sábado, 21 de dezembro de 2013

Os Franciscos (2): Bergoglio, o Papa

A eleição de Jorge Mario Bergoglio como sucessor de Bento XVI foi marcada pelo descompasso entre o pensamento dos cardeais eleitores e o noticiário da mídia internacional. O nome de Bergoglio estava nas listas de líderes com chances de serem eleitos, mas não em posição de destaque. Em contraste, na eleição anterior, de Bento, os cardeais já lhe tinham dado tantos votos que um eleitor inconfidente relatou que foi preciso o próprio Bergoglio pedir que seus pares votassem em Ratzinger para que o impasse no escrutínio se desfizesse.
Oito anos mais tarde, sem a concorrência de Bento, Bergoglio simplesmente ampliou a margem de preferência construída no conclave anterior. De modo que a divulgação da sua escolha pode ser considerada tudo, menos uma surpresa, do ponto de vista da cúpula católica. Mesmo assim, enquanto ela tinha lugar, os jornalistas ao redor do mundo empalideciam.
O reconhecimento alcançado  por Bergoglio, nessa cúpula, ajuda a entender o que ele representa no mundo católico. Por que o cardeal latinoamericano angariou tanto apoio? É verdade que o estilo despojado dele, havia muito, atraía a simpatia do povo católico, mas já aprendemos o bastante para não confundir as perspectivas do povo e do colégio de cardeais. De fato, a cúpula da Igreja Católica, antes do conclave que o elegeu, olhava para Bergoglio com um misto de admiração e reserva. Admiração, sem dúvida, pela sua espiritualidade, inteligência e estilo despojado de pastorear. Mas reserva suficiente para não basear só nesses atributos a escolha do novo Papa.
Mais do que eles, pesaram na eleição do cardeal argentino seu perfil doutrinário conservador e o vínculo com a região com maior número de adeptos do Catolicismo (a América Latina). Esses parecem ter sido os fatores principais da eleição de Bergoglio, a mensagem dos eleitores que ele, por certo, despenderá todo esforço para recordar doravante.
No entanto, o carisma pessoal é uma realidade forte demais para se moldar a imposições coletivas. Bergoglio pode ter sido eleito pelos motivos acima, mas o modo como exerceceu o pontificado, até aqui, exorbita bastante deles. Não que Bergoglio tenha traído a confiança dos cardeais. Pelo contrário, ele correspondeu a ela. Reafirmou, nos pronunciamentos mais importantes, sua adesão não apenas ao Credo Católico como às correntes teológicas conservadoras. E deu grande atenção às necessidades da Igreja da América Latina. Mas uma característica imprevista (para os cardeais como para o povo e a mídia) assinalou mais fortemente os seus primeiros atos como Papa do que o conservadorismo teológico e a relação com o nosso continente. Refiro-me à ética que anima e motiva o trabalho de Jorge Bergoglio, Francisco de Roma, que adotou esse nome como uma mensagem de que o seu pontificado estará voltado à espiritualidade e à ética que, no pensamento católico, não se desacopla dela.
O primeiro documento papal redigido apenas por Francisco, a Exortação Apostólica Evangelii gaudium, está repleta dessa ética e do sentimento que a orienta. Nela, a ética ajusta-se à espiritualidade de modo clássico, mas com ardor e clarividência totalmente renovados. Mais que a doutrina teológica e a própria ética, esse ardor e essa clarividência ocupam o primeiro plano do documento papal.
Não por outro motivo, a Exortação se abre com a pregação da alegria associada à fé no evangelho. Crer em Cristo é ter o coração borbulhante da alegria de ter recebido tudo o que falta ao homem, na atual condição pecadora. Não pensemos que essa alegria é apenas um sentimento místico. Mais do que  isso, ela é o sentimento que há de mover a reviravolta de que a Igreja necessita, em todos os quadrantes do mundo.
Porém, não nos enganemos: tanto a alegria como as outras virtudes têm, para Francisco, o sentido mais concreto. Podemos até dizer: são virtudes concretas e sociais, mais do que filosóficas ou teologais. Cabe, aliás, a ressalva: nada, no documento, autoriza a interpretação de que as virtudes não sejam também filosóficas. Elas o são e, no acordo sempre vasto em que se coloca com o ensino oficial da Igreja, Francisco reconhece esse dado explicitamente. Mas as virtudes cristãs não são só filosóficas. São antes de tudo práticas e até mesmo concretas e sociais.
