O quadro das divisões ocorridas ao longo da História leva os cristãos a se perguntarem que ramos da enorme árvore de igrejas representam a comunidade que Jesus fundou. Não raro, a resposta oferecida à pergunta exige que uma igreja seja suficientemente antiga ou tenha vínculos claros com igrejas antigas para ser considerada legítima.
Por um instante, isso pode parecer insensato aos que pensam que não adianta uma igreja existir há muito tempo, se abandonou a fé dos apóstolos. Contudo, os defensores do critério da antiguidade não o pretendem aplicar a comunidades apóstatas, mas apenas às que professam a fé dos apóstolos. Assim utilizado, o critério faz mais sentido, por duas razões: desautoriza qualquer divisão não baseada numa necessidade e impede que a igreja seja refundada, sob pretexto dos erros ocorridos nela. Nesses casos, a antiguidade ergue barreiras à desunião e à presunção.
Todos concordam que a igreja cristã deve ser identificada pela fé no evangelho. Romanos confirma esse ponto de vista, mas o faz de modo diferente daquele pelo qual os cristãos costumam responder a pergunta sobre a igreja. De fato, ou os cristãos afirmam que os limites da igreja são invisíveis, por coincidirem com a fé dos seus integrantes, ou os associam a uma instituição, como a Igreja Católica.
A ideia de Paulo em Romanos é diferente. Por um lado, ele enfatiza a suficiência da fé como critério de determinação dos limites do povo de Deus. Por outro lado, trata esse povo, o tempo todo, como Israel. Quer dizer que o povo é uma descendência, uma linhagem histórica, não corações crentes que não sabemos a quem pertencem por formarem uma igreja invisível.
Como judeu, Paulo concebe Israel em termos genealógicos. Esse modo de pensar está implícito na palavra povo, que ele utiliza em vários versículos. Para o homem antigo e Israel em particular, todo povo era uma descendência. Não é diferente com o Israel espiritual, que Paulo também considera uma estirpe, linhagem ou descendência.
É correto definir esse povo, Israel, com base na fé. Paulo o faz e com grande ênfase. Mas é importante lembrar que a fé muito genérica não define bem Israel. No versículo 7, o povo de Deus é tratado como o conjunto dos filhos de Abraão. Isso significa que ele começou com esse patriarca. Portanto, não é qualquer fé, mas a fé de Abraão que o define.
Adão não creu na promessa a Abraão, pelo motivo óbvio de que a promessa não existia na sua época. As promessas de Deus a Adão não são idênticas, em conteúdo, às que ele formulou a Abraão. Se fossem, Paulo teria construído Romanos 4 e 9, bem como o Livro de Gálatas sobre Adão, não sobre Abraão. Mas ele os construiu sobre Abraão. Por outro lado, se Adão tivesse recebido promessa tão gloriosa quanto a de Abraão, Paulo não teria feito referências sempre tão negativas a ele, em Romanos 5 e 1ª aos Coríntios 15. Para que eclipsar promessa tão radiante de Deus, vinculando Adão ao pecado, como Paulo faz nesses capítulos?
Em Romanos 11, Paulo se refere ao povo de Deus como uma árvore cuja raiz é constituída pelos patriarcas (11:16). Reafirma, assim, o que diz no capítulo 9, a saber: que Israel existiu a partir dos patriarcas. Isso não significa que Adão e seus descendentes anteriores a Abraão não tenham sido salvos. Em Hebreus 11:4-7, lemos que Abel, Enoque e Noé tornaram-se aceitáveis a Deus pela fé. Porém, nesse mesmo capítulo, nenhuma promessa é citada, até Abraão e Sara entrarem em cena. Sobre eles, diz o autor bíblico: “Pela fé Abraão, quando chamado, obedeceu [...] Pela fé, também, a própria Sara recebeu o poder para ser mãe, não obstante o avançado de sua idade, pois teve por fiel aquele que lhe havia feito a promessa [...] Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas” (Hb 11:8,11,13).
