Mas que significa duvidar com consistência? Esclarecer este ponto foi o objetivo da presente série. Quis sugerir que a Lógica não pode ser entendida como uma disciplina só do saber e do concluir, mas também do duvidar. Como a conclusão, para ser consistente, deve sujeitar-se a regras lógicas, o duvidar também o deve. Procurei mostrar que a dúvida consistente é a que se sujeita a certos princípios, assim como o que estabelece a relação entre a própria dúvida, a fé e o conhecimento, a passagem da dúvida temporária à permanente e a de ambas à descrença.
Assim como pensar bem não é o mesmo que pensar muito, duvidar com consistência não é duvidar sempre ou muito. Não é morrer abraçado à dúvida como a uma bandeira. Tampouco é endurecê-la até a transformar em descrença. Pelo contrário, duvidar consistentemente é saber passar da dúvida à fé e da fé à dúvida, por um movimento dialético. Mas para isso é indispensável conhecer as regras do duvidar.
Consideremos a dúvida introduzida pelo paradoxo de Zenão. Quando descreve a corrida entre Aquiles e a tartaruga como uma série de reduções da distância à metade, o paradoxo distrai-nos do fato de que a corrida pode ser indiferentemente descrita como reduções da distância a qualquer fração: 1/3, 7/19, 22/100. Passada, porém, a distração, não vemos como admitir que a representação matemática do movimento seja equivocada. Que pode ser mais claro que ela? Se o movimento entre dois pontos não for uma redução da distância a frações, a Matemática não pode ser utilizada para descrever fatos físicos, pois toda Física supõe exatamente isso. Portanto, o problema do paradoxo não se estende só a Aquiles e sua rival, mas a toda a Física. Newton, Einstein, Bohr e Heisenberg não podem estar certos, se a Física não passa pela prova do paradoxo.
Mais do que isso: se a representação matemática padece de inconsistências, como o paradoxo sugere tão fortemente, nenhuma outra descrição lógica do movimento é possível, pois todas seguem o feitio matemático. Em outras palavras, o problema que o paradoxo coloca é muito mais profundo do que parece à primeira análise.
Dúvida tão fundada e com aplicação tão vasta quanto essa ameaça inviabilizar toda a Física e todo o conhecimento dos sentidos. Mas exatamente por isso, o intelecto não se conforma em perpetuá-la. Sente a necessidade de resolvê-la, pois interrogação assim tão básica não apenas faz rodar a cabeça como torna a vida impossível. E em que podemos dissolver a dúvida suscitada pelo paradoxo, a não ser na fé? Até o mais empedernido cético crê que a Matemática descreve consistentemente a Física. Crê que a incongruência entre o conceitual e o empírico não invalida a utilização do primeiro para descrever o último, como demonstrado pela nossa real necessidade de pensar o movimento em termos matemáticos.
Assim, na instância fundamental do pensar, quando se defronta com as dúvidas axiais, o intelecto percebe que a descrença e a perpetuação da dúvida deixam de ser opções. Só a fé mostra-se funcional, pois só ela é capaz de garantir a higidez mental e a sobrevivência do próprio indivíduo.
São Boaventura escreveu: “Se a verdade não existe, é verdade que não há verdade. Portanto, há verdade”. Já se disse tudo sobre esse arrazoado, mas o seu significado claro, salvo melhor juízo, é de que a verdade acompanha todo o pensamento. Não é possível pensar e se ausentar da verdade. Outra máxima célebre prova que até o falso é, de certo modo, verdadeiro. Ao dizermos “Este enunciado é falso”, não provamos que a falsidade só é falsa enquanto verdadeira? Portanto, a verdade é um dado fortíssimo do pensamento.
Mas enunciados abstratos como esses só têm validade no campo do pensamento formal. Nada provam fora dele. Não provam que a cadeira para que olho é preta. Ela é ou não é preta independentemente de ser verdade que há verdade, pois o plano empírico se diferencia de modo absoluto do conceitual. Consequência disso é que a onipresença da verdade que extraímos do dito de Boaventura aplica-se apenas ao plano conceitual, não ao dos sentidos. Por isso, ela não torna nem um grau mais verdadeiro o conhecimento dos sentidos.