Isso poderia ser interpretado como mero discurso, se a ética não fosse tão mais importante para a Igreja Católica do que é, por exemplo, para os protestantes. A existência de uma doutrina social da Igreja, associada à interpretação concreta e ao significado prático que Francisco atribui às virtudes, permite entender que ele vê “a fé que opera pelo amor” (Gl 5:6) como um ministério fortemente contextualizado no tempo e no espaço. Até mesmo como a resposta a uma situação social dada e muito bem delimitada.
Que situação é essa? É principalmente a pobreza. Devo admitir que interpreto um pouco extensivamente a Exortação Apostólica. Que, porém, nos resta fazer, ao analisar o primeiro escrito de fôlego de um novo Papa, a não ser procurar reter-lhe mais o espírito do que as palavras, sem as atraiçoar, é claro? É o que procuro realizar neste breve texto.
Diz a Exortação: “São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e ações que delas procedem. Aqui o que conta é, antes de mais nada, ‘a fé que atua pelo amor’ (Gal 5,6). As obras de amor ao próximo são a manifestação mais perfeita da graça interior do Espírito”. Cita, em seguida, um trecho de São Tomás consagrado pela Unitatis redintegratio, no Concílio Vaticano II: “Em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta – remediar as misérias alheias”. E conclui: “É importante tirar as consequências pastorais desta doutrina conciliar [...] Se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da palavra de Deus” (FRANCISCO. Evangelii gaudium. Cap. II, III, 37).
A ênfase na hierarquia das virtudes tem significado peculiar. Que virtude Francisco entroniza sobre as demais? A misericórdia, que é o amor no momento particular em que se volta para a miséria. A escolha da misericórdia não é casual. É parte integrante da opção preferencial pelos pobres, até mesmo a sua justificação. A opção não extrai sua base da teologia dogmática, mas da ética que se conecta a ela. Para a misericórdia se situar no topo das virtudes, é preciso que os miseráveis tenham o primeiro lugar,na lista de destinatários da mensagem cristã: “A Igreja há de chegar a todos, sem exceção. Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, àqueles que não têm com que retribuir (Lc 14,14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho”  (idem. Cap. II, V, 48).
Precisamos lembrar que a Igreja crê-se depositária de dois bens divinos: o evangelho e a lei natural. Sem isso, não entendemos os porquês do seu ensino. O evangelho exige que o foco da pregação eclesial seja posto na graça, que é de novo lembrada, e bem, por Francisco: “A salvação, que Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia. Não há ação humana, por melhor que seja, que nos faça merecer tão grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos para nos unir a si” (idem. Cap. III, 1, 112). Porém, essa misericórdia que Deus exerce ao salvar é, ao mesmo tempo, o fundamento da lei natural, que a Igreja está incumbida de pregar.
Por isso, sem se desviar da graça, apurando-se, o foco da pregação é posto na misericórdia e, por meio dela, nos pobres. Não pensemos um único instante que a Igreja creia que esse ajuste fino do foco decorra de uma escolha dela própria. Decorre antes da lei natural. Aos pobres deve ser dispensada atenção preferencial, porque essa é a ordem natural das coisas. Embora Francisco não o reafirme, creio que esse ponto não está só implícito, mas constitui o próprio fundamento da urgência que ele deposita no ministério aos pobres e necessitados.
Como Jesus pronunciou os ais de Mateus 23 sobre as mazelas do seu tempo, Francisco proclama uma série de nãos no seu documento: não à economia da exclusão (idem. Cap. II, I, 53-54), não à idolatria do dinheiro (idem. Cap. II, I, 55-56), não ao dinheiro que governa, em vez de servir (idem. Cap. II, I, 57-58), não à desigualdade social que gera violência (idem. Cap. II, I, 59-60). Vejamos algumas passagens em que esses nãos são desenvolvidos.
“Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão.” Exclusão não é o mesmo que exploração: “Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são explorados, mas resíduos, sobras” (idem. Cap. II, I, 53).
A doutrina social da Igreja, em que Bergoglio se escora o tempo todo, foi desenvolvida por causa da pobreza. É uma resposta a ela, que veio se somar ao assistencialismo milenar da Igreja Católica. O caráter benigno dessas iniciativas não pode ser suficientemente exaltado. Mas, desde que abandonou o terreno apenas assistencial, para desenvolver uma doutrina ética sobre a pobreza e os modos de combatê-la, a Igreja passou a atuar, cada vez mais, no território das lutas sociais. A esse ponto levou-a a crença no depósito da lei natural.
