quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A Filosofia Perene (13): A Fé e a Antropofagia

A importância da dúvida para o conhecimento humano é tão vasta que não estou certo de que a levamos suficientemente a sério. O proveito que podemos haurir da dúvida não decorre do simples fato de duvidar, assim como os benefícios de pensar não advêm de pensar de qualquer maneira, mas de pensar consistentemente. Pensar todos pensam. Nem por isso pensam bem. Também duvidar todos duvidam. Pouco ou muito, não é o que mais importa: só extraímos da dúvida o que ela tem de mais precioso quando duvidamos com consistência.
Mas que significa duvidar com consistência? Esclarecer este ponto foi o objetivo da presente série. Quis sugerir que a Lógica não pode ser entendida como uma disciplina só do saber e do concluir, mas também do duvidar. Como a conclusão, para ser consistente, deve sujeitar-se a regras lógicas, o duvidar também o deve. Procurei mostrar que a dúvida consistente é a que se sujeita a certos princípios, assim como o que estabelece a relação entre a própria dúvida, a fé e o conhecimento, a passagem da dúvida temporária à permanente e a de ambas à descrença.
Assim como pensar bem não é o mesmo que pensar muito, duvidar com consistência não é duvidar sempre ou muito. Não é morrer abraçado à dúvida como a uma bandeira. Tampouco é endurecê-la até a transformar em descrença. Pelo contrário, duvidar consistentemente é saber passar da dúvida à fé e da fé à dúvida, por um movimento dialético. Mas para isso é indispensável conhecer as regras do duvidar.
Consideremos a dúvida introduzida pelo paradoxo de Zenão. Quando descreve a corrida entre Aquiles e a tartaruga como uma série de reduções da distância à metade, o paradoxo distrai-nos do fato de que a corrida pode ser indiferentemente descrita como reduções da distância a qualquer fração: 1/3, 7/19, 22/100. Passada, porém, a distração, não vemos como admitir que a representação matemática do movimento seja equivocada. Que pode ser mais claro que ela? Se o movimento entre dois pontos não for uma redução da distância a frações, a Matemática não pode ser utilizada para descrever fatos físicos, pois toda Física supõe exatamente isso. Portanto, o problema do paradoxo não se estende só a Aquiles e sua rival, mas a toda a Física. Newton, Einstein, Bohr e Heisenberg não podem estar certos, se a Física não passa pela prova do paradoxo.
Mais do que isso: se a representação matemática  padece de inconsistências, como o paradoxo sugere tão fortemente, nenhuma outra descrição lógica do movimento é possível, pois todas seguem o feitio matemático. Em outras palavras, o problema que o paradoxo coloca é muito mais profundo do que parece à primeira análise.
Dúvida tão fundada e com aplicação tão vasta quanto essa ameaça inviabilizar toda a Física e todo o conhecimento dos sentidos. Mas exatamente por isso, o intelecto não se conforma em perpetuá-la. Sente a necessidade de resolvê-la, pois interrogação assim tão básica não apenas faz rodar a cabeça como torna a vida impossível. E em que podemos dissolver a dúvida suscitada pelo paradoxo, a não ser na fé? Até o mais empedernido cético crê que a Matemática descreve consistentemente a Física. Crê que a incongruência entre o conceitual e o empírico não invalida a utilização do primeiro para descrever o último, como demonstrado pela nossa real necessidade de pensar o movimento em termos matemáticos.
Assim, na instância fundamental do pensar, quando se defronta com as dúvidas axiais, o intelecto percebe que a descrença e a perpetuação da dúvida deixam de ser opções. Só a fé mostra-se funcional, pois só ela é capaz de garantir a higidez mental e a sobrevivência do próprio indivíduo.
São Boaventura escreveu: “Se a verdade não existe, é verdade que não há verdade. Portanto, há verdade”. Já se disse tudo sobre esse arrazoado, mas o seu significado claro, salvo melhor juízo, é de que a verdade acompanha todo o pensamento. Não é possível pensar e se ausentar da verdade. Outra máxima célebre prova que até o falso é, de certo modo, verdadeiro. Ao dizermos “Este enunciado é falso”, não provamos que a falsidade só é falsa enquanto verdadeira? Portanto, a verdade é um dado fortíssimo do pensamento.