De onde vem, pois, a verdade desse conhecimento? Em que bases é possível sustentar que a revelação dos sentidos é verdadeira? Se a verdade abstrata não se aplica absolutamente aos sentidos, estes só podem ser verdadeiros em si e por si. Aquiles não é capaz de ultrapassar a tartaruga, porque é possível reduzir a frações cada vez menores a distância que o separa dela. A verdade empírica não depende da matemática. Aquiles pode ultrapassar a tartaruga, porque, em muitos casos, um ser mais veloz ultrapassa efetivamente um mais lento. A observação de um fato é o único fundamento da possibilidade de ele se repetir.
No entanto, esse conhecimento não é absoluto. E por que não o é? Porque observamos que os sentidos podem falhar e frequentemente falham. Porque os dados que coletamos por meio deles têm tal irregularidade. Somente por isso podemos duvidar de um conhecimento empírico.
Toda confirmação e toda refutação de conhecimentos empíricos depende da falibilidade intrínseca dos sentidos. Como Bertrand Russell sugeriu, podemos usar a matemática tanto para confirmar como para infirmar enunciados empíricos. Mas só o podemos se, além da matemática, utilizarmos o próprio conhecimento dos sentidos.
A irregularidade interna dos sentidos é a base de toda a dúvida empírica. O conhecimento desse plano seria absoluto como o do ser, se apenas e tão-somente não fosse tão irregular. Mas ele o é. E são os próprios sentidos que o demonstram. Enquanto o conhecimento da razão é saturado de verdade, o dos sentidos é saturado de variações e de erros.
Claro que a refutação de um enunciado empírico pode ser realizada com base na observação do que acontece, ao passo que a confirmação de enunciados é sempre provisória, pois não é possível vasculhar o Universo inteiro em busca da sua refutação. Por isso, a verdade empírica é sempre e também provisória. Mas de modo nenhum essa provisoriedade nos autoriza a afirmar, com Kant, que o noumeno (o objeto empírico) é desconhecido.
Nossa imagem do mundo surge em etapas. A primeira é a da recepção da energia que os objetos desprendem, em conformidade com as leis naturais. A recepção se dá durante a percepção, que é a representação mais objetiva possível ou, se o preferirmos, a representação do primeiro grau.
Essa representação primeira é idêntica ao que o objeto é para nós, pois é a própria energia que se desprendeu dele e se transportou ao sistema nervoso. E, por ser objetiva, ela é, em grande parte, um produto das leis naturais e as reflete. Não é um produto das categorias ou de outras representações abstratas, nem as reflete.
O ato de ver, ouvir ou sentir não se sujeita a categoria alguma. Ele se estrutura e se forma, unicamente, com base nas leis naturais. Ver é ver o material que chega ao órgão da visão em conformidade com essas leis. A realidade é, portanto, regida por leis naturais, não por categorias. Por isso, mesmo quando os objetos parecem assumir formas outras, como as das próprias categorias, é preciso reduzi-los, de novo, àquelas leis.
Claro que esse processo de percepção está sujeito a falhas e erros. Mas as imperfeições são menos frequentes nele do que nas etapas seguintes da representação. Daí o peso da representação primeira, na formação e transformação da nossa imagem do mundo, ser maior que o das representações das outras etapas. Nosso conhecimento deve mais à percepção do que às representações que a sucedem, pois a adota como critério supremo.
Na literatura religiosa, o ato de ver é oposto à fé. Andar por fé é o contrário de andar pela vista. Porém, isso se deve à objetividade muito maior do conhecimento dos sentidos do que à ausência de qualquer medida de fé nele. Ao mesmo tempo em que se opõem, a fé e a visão se implicam. Crer é não ver o objeto crido, mas é ver alguma coisa. Antes de ter sido detectado, o bóson de Higgs (a partícula de Deus) era crido, porque muita coisa tinha sido vista que exigia a sua existência. A fé é, pois, um balanço entre o ver e o não ver. E o contrário também é verdade: o ver é um misto de fé e conhecimento. Não há no conhecimento o que não o seja.
Depois da percepção, têm lugar a preservação de informações abstratas dos objetos e o processamento delas, de modo a produzir nossa imagem do mundo. Enquanto a representação de primeiro grau é o objeto destacado do que o circunda, a de segundo grau consiste no que o sujeito destaca do objeto, como as ideias de árvore, de cão e de lâmpada. E a de terceiro grau é uma espécie de totalização das informações coletadas anteriormente, a exemplo das categorias.
