Há amplo consenso de que a teoria esboçada por Freud, em Totem e tabu, parte de uma premissa histórica falsa, dada a inexistência de indícios do assassinato primordial a que se refere. Porém, se a teoria peca no tocante a essa premissa, a intuição de que a religião se estrutura a partir de uma experiência primordial até hoje não foi refutada. Não se pode afastar a hipótese de que as religiões se reportem a uma experiência fundadora, análoga ou não à do parricídio original.
Por isso, o legado de Freud, a parte não superada do seu pensamento sobre a religião, não é a teoria do parricídio, mas o método investigativo que ele adotou para construí-la, que é o da experiência fundadora. Se a origem da religião não pode ser determinada por essa experiência, o sentido fundamental dela certamente o pode. O que já constitui contribuição significativa para a compreensão daquilo que o homem considera o sagrado. Adotarei esse método nos textos seguintes da presente série.
A proibição da violência
Os fatos narrados em Gênesis 2 a 4 podem ser entendidos sob essa ótica. Podem ser interpretados como a experiência fundadora da religião monoteísta. Sabemos que, nessa passagem, Deus proibiu Adão de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Interessa indagar por quê. No Livro de Gênesis, conhecer o bem e o mal é possuir a capacidade de diferenciar o pecaminoso do não pecaminoso. A Bíblia não especifica os atos cuja pecaminosidade Deus deu a conhecer a Adão. Não devemos entender que tenham sido muitos, pois Adão não recebeu uma multidão de mandamentos, mas apenas um. Vale a pena examinar mais de perto o conteúdo desse mandamento para determinarmos a que exatamente se refere.
Não retomarei a antiga discussão sobre o sentido literal ou simbólico da proibição a Adão e do seu pecado. Creio tê-lo realizado, em alguma minúcia, em textos anteriores. Partirei, mais simplesmente, da ideia de que o dado a ser entendido de modo literal, em Gênesis 2:17, é o próprio mandamento. É o fato de Deus ter ordenado alguma coisa a Adão. O conteúdo do mandamento, porém, admitirei que está transmitido em linguagem simbólica. Isso implica que Deus não pretendia que Adão se abstivesse de comer algo físico, no Jardim do Éden, mas que se abstivesse de outra conduta. Trata-se de indagar que conduta teria sido essa.
Para que a narrativa da queda faça sentido, é preciso supor que Adão entendeu o que Deus lhe proibiu com as palavras "da árvore que está no centro do jardim não comerás". E que a compreensão só pode estar relacionada à experiência anterior de Adão com Deus. Tanto quanto a Bíblia a relate, essa experiência se reduz às palavras que Deus disse a Adão, após o abençoar: "Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento” (Gn 1:29). Não há qualquer outra experiência de Adão com Deus narrada entre esse versículo e o relato da queda.
Aparentemente, o versículo não estabelece proibição alguma. No entanto, se atentarmos, perceberemos que as palavras "Isso vos será para mantimento" implicam que tudo o que não estivesse incluído na permissão de Deus não devia servir de alimento ao homem. Por um raciocínio a contrario sensu, se Deus lhe permitiu comer de todas as ervas e árvores, Adão não podia se alimentar de carne. Esse é o significado claro de Gênesis 1:29.
O verso contém uma proibição não ritual. Não visa à observância de um rito, mas de um valor moral: a não-violência. A proibição de matar para comer importa uma interdição muito ampla da violência, já que, para comer um animal, é preciso matá-lo. Mais do que isso, está implícito que a proibição do menos grave (matar para se alimentar) implica a do mais grave (matar sem necessidade). De sorte que Gênesis 1:29 contém uma ampla proibição de matar tanto seres humanos quanto animais. É como se o versículo estendesse a proibição do sexto mandamento do Decálogo a toda a natureza capaz de sensações.
A essa proibição devemos associar o mandamento posterior a Adão: "Da árvore que está no centro do jardim não comerás". Os dois são um só mandamento. A única diferença é que o mandamento único está em linguagem literal, em Gênesis 1:29, e simbólica, em 2:17. O sentido do símbolo se descortina pela palavra conhecimento, que dá nome à árvore proibida. Conhecimento do mal é o aspecto subjetivo da transgressão. O mal cometido sem consciência não é levado em conta. O que se comete com consciência constitui propriamente pecado. Portanto, se Gênesis 2:17 se elucida por meio de 1:29, o mandamento do capítulo 1 nos revela o ato que Deus proíbe, e o do capítulo 2, a motivação que o torna pecaminoso.
Se isso estiver correto, a experiência fundadora do monoteísmo (o pecado original de Adão) consistiu na violação do mandamento de não-violência. Para corrigir esse mal, Deus interveio, pessoalmente, em seguida.