Mas enunciados abstratos como esses só têm validade no campo do pensamento formal. Nada provam fora dele. Não provam que a cadeira para que olho é preta. Ela é ou não é preta independentemente de ser verdade que há verdade, pois o plano empírico se diferencia de modo absoluto do conceitual. Consequência disso é que a onipresença da verdade que extraímos do dito de Boaventura aplica-se apenas ao plano conceitual, não ao dos sentidos. Por isso, ela não torna nem um grau mais verdadeiro o conhecimento dos sentidos.
De onde vem, pois, a verdade desse conhecimento? Em que bases é possível sustentar que a revelação dos sentidos é verdadeira? Se a verdade abstrata não se aplica absolutamente aos sentidos, estes só podem ser verdadeiros em si e por si. Aquiles não é capaz de ultrapassar a tartaruga, porque é possível reduzir a frações cada vez menores a distância que o separa dela. A verdade empírica não depende da matemática. Aquiles pode ultrapassar a tartaruga, porque, em muitos casos, um ser mais veloz ultrapassa efetivamente um mais lento. A observação de um fato é o único fundamento da possibilidade de ele se repetir.
No entanto, esse conhecimento não é absoluto. E por que não o é? Porque observamos que os sentidos podem falhar e frequentemente falham. Porque os dados que coletamos por meio deles têm tal irregularidade. Somente por isso podemos duvidar de um conhecimento empírico.
Toda confirmação e toda refutação de conhecimentos empíricos depende da falibilidade intrínseca dos sentidos. Como Bertrand Russell sugeriu, podemos usar a matemática tanto para confirmar como para infirmar enunciados empíricos. Mas só o podemos se, além da matemática, utilizarmos o próprio conhecimento dos sentidos.
A irregularidade interna dos sentidos é a base de toda a dúvida empírica. O conhecimento desse plano seria absoluto como o do ser, se apenas e tão-somente não fosse tão irregular. Mas ele o é. E são os próprios sentidos que o demonstram. Enquanto o conhecimento da razão é saturado de verdade, o dos sentidos é saturado de variações e de erros.
Claro que a refutação de um enunciado empírico pode ser realizada com base na observação do que acontece, ao passo que a confirmação de enunciados é sempre provisória, pois não é possível vasculhar o Universo inteiro em busca da sua refutação. Por isso, a verdade empírica é sempre e também provisória. Mas de modo nenhum essa provisoriedade nos autoriza a afirmar, com Kant, que o noumeno (o objeto empírico) é desconhecido.
Nossa imagem do mundo surge em etapas. A primeira é a da recepção da energia que os objetos desprendem, em conformidade com as leis naturais. A recepção se dá durante a percepção, que é a representação mais objetiva possível ou, se o preferirmos, a representação do primeiro grau.
Essa representação primeira é idêntica ao que o objeto é para nós, pois é a própria energia que se desprendeu dele e se transportou ao sistema nervoso. E, por ser objetiva, ela é, em grande parte, um produto das leis naturais e as reflete. Não é um produto das categorias ou de outras representações abstratas, nem as reflete.
O ato de ver, ouvir ou sentir não se sujeita a categoria alguma. Ele se estrutura e se forma, unicamente, com base nas leis naturais. Ver é ver o material que chega ao órgão da visão em conformidade com essas leis. A realidade é, portanto, regida por leis naturais, não por categorias. Por isso, mesmo quando os objetos parecem assumir formas outras, como as das próprias categorias, é preciso reduzi-los, de novo, àquelas leis.
Claro que esse processo de percepção está sujeito a falhas e erros. Mas as imperfeições são menos frequentes nele do que nas etapas seguintes da representação. Daí o peso da representação primeira, na formação e transformação da nossa imagem do mundo, ser maior que o das representações das outras etapas. Nosso conhecimento deve mais à percepção do que às representações que a sucedem, pois a adota como critério supremo.