Respeito, mas não compartilho esse ponto da fé da Igreja. O que não significa que exclua do rol de consequências da fé o cuidado dos pobres e, mais amplamente, as preocupações sociais. Cada vez mais, sinto-me distante daquela forma de fé sobre a qual perguntamos: “Qual é a sua relação direta com a atualidade?” E nos vemos constrangidos a responder: “Nenhuma”. Esse é um problema imenso, no mundo evangélico, em que os católicos não incidem no mesmo grau.
Incidem, porém, numa concepção superada da lei natural oriunda do período patrístico. A concepção trai uma doutrina do pecado original que tem algo de exagerado. Agostinho afirmou que a natureza humana foi totalmente corrompida pela queda. Nada persiste nela que agrade a Deus. Seja, até pelo sentimento de dívida que temos para com Agostinho. Mas seja em termos. Paulo afirma que “o homem é a imagem de Deus” (1Co 11:7), no presente, não que ele o foi, no passado.
Se a natureza humana se corrompeu, tornou-se carne de pecado (Rm 8:3), algo divino permaneceu no homem:a imagem de Deus manifesta na razão, que o inspira a cumprir a lei de Deus (Rm 7:22,25). Pergunto em que parte se encontra esse elemento e só consigo responder que na natureza do próprio homem, que é antes de tudo racional. Portanto, se a natureza humana se corrompeu, com a queda, não o fez totalmente. Algo divino permaneceu nela.
Esse quê de divino reflete-se, também, na sociedade. Por causa dele, não devemos deixar de mitigar o pessimismo que o pecado de Adão inspira também no tocante à sociedade humana. Mas a ideia de pecado original herdada de Santo Agostinho impõe à Igreja a conclusão de que a sociedade está corrompida, de modo tal que nada resta de bom na sua natureza. A Exortação de Francisco exala essa concepção em cada linha. Por mais que conclame os cristãos ao otimismo, ela faz essa atitude depender, o tempo todo, do sentido que Cristo dá à sociedade humana. Não, também, do que há de intrinsecamente racional e até mesmo divino na sociedade.
Por mais que teólogos importantes, inclusive romanos, se esforcem para mitigar a concepção de pecado original de Santo Agostinho, e o esforço é um fato, o Catecismo da Igreja Católica não labora na mesma direção. Afirma, em consonância com o teólogo antigo, que “o pecado [original] é transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais” e que “a Igreja ministra o batismo para remissão dos pecados mesmo às crianças que não cometeram pecado pessoal” (Catecismo da Igreja Católica. 6ª ed., São Paulo: Paulinas, Vozes, Loyola e Ave Maria, 1993. p. 101). Para que o ministra, a não ser para o fim claro, que Agostinho atrelou ao batismo, de livrá-las da morte eterna? Disse aquele teólogo que “as crianças não batizadas são levadas desta vida para a morte eterna” (HIPONA, Agostinho de. O dom da perseverança. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2002. p. 245). Não é, pois, sem razão que o Catecismo sustenta que "a doutrina da Igreja sobre a transmissão do pecado original adquiriu precisão sobretudo no século V, em especial sob impulso da reflexão de Santo Agostinho” (Catecismo da Igreja Católica. 6ª ed., São Paulo: Paulinas, Vozes, Loyola e Ave Maria, 1993. p. 102). Assim foi e nada mudou até hoje.
Por esse e outros motivos, não posso deixar de me precaver contra o que, na condenação do capitalismo por Francisco, ecoa o pessimismo a que a doutrina do pecado original induz. Diz o Papa: “A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano” (FRANCISCO. Evangelii gaudium. Cap. II, I, 55).
Seja, de novo, mas em termos. É claro que a paixão pelo dinheiro é um grande mal e se tornou comum. Mas a ideia de que o dinheiro é mau por natureza só parece opôr-se a ela. Na verdade, é outro grande mal, um corolário da ideia de que a sociedade está a tal ponto corrompida que, só pela redenção de Cristo, o dinheiro e os outros elementos dela podem tornar-se bons. O amor a Mamon deve ser curado por outro remédio, não por essa pajelança.
Creio que há algo, na natureza da sociedade, como ela existe hoje, que é bênção. E que não convém, de modo algum, ignorar esse fato. Como a matéria não é má em si mesma, o elemento a que me refiro tampouco o é. A misericórdia de Deus não é menos concreta que a nossa. É o que observamos, ao longo de toda a História, já que ato após ato, por misericórdia e a mais funda filantropia, Deus preservou o reflexo da sua imagem na sociedade. Desconfio que esse seja, até mesmo, um dos pontos culminantes do otimismo cristão, um dos pressupostos que permitem torná-lo significativo num mundo transfigurado.