissão, exatamente como a fé, para ter validade, deve ser um ato do coração.
A confissão verdadeira é diferente de dizer apenas “Senhor, Senhor”. Em grego, confessar é homologéo, que significa dizer o mesmo. A palavra da salvação é a mesma que Cristo pregou. É a mesma que os apóstolos anunciaram. Não é outra, pois “se alguém, ainda que nós ou um anjo do céu, vos anunciar evangelho diferente do que vos temos pregado seja anátema” (Gl 1:8).
Quanto mais nos apartamos dessa palavra, menos capazes de invocar o nome do Senhor nos tornamos. Não importa o quanto falamos. A salvação não é uma experiência de loquacidade. É questão de falar o mesmo, de confessar o senhorio de Jesus: “Porque, se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos serás salvo” (10:9). Confessa-o quem diz “Senhor, Senhor”? Não, mas quem afirma, publicamente, por fé, que se sujeita ao jugo de Cristo.
E se a pessoa, após invocar desse modo o Senhor, retornar aos pecados? Essa complicação do problema da salvação é resolvida, em Hebreus, pelo arrependimento. Se nós, que somos maus, devemos perdoar o irmão arrependido 70 vezes sete, como Deus, que é bom, pode negar o perdão a alguém?
Quando diz que não é possível ao crente que retornou ao pecado lançar novamente a base do arrependimento, Hebreus 6:6 se refere à fé em Deus, à confissão e ao batismo (Hb 6:1) que concretizam o arrependimento. A confissão é um ato simbólico. Como tal, ela deve assimilar-se àquilo que representa: o ato de justiça de Cristo. Se Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados, devemo-nos arrepender também uma vez. Se, após tê-lo feito, voltamos a pecar, não devemos lançar novamente a base de arrependimento, mas apenas retornar a ela.
Como não cabe discutir que palavras, quando pronunciadas, implicam usar o nome do Senhor em vão, não é o caso de estabelecermos fórmulas invariáveis de confissão. Invocar o nome do Senhor não é dizer palavras sacramentais, mas dizê-las com o sentido de uma confissão. É confessar a mesma verdade, não a mesma palavra, pois a verdade pode ser expressa por diferentes palavras.
Paulo descreve assim o processo da justificação e da salvação inicial. Não utiliza estas duas palavras como sinônimos. Refere-se à justificação como parte da salvação inicial e a divide em quatro passos: o envio, a pregação, a escuta e a fé. O primeiro desses passos é dado por Deus; o segundo, pelo pregador, os dois últimos, pelo ouvinte da palavra de Deus. A esses passos podemos acrescentar o entendimento, pois Paulo afirma que muitos judeus têm zelo por Deus, mas sem entendimento (10:2), o que os impede de crer e de ser justificados.
A salvação completa, porém, inclui um passo adicional: a confissão. No Evangelho de Marcos, inclui também o batismo, que acompanha a confissão (Mc 16:16). Tudo considerado, chegamos a sete passos: o envio, a pregação, a escuta, o entendimento, a fé, a confissão e o batismo. Esse é o inteiro processo da salvação inicial.
Uma consequência prática emerge da diferença entre a justificação e a salvação: a de que algumas pessoas podem ser justificadas e não completar o processo da salvação inicial, por falta da confissão e do batismo. Paulo parece não só admitir essa consequência como entender a situação de alguns de seus compatriotas com base nela. Ao distinguir as experiências de crer e invocar, ele torna possível um entendimento mais flexível da situação espiritual dos seus concidadãos. Evita votá-los todos a um destino idêntico.
Muitos judeus creram em Jesus, mas não o confessaram. Nicodemos é um dos casos notórios. Em Romanos 10, Paulo parece inseri-los numa situação peculiar caracterizada pela presença da fé e pela ausência da confissão. É muito difícil entender o que isso significa em termos do destino eterno da pessoa. Mais ainda afirmar que essas experiências diferentes implicarão uma só consequência.
Porém, o capítulo 8 ajuda-nos a resolver o dilema: “Aqueles que de antemão conheceu também os predestinou [...] e aqueles a quem predestinou a esses também chamou, e aqueles a quem chamou, a esses também justificou, e aqueles a quem justificou a esses também glorificou” (8:29). É possível inverter a ordem dessas afirmações? É possível afirmar, por exemplo, que aqueles que glorificou, justificou e chamou Deus também predestinou?
Parece que não, pois Jesus declarou que “muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos” (Mt 22:14). Se a diferença entre os grupos constituídos pelos chamados e pelos escolhidos puder ser estendida ao grupo dos justificados, será possível ser justificado sem ter sido predestinado, do modo como é possível ser chamado sem ter sido escolhido.
Na parábola do banquete, em Lucas 14:15-24, um homem convida muitas pessoas para um banquete, mas apenas alguns (os menos dotados) comparecem. O convite é, assim, um símbolo do chamamento. Mas ao símbolo basta ter algo em comum com o que é simbolizado para cumprir a sua função. Não é preciso que ele seja semelhante à coisa simbolizada em todos os outros aspectos. Por isso, Jesus pôde se referir a Deus como um juiz iníquo. Na parábola do banquete, o fato de o convite ter sido recusado não implica que o chamamento de Deus seja comumente rejeitado. A parábola não foca esse aspecto do chamamento. Alguns dos que foram convidados e não compareceram à festa podem ter mantido excelente relação com o anfitrião, tanto antes como depois do convite. Devemos até supô-lo, pois o princípio da urbanidade o exige. Porém, se assim é, o chamamento não constitui um convite que, declinado, ponha fim à relação de Deus com o homem.
A frase “muitos são os chamados, poucos os escolhidos” deve ser interpretada literalmente. O chamamento de Deus é real. A eleição também. Não há motivo algum para a entendermos alegoricamente. Por isso, muitos são muitos, e poucos são poucos, não outra coisa. A lição da parábola é de que o número dos chamados é maior que o dos escolhidos, sem que uns ou outros estejam excluídos da relação com o anfitrião que representa Cristo.
Essa é a ideia presente, também, em Romanos 8:29-30 e 10:14-15. Paulo sugere que o grupo dos que creem e são justificados não é idêntico ao dos que invocam e são salvos. Há muitos pontos de semelhança entre os grupos, mas eles não são idênticos em tudo.
Podemos prosseguir, na senda de Romanos, e perguntar se a glória não é como a justificação e o chamamento. Se o número dos glorificados não excede o dos predestinados. Não podemos negar que as respostas a essas perguntas estão implícitas, não manifestas, nas parábolas e em Romanos. Aqui e ali, Deus semeou mistérios na revelação. Não entendemos mistérios, como não ceifamos sementes. Apenas as reconhecemos, esperamos que cresçam e se tornem vegetais maduros. Esse esperar não é destituído do mais fundo sentimento. Como o agricultor espera a messe com que sonha, também nós esperamos que as sementes da revelação se transformem em luz meridiana. E, enquanto esperamos, lembramo-nos dos entes queridos e rogamos por eles, como Paulo lembrava dos seus compatriotas (9:1-5) e intercedia em favor deles (10:1). Mas Deus é quem faz crescer a messe. Fará crescer isso ou aquilo, como lhe apraz, mas também como esperamos nele.