As representações do segundo grau são muito mais distantes do objeto do que as do primeiro. E as do terceiro grau o são ainda mais, pois não apenas prescindem de uma enorme quantidade de dados individuais das coisas como procuram representar porções cada vez mais vastas da realidade.
Claro que a transformação do conhecimento, da objetividade da percepção à imprecisão das categorias e suas espécies, assim como as cores, não pode deixar de inspirar dúvidas e mais dúvidas. A imagem humana do mundo não é construída sem que uma profusão de dúvidas seja produzida. Mas tampouco o é sem que um bom número dessas dúvidas seja suspenso por meio da fé. A dúvida dá sempre lugar à fé, e esta, ao menos enquanto se mantém razoável, também dá lugar à dúvida.
As representações do segundo e do terceiro graus não são cópias ou reproduções do real. Mas tampouco são recriações arbitrárias dele. Parecem-se mais com representações imprecisas, porém significativas do conjunto da realidade.
Vimos que a dúvida incide, intensamente, em todas essas etapas do conhecimento. Podemos dizer que ela se manifesta, na medida em que a observação se faz insuficiente. O problema é que a insuficiência é ingênita à observação. É o seu pecado original. Observar é ver, ouvir ou sentir de modo insuficiente para ter certeza. Por isso, a dúvida é sempre simultânea ao conhecimento, e a fé, à dúvida.
A dúvida é o prelúdio que a orquestra da mente toca ao anunciar a fé. É a música que introduz e inspira a melodia celeste da crença. Vivemos num tempo que perdeu toda noção desse fato. Num tempo que deseja parar o prelúdio, sem saber que fazê-lo é, no fundo e ao cabo, parar a própria mente.
Após o fatídico, o doloroso 11 de setembro, Sam Harris começou a escrever The end of faith, com o objetivo de anunciar e apressar o que o título do livro propõe. Alguns anos depois, Michael Shermer lançou Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas (São Paulo: JSN, 2011) e Cérebro e crença (São Paulo: JSN, 2012). Há consideráveis diferenças entre os três livros. Todos, porém, insistem nas insuperáveis desvantagens de acreditar. Já não se trata de criticar apenas a fé religiosa, mas toda forma de fé. Trata-se de arrancar a erva daninha inteira do solo, ainda que numa escala de tempo evolucionária. Pergunto-me se o único modo de o fazer não é acabar com o próprio pensamento, parar a orquestra da mente, proibi-la de tocar prelúdios e todas as outras músicas.
The end of faith é um manifesto antropofágico, como o de Oswald de Andrade. Chega à bizarra conclusão de que devorar-se é a consequência final da ciência e de que roer o pensamento é o máximo desenvolvimento que a cultura humana pode alcançar. E esses homens intitulam-se brights!
Só se traduzirmos brigths como iluminados. São, sim, os novos iluminados, os Jim Jones da descrença, pregadores de olhos arregalados e com razão: uma assombração segredou-lhes que é preciso criar o começo com o fim. Desse Dilúvio só emergirão os próprios iluminados, não no alto de uma montanha, é claro, mas no topo de algum pedestal.
Após o fatídico, o doloroso 11 de setembro, Sam Harris começou a escrever The end of faith, com o objetivo de anunciar e apressar o que o título do livro propõe. Alguns anos depois, Michael Shermer lançou Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas (São Paulo: JSN, 2011) e Cérebro e crença (São Paulo: JSN, 2012). Há consideráveis diferenças entre os três livros. Todos, porém, insistem nas insuperáveis desvantagens de acreditar. Já não se trata de criticar apenas a fé religiosa, mas toda forma de fé. Trata-se de arrancar a erva daninha inteira do solo, ainda que numa escala de tempo evolucionária. Pergunto-me se o único modo de o fazer não é acabar com o próprio pensamento, parar a orquestra da mente, proibi-la de tocar prelúdios e todas as outras músicas.
The end of faith é um manifesto antropofágico, como o de Oswald de Andrade. Chega à bizarra conclusão de que devorar-se é a consequência final da ciência e de que roer o pensamento é o máximo desenvolvimento que a cultura humana pode alcançar. E esses homens intitulam-se brights!
Só se traduzirmos brigths como iluminados. São, sim, os novos iluminados, os Jim Jones da descrença, pregadores de olhos arregalados e com razão: uma assombração segredou-lhes que é preciso criar o começo com o fim. Desse Dilúvio só emergirão os próprios iluminados, não no alto de uma montanha, é claro, mas no topo de algum pedestal.