Portanto, se Adão e Noé receberam promessas de Deus, elas não devem ser equiparadas às que foram formuladas, mais tarde, a Abraão, Isaque e Jacó. As promessas a Adão e Noé foram de salvação; as que foram feitas a Abraão, Isaque e Jacó foram também fundadoras do povo de Deus. Por isso, os que creram nas promessas, antes de Abraão, serão introduzidos no povo de Deus no futuro, mas não fizeram parte dele no passado.
Para Paulo, o povo de Deus, Israel, situava-se entre Abraão e a sua própria época. Mas, se assim é, não faz sentido os cristãos travarem tantos conflitos, a fim de estabelecerem qual é a legítima igreja de Cristo. O Israel de Deus é a única igreja e começou com Abraão.
Característica importante da igreja é a antiguidade. No entanto, devemos conceber essa antiguidade em toda a sua extensão. A Igreja de Roma é antiga. Tem peso e importância por isso. Mas Israel é muito mais antigo que ela. E, se é absurda a pretensão de fundar ou refundar a igreja, no nosso próprio tempo, devemo-nos integrar à que existiu desde o princípio, isto é, a Israel.
Quando Jesus declarou “Tu és Pedro e sobre essa rocha edificarei a minha igreja” (Mt 16:18), não quis dizer que a igreja cristã seria edificada sobre Pedro. No capítulo 11 de Romanos, Paulo compara a igreja a uma oliveira. Pedro é um ramo dessa oliveira, não sua raiz. Não faz sentido pensar que a oliveira deve crescer sobre ele, mas sobre as raízes.
Nenhum ramo tem o direito de se gloriar sobre outros: “Não te glories contra os [outros] ramos; porém, se te gloriares, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti” (11:18). Acaso essa exortação não se aplica também aos ramos naturais? Não se aplica, em particular, a Pedro como ramo natural da oliveira? Um ramo atribuir-se importância superior à de outros é sinal de soberba: “Dirás: Alguns ramos foram quebrados, para que eu fosse enxertado. Bem! Pela sua incredulidade foram quebrados; tu, porém, mediante a fé estás firme. Não te ensoberbeças, mas teme” (11:19-20).
Está claro que Paulo identifica o povo de Deus com Israel e, por isso, o localiza quase inteiramente no passado. Não faz sentido pensarmos nesse povo como uma coletividade centrada no bispo de Roma. Pedro não tinha sequer se estabelecido em Roma, quando Paulo escreveu Romanos, como se depreende da ausência de qualquer referência a ele na carta. No entanto, o povo de Deus é mencionado como já existente. Quando diz “nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos” (9:7), Paulo quer dizer que o povo de Deus vem de Abraão, portanto é tão antigo quanto ele.
Quando travam tão grande conflito, a fim de estabelecer qual é a legítima igreja, os cristãos esquecem-se de que o povo de Deus antecede a encarnação do Verbo. Não há solução de continuidade na sua existência. Existiu no Antigo Testamento e continua a existir até hoje. Por isso, se a intenção de fundar ou refundar esse povo denota soberba, devemos recuar ao passado para encontrá-lo, porém não ao passado que interessa a essa ou àquela igreja em particular, mas a um passado suficientemente longínquo para constituir a origem dele. Devemos recuar ao tempo da raiz da oliveira.
Nenhum recuo menor do que esse é suficiente. Porém, o recuo é dificultado pela afirmação de Paulo de que “Israel que buscava a lei de justiça não chegou a atingir essa lei [...] Tropeçaram na pedra de tropeço” (9:31-32). Só uma minoria de judeus, um remanescente, acreditou em Cristo: “Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo” (9:27). A nação como um todo, a maioria do povo e dos líderes, rejeitou a Cristo. E, se isso ocorreu, como devemos realizar o necessário recuo a Israel, a fim de nos integrarmos ao povo de Deus em toda a extensão necessária?