O sacrifício original
Em A violência e o sagrado, o antropólogo René Girard mostra, por meio de exemplos, que a noção de sacrifício é uma das mais basilares, em todas as religiões. Girard estende a sua interpretação do sacrifício a toda forma de religião e à cultura em geral. Para ele, todos os aspectos da sociedade refletem o mandamento de expiar o pecado por meio do sacrifício. Proposta de validade tão ampla é difícil de ser aceita, mesmo se considerarmos a religião a base da organização social. Mas isso não nos impede de reconhecer que a importância do sacrifício, nas religiões, é indiscutível. O mérito de Girard consiste em ter fornecido uma explicação suficientemente ampla para a prática não menos ampla de sacrifícios.
Para o antropólogo francês, o sacrifício é a reação primordial da sociedade à escalada da violência. Em todas as religiões, a oferta da vítima a Deus tem por objetivo criar uma disposição que substitua a violência recíproca no interior da sociedade. Por violência recíproca, devemos entender a que tende a se generalizar pela multiplicação. Essa a concepção sacrificial de Girard. Digamos que ele explica a religião como um mecanismo de autodefesa social.
Muito antes de Girard, os antigos já acreditavam que o sacrifício despertava uma atitude favorável em Deus ou nos deuses, que exigiam uma violência final (exatamente o sacrifício) para pôr termo à sequência infindável de atos de violência. Essa opinião difundida entre os membros de uma sociedade gerava a convicção de que a vítima ocupava o lugar de todos os que haviam praticado a violência recíproca e mereciam receber uma paga. Em poucas palavras, o homem antigo percebia que a reciprocidade da violência envolvia a sociedade numa espiral tendente ao extermínio de todos. E reagia a esse fato, por meio do sacrifício e da religião. Em Coisas ocultas desde a fundação do mundo, Girard mostra que o Cristianismo é a única exceção à mecânica sacrificial. A vida de Cristo expõe o desatino dos sacrifícios. A sua morte põe fim à roda das imolações. Cessa o oferecimento constante de vítimas, para compensar e encobrir outras violências.
Porém, o cristianismo como toda religião monoteísta depende de Gênesis 2 a 4. Daí toda a narrativa pós-bíblica do pecado original. Em Gênesis, Deus realiza pessoalmente o primeiro sacrifício, o que confere autoridade extrema à prática. Ainda que os profetas tenham desenvolvido uma ampla crítica dos sacrifícios, é preciso diferenciá-la da instituição do sacrifício por Deus. Os primeiros cristãos souberam realizar essa diferenciação, de modo insuperável, pela dissociação do sacrifício-solução de Gênesis 3 do sacrifício-problema criado pela exacerbação ritual da prática.
Como há uma proibição original (de cometer violência) e um pecado original (a violência), Gênesis 3 e 4 apresentam um sacrifício primordial, por meio do qual Deus proveu vestimentas de pele a Adão e Eva e que foi imitado por Abel. Esse sacrifício foi instituído pelo próprio Deus contra a violência. Mais tarde, quando o pecado se generalizou, ele foi estendido a todos os outros atos pecaminosos.
Mas por que Deus usa a violência do sacrifício contra a do pecado? Por que opõe uma violência a outra? A resposta de Gênesis parece ser que Deus recua, ante a alternativa de exterminar a humanidade contumaz para fazer respeitar a proibição de matar. Ante o fato consumado da violência em que o homem incidiu por seu livre arbítrio, Deus admite o sacrifício e institui uma lógica sacrificial, na experiência fundadora de Gênesis 2 a 4.
Não me parece que os sacrifícios realizados, em diferentes cultos e religiões, se subsumam a uma lógica. Tampouco que tenham o mesmo valor. Ritos sacrificiais diferentes enraízam-se em experiências fundadoras diversas e com sentidos também diversos. A que narrei é a experiência fundadora da religião monoteísta. Somente ela tem o potencial de explicar toda a religião. Não há religião em que a divindade não seja retratada como pai. A concepção de pai varia de época para época e de lugar para lugar. Variam com ela as espécies de pais celestes. Mas, em tudo isso, a divindade é sempre concebida como pai.
O atentado ao pai teorizado por Freud merece ser recordado, aqui, pois depõe a favor dessa conclusão. Tem o mérito de relacionar o divino com o pai, e a religião com a relação problemática entre Deus e o homem. Se depurarmos a teoria da interpretação de fundo sexual que o fundador da Psicanálise lhe atribuiu e a relacionarmos à lógica sacrificial do monoteísmo, o assassinato talvez represente a rejeição de Deus pelos povos que o representam nos ritos sacrificiais. Analisar minimamente essa possibilidade é o objetivo da série de textos publicada neste espaço.
Se Deus é pai, e o pai é um, deve haver um só Deus. A experiência fundadora da religião em geral deve coincidir com a do monoteísmo, não do ângulo histórico, pois nesse plano as cartas se embaralham, mas de um ponto de vista hermenêutico.