De todos os fatos sociais, a religião é, sem dúvida, o mais fundamental e misterioso. Pensadores de áreas tão diferentes quanto Durkheim, Freud, Toynbee, Huntington e Girard são unânimes em sustentar que a cultura se funda na religião. No entanto, a fé religiosa é o único fenômeno social a que a maioria dos pensadores contemporâneos nega um objeto real ou confessa a sua própria impotência para determiná-lo. Em poucas palavras, a religião ainda é tratada, pelas ciências humanas, como ilusão e fantasmagoria.
Esse julgamento é justo? Em que consiste a religião? A que corresponde o seu objeto? Qual é o valor de verdade que ela encerra? Este texto e os que o seguirão têm por objetivo tratar das perguntas acima, sob o ponto de vista de todas as religiões, mas especialmente das monoteístas. Cada religião (do latim religatio: ato ou efeito de reatar) desenvolve a sua essência de modo peculiar. Por isso, produz resultados diversos de todos os outros sistemas de crenças. Porém, ao mesmo tempo, cada religião vale na medida em que o seu desenvolvimento mantém certa concordância com a essência das outras religiões. Há um ponto de convergência mínima e nuclear, uma essência do ato de crer que transcende a especificidade das religiões. Proponho que a essência das religiões pode ser compreendida, em relação à família e à figura do pai. Panteões inteiros foram construídos com base em tramas familiares. Não é diferente com as religiões bíblicas. Esses dados etnológicos chegam a ser irrefutáveis. Indagar o seu significado é o objetivo da presente série.
A relação entre Deus e a família é mais ou menos explícita, na Bíblia, embora nem sempre seja considerada em toda a sua profundidade. Não apenas o Novo Testamento fala de Deus como Pai. O Antigo também o faz, de outra maneira. É que o conceito de pai se altera, quando passamos de um para o outro Testamento. De modo que tanto a religião bíblica como a estruturação social da família, nos povos monoteístas, dependem antes de tudo do conceito de pai.
Infelizmente, uma série de acontecimentos, no último século e meio, provocou forte desagregação da família, nas sociedades ocidentais. Essa desagregação está, intimamente, associada à dessacralização da vida que se verificou nesses povos. Ao percebermos que as religiões são o desenvolvimento da espiritualidade humana numa direção relacionada ao pai e à família, perguntamo-nos se esses fatos não são facetas do desgaste profundo e atroz da figura paterna e das mudanças por que passa a família na atualidade.
Se a religião é a construção da família suprema, divina, como sugiro, o neoateísmo e o neoagnosticismo podem ser vistos como reflexos da crise atual da família, no campo da religião. E, se assim é, seus adeptos e porta-vozes estão a exprimir um aspecto do problema civilizacional mais amplo, que afeta a família.
No entanto, as relações da família com a religião não se dão apenas nesse sentido, mas também na direção oposta. A família nuclear também é influenciada pelos desenvolvimentos no campo da religião. Ela é um reflexo social duradouro da religião e do que acontece com ela. Por isso, não se pode negar que, no último meio século, a família passou a refletir os descaminhos da dessacralização em andamento no meio social.
Essa é a síntese do que irei abordar, na série que se inicia. Neste texto e nos próximos, procurarei dar foros de concepção filosófica a uma intuição tão comum que é expressa em jargão popular, a saber: a noção de que a ideia da divindade é a reconstrução da noção social do pai. Ou, como dizemos em linguagem direta, Deus é pai. O que não se percebe, quando se pronuncia essa frase, é que ela encerra um modo de ver o fenômeno religioso que sugere a experiência monoteísta em toda a sua amplitude, vale dizer, tanto a adoração como o sacrifício do Pai.
Após a proposição de uma série de teorias ousadas e inovadoras sobre o religioso, pode ser oportuno analisar a simples intuição, que acabo de mencionar. A ideia nada tem de desconhecida: os adultos sempre tranquilizaram as crianças com ela; os aflitos sempre apaziguaram com ela o seu coração. No entanto, apesar do tempo transcorrido, ela não foi guarnecida por uma real demonstração da sua verdade.
As intuições à base da maior parte das modernas teorias da religião não coincidem com noções populares. E o pior é que, ao se afastarem de intuições mais comuns, em vez de explicarem a religião, elas a contraem a experiências e instituições particulares. Reduzem o essencial do fenômeno religioso aos seus acessórios. A ideia que proporei a seguir evita essa espécie de inovação ao interpretar a religião em estrita consonância com uma noção popular. Procura, exatamente, dar foros de teoria ou concepção filosófica a essa noção.