sábado, 14 de dezembro de 2013

Os Franciscos (1): O Homem de Assis

O impacto da mensagem cristã deve muito ao otimismo que ela trouxe à luz, num tempo em que as filosofias discutiam arduamente a felicidade, sem o menor acordo quanto ao que poderia significar e sobre como devemos viver para alcançá-la. Se esse encontro da pergunta com a resposta cristã sobre a felicidade for enfocado e todas as questões teóricas forem postas de lado, estaremos perto de compreender por que o evangelho pôde triunfar sobre as doutrinas que circulavam na mesma época e se impor como verdade a tantas pessoas.
De modo paradoxal, num mundo que alcançara progresso e paz nunca vistos, era difícil olhar para o Império, para o mare nostrum e encontrar motivo de esperança. Nunca a força tinha provado reger de modo mais inconteste o mundo do que naquele tempo em que se podia viajar longas distâncias em estradas construídas pelo engenho humano.
O Império Romano não era regido pela bondade, mas pelo poder. Verdade é que, ao mesmo tempo, ele impusera o triunfo da razão em escala nunca antes vista, por meio do seu direito. Mas, já por ter sido imposta, a razão do direito romano não correspondia precisamente ao domínio do bem. Ainda que acreditemos que Roma tornara impossível a condenação de qualquer homem livre sem que as suas razões fossem consideradas por juízes, é ingênuo pensar que o império do direito, como eles o tinham desenvolvido, se resolvesse em outra coisa que não a força. Ter sido imposto, como já disse, é sinal bastante de que o direito romano refletia o poder e até mesmo a força. Para o provar, nem precisamos lembrar que, quando recomendou a submissão às autoridades, o apóstolo Paulo as retratou por meio da espada: “A autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; pois não é sem motivo que ela traz a espada” (Rm 13:4).
Que traduzia a espada, a não ser a imposição do direito? E esse prodígio de força, que tinha a ver com a bondade? Como olhar para o universo romano com otimismo, se a força o regia com tamanha astúcia e espreitava pronta a explodir sob a forma de brutalidade? Se um estado de espírito preparou, portanto, o mundo para a fé cristã, ele se exprime por meio de tais perguntas. E, apesar do seu trato com o pecado e a culpa, o euangélion (as boas-novas) de Cristo veio a ser a resposta perfeita para o suspiro que as perguntas induzem.
Mas, apesar de o evangelho ser as boas-novas, ao longo da História, poucas pessoas foram capazes de captar tão bem o inerente otimismo cristão quanto Francisco de Assis. A razão desse otimismo, como se sabe, é o retrato de Deus estampado em Cristo. Esse retrato é quase o de um Deus risonho. E, se o amor se exprime mais em entranhas do que em carnes e risos, na ternura do coração de Jesus, vemos ainda melhor o mistério de Deus encarnado.
No entanto, são necessárias pessoas para se apropriar desse amor. E poucos o fizeram como Francisco de Assis. O apóstolo Paulo foi um desses poucos, embora os sábios de hoje o vejam mais como um sanguinário que a conversão transformou em dogmático. Outros também o lograram, sem dúvida. Não se trata de estreitar a lista de exemplos até reduzi-la a um nome. Mas é justo destacar a peculiaridade de Francisco.
É impossível conhecer Deus fora do amor. E é impossível conhecer o amor sem sentir suas formas primordiais. A criação é uma dessas formas, pois mostra, acima de tudo, que o Deus que se basta dá-se às criaturas. Francisco o entendeu do modo mais entranhado, como se nota num conhecido cântico que compôs: “Louvado sejas, Senhor meu, junto com todas tuas criaturas, especialmente o senhor irmão sol, que é o dia e nos dá a luz em teu nome”! E continua: “Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã lua e as estrelas, as quais formaste claras, preciosas e belas / Louvado sejas, Senhor meu, pelo irmão vento, e pelo ar, pelas nuvens e o céu claro, e por todos os tempos, pelos quais dás às tuas criaturas sustento / Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã água, que é tão útil e humilde, e preciosa e casta / Louvado sejas, Senhor meu, pelo irmão fogo, por cujo meio a noite alumias, ele que é formoso e alegre e robusto e forte / Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã, nossa mãe, a terra, que nos sustenta e nos governa, e dá tantos frutos e coloridas flores, e também as ervas” (ASSIS, Francisco de. Cântico das Criaturas).
