quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Livre Exame de Romanos (22): Crer e Ouvir

Depois de ter estabelecido que Deus salva o homem da escravidão do pecado, pelo ouvir seguido da fé e da confissão, Paulo passa a explicar por que seus compatriotas, descendentes de Abraão, não alcançaram a salvação. Diz sem rodeios que não foram salvos, porque não creram ou porque, tendo crido, não confessaram a sua fé em Jesus.
Para o afirmar, Paulo se apoia em Isaías, que pergunta quem creu na pregação dos profetas (10:16; Is 13:1). O termo traduzido pregação, nesse verso, é akoi, do qual provém a palavra acústica. Akoi denota o ato de ouvir. A pregação a que Isaías se refere é o ressoar da palavra de Deus aos judeus. A partir dela, o crer ou descrer dos judeus os faz responsáveis diante de Deus.
Giorgio Agamben mostrou o percurso seguido pela instituição do juramento (horkos) na cultura grecorromana. Mostrou que, em todas as etapas desse percurso, o juramento esteve ligado à fé (pistis). E que jurar foi o ato pelo qual gregos e romanos sempre prestaram fé da verdade de um fato ou da intenção de cumprir uma promessa. Nesses povos, o valor violado pela quebra do juramento era tão sobranceiro que nenhum castigo ou sanção humana era imposto ao transgressor para que os deuses, pessoalmente, o punissem.
Essas considerações sobre o juramento e a fé tornam tão evidente o sentido jurídico dos termos grego e latino que os designam que, às vezes, Agamben o antepõe ao próprio uso religioso. Ajudam a entender por que, em Romanos, Paulo tece argumentação tão manifestamente jurídica. A salvação, como a apresenta, é um ato jurídico praticado por Deus. Não poderia ser de outro modo, se a palavra pistis estava permeada de tamanho significado legal. Claro que a inteira discussão sobre o caráter judicial ou orgânico, mais judicial que orgânico, mais orgânico que judicial ou tanto orgânico quanto judicial da salvação, que alguns gostam de sustentar, perde sentido, à luz desses dados. Simplesmente não havia, na palavra pistis, a menor implicação de algo orgânico.
Agamben recorda que a fé é “a confiança que depositamos em alguém – a fé que damos – tanto quanto a confiança com que contamos junto a alguém – a fé, o crédito, que temos” (AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem - Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. p. 34). E acrescenta imediatamente que, embora recíproca, a fé não implica uma relação entre iguais. Indica, ao contrário, “a desigualdade das condições [entre as partes que se relacionam]. Trata-se de uma autoridade que é exercida conjuntamente com a proteção sobre aquele que se submete, em troca da sua submissão e na mesma medida desta” (idem. p. 34).
Esse é um ponto por demais fundamental da pistis grega: o fato de relacionar duas partes em situações profundamente desiguais. Não por acaso, Romanos se refere à relação do homem com Deus como  uma servidão. Não por acaso, apregoa que, de escravo do pecado, o homem se faz servo de Deus. A servidão cabe no leque de significações de pistis, por constituir uma relação entre desiguais.
Em todos esses pontos, a descrição que Agamben nos fornece da fé concorda com o que o Novo Testamento revela. Contudo, uma comparação mais atenta dos sentidos do termo, num e no outro âmbito, revela também divergências. E é natural que assim seja, pois Paulo usa a palavra pistis para exprimir uma ideia proveniente da cultura judaica, que era muito distinta da grega. Vale a pena indicar quais as principais diferenças no emprego de pistis por Paulo, em relação ao uso grecorromano.
Vimos que, no mundo romano, pistis exprimia uma relação jurídica. Mas o direito que o termo implicava era um método de poder e um regime de força (kratos). Ao usar a palavra fé, Paulo mantém intacto o sentido jurídico dela, mas elimina a implicação de poder. Emprega a palavra de modo a sugerir que Deus, ao nos salvar, volta o direito contra o poder.
Essa implicação decorre dos três primeiros capítulos de Romanos, em que Paulo descreve o pecador, tanto judeu como grego, como alguém enfermo pelo pecado. O enfermo está a tal ponto destituído de força que é incapaz de contrair relações de poder. Quanto mais uma relação com o Deus Todo-Poderoso! E, se assim é, não há razão alguma para pensarmos na fé como expressão de poder. A força e o poder eram significados do termo, no idioma grego e no mundo romano, não no pensamento de Paulo.
A segunda diferença da fé neotestamentária consiste em designar um ato do coração. “Com o coração se crê” (10:10), diz Paulo. Entre os romanos, "fides era um ato verbal acompanhado em geral de um juramento” (idem. p. 35). Esse ato verbal Paulo o transforma num evento silencioso que se passa no coração, numa espécie de assentimento interior à palavra de Deus.
A fé exclui a loquacidade. Exclui toda forma de verbalização. E, se a exclui, devemos entender que rejeita também outras formas de exteriorização. Fé é um momento em que o homem fica a sós com o seu Criador. Por isso, em outra passagem, Paulo nos diz: “Cri, por isso falei; também nós cremos, por isso falamos” (2 Co 4:13). Nesse verso como em Romanos, a fé exclui o falar, ainda que seja seguida por ele. É secreta e silenciosa. Transcorre diante de Deus e apenas ali. É, por definição, o encontro do homem com Deus. O falar é o seu complemento. É o voltar-se do homem que creu para fora de si. Mas, por ser o seu complemento, o falar não é a própria fé. É um ato que se passa diante dos homens: o invocar que Paulo tanto encarece em Romanos 10.