Na literatura religiosa, o ato de ver é oposto à fé. Andar por fé é o contrário de andar pela vista. Porém, isso se deve à objetividade muito maior do conhecimento dos sentidos do que à ausência de qualquer medida de fé nele. Ao mesmo tempo em que se opõem, a fé e a visão se implicam. Crer é não ver o objeto crido, mas é ver alguma coisa. Antes de ter sido detectado, o bóson de Higgs (a partícula de Deus) era crido, porque muita coisa tinha sido vista que exigia a sua existência. A fé é, pois, um balanço entre o ver e o não ver. E o contrário também é verdade: o ver é um misto de fé e conhecimento. Não há no conhecimento o que não o seja.
Depois da percepção, têm lugar a preservação de informações abstratas dos objetos e o processamento delas, de modo a produzir nossa imagem do mundo. Enquanto a representação de primeiro grau é o objeto destacado do que o circunda, a de segundo grau consiste no que o sujeito destaca do objeto, como as ideias de árvore, de cão e de lâmpada. E a de terceiro grau é uma espécie de totalização das informações coletadas anteriormente, a exemplo das categorias.
As representações do segundo grau são muito mais distantes do objeto do que as do primeiro. E as do terceiro grau o são ainda mais, pois não apenas prescindem de uma enorme quantidade de dados individuais das coisas como procuram representar porções cada vez mais vastas da realidade.
Claro que a transformação do conhecimento, da objetividade da percepção à imprecisão das categorias e suas espécies, assim como as cores, não pode deixar de inspirar dúvidas e mais dúvidas. A imagem humana do mundo não é construída sem que uma profusão de dúvidas seja produzida. Mas tampouco o é sem que um bom número dessas dúvidas seja suspenso por meio da fé. A dúvida dá sempre lugar à fé, e esta, ao menos enquanto se mantém razoável, também dá lugar à dúvida.
As representações do segundo e do terceiro graus não são cópias ou reproduções do real. Mas tampouco são recriações arbitrárias dele. Parecem-se mais com representações imprecisas, porém significativas do conjunto da realidade. 
Vimos que a dúvida incide, intensamente, em todas essas etapas do conhecimento. Podemos dizer que ela se manifesta, na medida em que a observação se faz insuficiente. O problema é que a insuficiência é ingênita à observação. É o seu pecado original. Observar é ver, ouvir ou sentir de modo insuficiente para ter certeza. Por isso, a dúvida é sempre simultânea ao conhecimento, e a fé, à dúvida.
A dúvida é o prelúdio que a orquestra da mente toca ao anunciar a fé. É a música que introduz e inspira a melodia celeste da crença. Vivemos num tempo que perdeu toda noção desse fato. Num tempo que deseja parar o prelúdio, sem saber que fazê-lo é, no fundo e ao cabo, parar a própria mente.
Após o fatídico, o doloroso 11 de setembro, Sam Harris começou a escrever The end of faith, com o objetivo de anunciar e apressar o que o título do livro propõe. Alguns anos depois, Michael Shermer lançou Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas (São Paulo: JSN, 2011) e Cérebro e crença (São Paulo: JSN, 2012). Há consideráveis diferenças entre os três livros. Todos, porém, insistem nas insuperáveis desvantagens de acreditar. Já não se trata de criticar apenas a fé religiosa, mas toda forma de fé. Trata-se de arrancar a erva daninha inteira do solo, ainda que numa escala de tempo evolucionária. Pergunto-me se o único modo de o fazer não é acabar com o próprio pensamento, parar a orquestra da mente, proibi-la de tocar prelúdios e todas as outras músicas.
The end of faith é um manifesto antropofágico, como o de Oswald de Andrade. Chega à bizarra conclusão de que devorar-se é a consequência final da ciência e de que roer o pensamento é o máximo desenvolvimento que a cultura humana pode alcançar. E esses homens intitulam-se brights!
Só se traduzirmos brigths como iluminados. São, sim, os novos iluminados, os Jim Jones da descrença, pregadores de olhos arregalados e com razão: uma assombração segredou-lhes que é preciso criar o começo com o fim. Desse Dilúvio só emergirão os próprios iluminados, não no alto de uma montanha, é claro, mas no topo de algum pedestal.