Se Deus é amor, suas obras são antes de tudo amáveis. Por isso são ditas nossas irmãs. Essa é uma verdade que, nas palavras de Pascal, não se funda em razões da razão e sim do coração. Mas nós, homens, somos tão tardos em entender tais razões! Os cães consideram os homens seus melhores amigos, mas somente as crianças lhes retribuem o amor. No homem feito, o amor é uma nostalgia que se aviva de raro em raro. Não, porém, em Francisco. O coração do santo ardia em amor, pois descobrira esse amor na criação, e a criação, em Deus.
O canto prossegue: “Louvado sejas, Senhor meu, por nossa irmã, a morte corpórea, da qual nenhum homem vivo pode fugir.” Acaso louvar a Deus pela morte não é atestar a própria insanidade? Para quem tem a morte por inimiga, sim, porém não para alguém que a tem como irmã. Se os estudiosos afirmam que a famosa Oração de São Francisco é um texto anônimo, nenhuma frase, nenhum pensamento, nenhum trecho de introspecção converge tanto com o Cântico das Criaturas quanto o que se encontra na última linha da popular oração: “E é morrendo que se vive/ Para a vida eterna”. A morte é amiga e irmã, se por ela se entra na vida eterna.
Mas a morte de Adão não é um castigo? Deus não o castigou por haver pecado, ao dizer-lhe: “Tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:19)? Como podemos amar um castigo? Mas a palavra castigo talvez não descreva tão bem a morte de Adão. Mais que castigo, ela é um rito de penitência, o momento em que a alma assume, em definitivo, o arrependimento de seus pecados. Tertuliano conclui seu livro sobre a penitência com as palavras: “O primeiro, na estirpe humana e na ofensa, Adão, foi restaurado pela exomologese [penitência] no paraíso” (Tertuliano. La penitencia. Madri: Ciudad Nueva, 2011. p. 159). Essa restauração se deu pelas palavras a respeito da morte que Adão ouviu, após ter pecado. Mais que castigo, elas foram o remédio prescrito para acompanhar o seu arrependimento.
Se a criação é o amor em dores de parto, o trato de Deus com o pecado não é outra coisa. Claro que haverá um castigo para os ímpios, mas só após terem rejeitado essas duas ofertas de amor: a da criação e a da redenção. A cruz não foi a primeira oferta de amor de Deus. Paulo disse: “O Deus vivo fez o céu, a terra, o mar e tudo o que há neles”. E mostrou em seguida a oferta divina de misericórdia: “Nas gerações passadas ele permitiu que todos os povos andassem nos seus próprios caminhos” (At 14:15-16). Em Atenas, pregou: “Deus fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra” e arrematou: “Não levou Deus em conta os tempos da ignorância” (At 17:24,30). A criação foi a primeira oferta de amor de Deus. A segunda oferta não tarda: “Agora, porém, notifica aos homens que todos em toda parte se arrependam” (At 17:30). A grandeza de Francisco consistiu em ter entendido a natureza e a cruz como ofertas do amor divino.
Leonardo Boff refere-se ao amor expresso na criação ao escrever: “Como chegou S. Francisco a esta simpatia íntima com todas as coisas? Primeiramente porque S. Francisco fora um grande poeta, um poeta não romântico mas ontológico, vale dizer, um poeta capaz de captar a mensagem transcendente e sacramental que todas as coisas proclamam” (BOFF, Leonardo. São Francisco de Assis – ternura e vigor. 7ª ed., Petrópolis: Vozes, 1999. p. 51).
A Oração de São Francisco não é considerada autêntica pelos especialistas. Só foi descoberta no século XX, o que é já um primeiro indício de que não foi composta por ele. Mas de tal forma se ajusta ao seu espírito que foi publicada, em 1912, à frente de um retrato do santo. Por isso ficou conhecida como Oração de São Francisco. E por que não a usar para melhor entender a vocação daquele homem?
A súplica “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz” ecoa Isaías e é digna do trecho em que ele clama “Senhor, envia-me a mim” (Is 6:8). Sintetiza a consagração a Deus, a vida que se faz dom, mas dom muito especial, pois “quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja retribuído?" (Jó 41:11; Rm 11:35). Ninguém oferece algo a Deus. Deus dá a si mesmo a consagração do homem. Por isso Davi exclamou, ao dedicar as ofertas para a construção do Templo: “Porque tudo vem de ti, e das tuas mãos te damos” (1 Cr 29:14).