Estas as características estranhas, porque estrangeiras, que Paulo introduz na pistis grega. Ele as introduz não com base em qualquer tradição ou na sua própria opinião, mas por meio das Escrituras. Do solo bíblico, o apóstolo transplanta esses novos significados ao território do grego koiné. Por meio deles, a fé se torna uma experiência distinta da que os gregos e os romanos conheceram. Torna-se o ato de crer sem amparo do poder e sem apelo à exteriorização ritual.
Que experiência surpreendente é essa que Paulo descreve, meticulosamente e em toda a sua extensão? Que palavra nos transmite a sua suma? A que melhor lhe cai é justiça. Paulo diz, tantas vezes, que crer é submeter-se à justiça de Deus! Não pode deixar de dizer, outras tantas , que os judeus não conheceram a justiça de Deus e, por isso, estabeleceram a sua própria: “Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus” (10:3).
Justiça é a suma da experiência de fé, como confissão o é da experiência de salvação. Por isso, substituir a justiça de Deus pela própria é errar do pior de todos os modos, com as consequências dignas de lástima que daí decorrem e que vão desde a multidão a clamar “Crucifica-o, crucifica-o” até o endurecimento permanente de Israel.
Paulo lança mão de todas as categorias até então apresentadas, na sua epístola, para explicar esse grave desvio. Cita a pergunta cheia de espanto do profeta Isaías: “Senhor, quem creu em nossa pregação?” Sugere, por ela, que os judeus não creram. E encontra, na incredulidade deles, a resposta que tanto busca. Afirma que os judeus estabeleceram a sua própria justiça, por não terem crido na de Deus.
Mas, essa resposta, Paulo a considera ainda parcial. Não se dá por satisfeito, pois continua a indagar por que os judeus não creram. Põe-se em busca de resposta mais profunda. Teriam, os judeus, permanecido na incredulidade por não terem ouvido? Não é o caso, pois, “por toda a terra saiu a sua voz, e até os confins do mundo as suas palavras” (10:18). A terra citada nesse versículo é a que Deus prometeu a Abraão; confins do mundo (oikoumenes) são os países onde os judeus da Diáspora se estabeleceram. Tanto num como no outro lugar, o evangelho foi pregado. Portanto, as comunidades judaicas, em todo o mundo, o ouviram.
Mas, se ouviram, por que se mantiveram incrédulas? Como um médico incansável, Paulo busca o diagnóstico da doença cujos sintomas se tinham tornado evidentes. Questiona: “Porventura não o souberam?”, como quem pergunta se teriam ouvido, mas não entendido (10:19). Responde que não, pois Deuteronômio afirma que Deus haveria de despertar ciúme em Israel “por causa de um povo insensato” (10:19; Dt 32:21). Se Israel não entendeu e não creu, por que os gentios, que eram faltos de entendimento (insensatos), puderam crer?
E, se a falta de entendimento não explica a incredulidade de Israel, poderia explicá-la a ausência de busca espiritual? De novo não é o caso, pois Isaías profetizou: “Consenti em ser encontrado por aqueles que não me procuravam. A uma nação que não invocava o meu nome disse: Eis-me aqui” (10:20; Is 65:1). Portanto, se os judeus não se mantiveram incrédulos por não terem ouvido, por não terem entendido ou por não terem procurado, segue-se que não creram, simplesmente, porque a fé não lhes foi dada.
Um olhar de águia sobre a História permite-nos entender que a fé romana, tão igual e tão diferente da que Paulo apresenta, ligada como ela ao direito, mas calcada no poder mais cruento, produziu como resultado o hedonismo. Não um hedonismo completo, pois o prazer não reina absoluto onde o punhal interrompe a lei. Nem um hedonismo democratizado, pois os escravos, os bárbaros e os citas nunca tiveram acesso a ele. Mas, de qualquer modo, um hedonismo substancial. Um dos maiores de toda a História. O hedonismo da Corte dos Césares, das casas dos nobres, das classes abastadas e da legião sempre presente dos que, sem o serem, tentavam ser como eles. Nos centros desse hedonismo, a música mais sublime, os poemas e a literatura mais arrebatadores sempre se misturaram à traição e aos bacanais, como fios de um tecido improvável.
 Porém, a civilização calcada no mais extenso poder, em toda a Antiguidade, fracassou ao tentar tornar-se uma civilização do prazer. Após ter-se firmado como a civilização com poder mais extenso, o Ocidente realiza tentativa semelhante, nos nossos dias. Com sua incomparável força, tenta fazer-se uma civilização do prazer. E, como Roma teve de opor o seu hedonismo à fé cristã ao tentar promovê-lo, é necessário que o Ocidente enjeite a fé que o deu ao mundo para propor o seu próprio.
Por que o poder, embora mesclado com a fé, termina assim no hedonismo? Por que terminou assim em Roma e termina do mesmo modo, no nosso tempo? Será porque falte à fé que é poder o elemento capaz de conservar a convivência humana? Será tal poder conservador algo privativo da fé-humildade, que Cristo nos revelou?
A proposta de Cristo ainda se faz ouvir. É a proposta de uma fé sem poder, de uma fé que é humildade e, se é também poder, é poder humilde. Nem por isso o poder é visto pela fé como negativo. Mas ele a vê como tal. Sempre a viu, e isso faz a diferença entre um e outro. Entre fé humilde e poder hedonista. Sobre a histórica cena desse conflito, Santo Agostinho talvez dissesse que duas civilizações tentam erguer duas cidades ao prazer, pela negação de uma só fé. E que a negação nunca trouxe paz ao mundo, somente espada. Trará hoje paz?

P.S.: Agradeço a Maria Izabel Birolli ter-me enviado o livro de Agamben sobre o juramento, que usei para interpretar Romanos 10.