Sobre esse grave problema, Paulo se debruça nos capítulos 9 a 11. E não o faz por motivos estritamente judaicos, mas como algo de interesse também dos gentios. O interesse dos gentios por Israel decorre de o povo de Deus continuar a ser Israel. Não o Israel que foi rejeitado, mas o “que o é interiormente, cuja circuncisão é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus” (2:29). Que se passou com esse Israel?
Paulo o responde, com base numa série de profecias do Antigo Testamento: “Chamarei povo meu ao que não era meu povo; e amada à que não era amada; e no lugar em que se lhes disse: Vós não sois meu povo; ali mesmo serão chamados filhos do Deus vivo” (9:25-26). Aplica esses versos claramente aos gentios, mas prestemos bastante atenção, pois o faz de modo a identificá-los com Israel. Ou alguém pensa que o povo que Deus chama seu, em Oseias, é algum outro? Não é outro, mas o próprio Israel.
Oseias prediz um milagre: pela fé, os gentios tornar-se-iam Israel. Mas, para que o fariam, a não ser para seguirem a fé de Israel? Os gentios tornarem-se Israel tem o propósito de que Israel seja a regra de fé para eles. E, se Israel se perdera, integrar-se a ele só podia significar integrar-se a um remanescente: “Ainda que [...] Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo”.
Esse remanescente, que não dobrou os joelhos a Baal (11:2-4), tornou-se o padrão para a igreja de Deus. A quem seguimos hoje? A Jesus, mas por meio dos judeus Pedro e Paulo. Por meio de João e Tiago. Mas, assim como só nos miramos em Lucas enquanto reflete Paulo, imitamos Pedro enquanto permanece judeu. O Pedro católico nada tem de judeu. É o bispo de Roma, o primeiro Papa, uma autoridade ocidental. Que Igreja esse Pedro encabeça? A que se formou na Idade Média, regida pelo Direito Canônico e pela teologia medieval. Não a igreja que é Israel.
Dos dons feitos por Deus à humanidade, o remanescente judeu é o mais precioso depois do Verbo encarnado. Mas, como é próprio dos dons mais excelsos, ele se dissipou quase sem deixar rastros. A geração dos Doze passou, sem que outra semelhante a sucedesse. Além do que está no Novo Testamento, temos muito pouco a respeito dela. Os católicos creem que Pedro deixou uma cátedra. Mas, se isso tiver ocorrido, e há dúvidas, a cátedra se fez um império medieval, e isso é certo. Apartou-se de tudo o que se assemelha a Israel e, do ponto de vista criado por essa inovação, rege até hoje boa parte dos cristãos. Claro que nada disso nos permite identificar, na Igreja Católica, a autoridade espiritual que ela se atribui.
Paulo trata esse assunto como um grande mistério: “Não quero, irmãos, que ignoreis este mistério” (11:25). Não mereceria o nome de mistério, se fosse um tema nacional e terreno. Mas, exatamente por ser mistério, é pouco palpável. Temos dele não mais que um conhecimento precário. Da ofuscante visão do cometa que enche de luz o céu, ao passar, restou-nos o brilho que emana das páginas do Novo Testamento.
O brilho é, porém, uma regra tão forte quanto a que o navegante deriva do astro que o orienta. Descoberta por milagre a seus olhos, dada a distância que os separa, essa luz não é muda. Fala-lhe e até mesmo lhe ordena: “Esse é o caminho. Segue-o.”
Deus nos deu instituições, mas não muito grandiosas. Agradou-lhe governar a noite pela luz em extinção de um povo remanescente. Não abrasará mais o céu para a vermos. Quer, ao contrário, que a nossa visão dependa mais da atenção com que olhamos do que da intensidade da luz. “A candeia do corpo são os olhos” (Mt 6:22). A luz mensageira está dada. Vê-la depende do nosso olhar.