O dom de Deus é inequívoco. Não tem por finalidade pagar o mal com o mal. "Ouvistes que foi dito aos antigos: Olho por olho, dente por dente" (Mt 5:38). Mas já não há lugar para isso. A nova súplica é “Onde houver ódio que eu leve o amor”! Mas como? Para que levar o amor aos que odeiam? Para que me matem?  Talvez, mas que eu leve o amor de qualquer maneira. Esse amor entranhado não conhece barreiras ou condições. Busca contra todas as barreiras e condições. É o amor do homem que perdeu a ovelha, da mulher que perdeu a dracma e do pai cujo filho o deixou. É o amor que caminha de braços abertos na direção de quem segura o punhal.
O amor de Deus não paga o ódio com o ódio. Não retribui a ofensa com a ofensa, mas com a redenção. Não extirpa o desespero multiplicando os motivos de desesperança. Não troca a tristeza em dor. Não dissipa as trevas, a não ser com a luz. Esse é o amor de Cristo. O amor do Deus que é amor.
"Ó Mestre, fazei que eu procure mais/ Consolar que ser consolado/ Compreender que ser compreendido/Amar que ser amado". São palavras de todo celestiais, pois exprimem a graça. O amor de Deus é um dom. Se não fosse, não teria sido dito: "Fazei que eu procure". Não adianta o homem aumentar o seu próprio amor, assim como não lhe aproveita ter justiça própria. Se há uma sabedoria terrena, animal, diabólica (Tg 3:15), há também uma justiça e um amor terrenos, animais e diabólicos: são aqueles que o homem põe no lugar da justiça e do amor de Deus. Melhor que realizar essa troca do verdadeiro pelo falso, é pedir a Deus que nos faça o dom da sua justiça e do seu amor.
O amor que Deus inspira é puro, mas não de uma pureza desumana. Não é um amor que não pensa em si ou que não se preocupa com a própria felicidade. Nenhum homem vive sobre a Terra sem o anseio de felicidade. Seria desumano o amor que o inclinasse a tal ponto ao próximo que o fizesse esquecer-se de si. E, por ser desumano, esse amor seria falso e fingido. Mas a oração nos inocula contra a falsidade, “pois é dando que se recebe/ É perdoando que se é perdoado/ E é morrendo que se vive para a vida eterna”.
Não damos apenas por dar, é a expressão da verdade. Somos homens, não deuses. Damos por dar, mas também para receber. Esse é o bem como Cristo o ensina ao homens. O bem que não é só bem, nem só sacrifício, mas também felicidade. Essa é a diferença específica do bem que o evangelho introduz. Por um lado, não é um bem que se confunda com o puro prazer, mas por outro não é um que suponha poder sobre-humano. O bem que o evangelho traz é o que é também felicidade.
Francisco acostumou-se a esse bem sublime e, nele, encontrou os tesouros da felicidade. Certa vez, já célebre e renomado, foi achado num canto do salão em que se conduzia o velório de um Papa. Notaram-no, mas não se surpreenderam. Nada havia de incomum em o fundador de uma ordem religiosa comparecer a Roma em momentos solenes. Mas se surpreenderam, horas depois, quando o cansaço esvaziara o salão a ponto de o julgarem deserto até encontrarem, no mesmo canto e com a mesma dor, o infalível irmão Francisco.
Jesus é Deus na História. Francisco é um homem exemplar da História. E, se o é por ter renunciado aos bens e se identificado com os pobres, permitam-me dizer que o é ainda mais por ter sido o homem que assumiu plenamente a sua condição. Como é difícil ao ser humano ser simplesmente ele mesmo! Deseja ser anjo, heroi, semideus, qualquer outra coisa. Assim se aliena. Erra o caminho na vida. Como é difícil ao homem assumir plenamente a sua condição, sem fingimentos, disfarces, fraudes ou qualquer espécie de falsidade, inclusive a da falsa glória! Francisco, porém, mostrou-nos o que é ser digno da humanidade, ao assumir sem pudor o seu próprio nada, nele achar Deus que é todas as coisas e, por meio de todas as coisas, a felicidade.