quarta-feira, 5 de junho de 2013

Livre Exame de Romanos (8): Abraão, Pai da Incircuncisão

Em Romanos 4, Paulo fundamentou a justificação pela fé em Abraão. Porém, a menção desse patriarca soava de um modo no primeiro século, soa de outro hoje. Poucos especialistas em ciências bíblicas reconhecem que Abraão existiu. Parte deles o considera uma figura lendária; outra parte pensa que resultou da fusão de vários ancestrais dos judeus, cujas histórias foram transmitidas de geração em geração.
A redução da narrativa bíblica a lenda é problemática, pois supõe ter sido inventada. Difícil é que histórias tão detalhadas e internamente concatenadas tenham sido simplesmente imaginadas. Porém, a teoria da fusão de personagens não é tão problemática quanto a da lenda e ainda apresenta a vantagem de se conformar ao processo pelo qual o Pentateuco se constituiu. O historiador judeu Georg Fohrer resume esse processo da seguinte maneira: “Quando a primeira narrativa básica [do Pentateuco] foi sendo formada, muitas outras tradições primitivas foram incorporadas: listas (Gn 22:20-24; 25:1-6; 36:31-39), narrativas concernentes à história das tribos e nações (Gn 16:4-14; 19:30-38; 21:8-21; 25:21-26a, 29-34; 29—30; 34; 38:27-30); sagas da natureza (Gn 19; Êx 16—17; Nm 11; 20); pequenas histórias (Gn 12:10ss; 20; 24; 26)” (FOHRER, Georg. História da religião de Israel. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2008. p. 153).
Fohrer adere à teoria de que o Pentateuco é uma compilação de histórias transmitidas independentemente. Os versículos citados por ele são exemplos de narrativas reunidas, quando os judeus começaram a compor uma história coesa da sua nação, por volta de 1.200 a. C. A maior parte deles pertence ao Livro de Gênesis. Por isso, ajuda-nos a entender como as histórias sobre Abraão se formaram.
Se Abraão é um aglutinado de várias figuras antigas, umas bem conhecidas, outras não, a fusão das histórias a seu respeito pode ter ocorrido, quando a narrativa básica mencionada por Fohrer foi reduzida a escrito. Um autor bíblico desconhecido coseu as histórias umas nas outras, de modo a formar a biografia de um homem. Essa é, hoje, a visão mais provável do processo de formação do relato bíblico sobre Abraão.
Porém, a transformação do texto não estancou com a elaboração do primeiro Pentateuco. Na época de Jesus e de Paulo, muitas histórias sobre Abraão tinham sido acrescidas às que o Antigo Testamento transmite. Isso indica que a transformação da história básica de Abraão prosseguira. Uma parte dos acréscimos encontra-se na literatura apócrifa dos judeus. Outra parte foi incorporada, mais tarde, ao Talmude.
Os fariseus, partido mais numeroso e influente da época, criam tanto na inspiração divina das histórias bíblicas quanto nesses acréscimos. Aos seus ouvidos, os nomes de Adão, Abraão e Moisés evocavam mais do que as narrativas da Bíblia estabelecem a respeito deles. Por isso, é interessante recordar como Jesus e os primeiros cristãos trataram essas crenças.
Sabemos que Jesus combateu o costume fariseu de aceitar todo acréscimo à Lei e aos Profetas que circulava na sua época. Porém, as suas declarações sobre isso, em Mateus 15:1-6, são frequentemente distorcidas. Jesus apontou incoerências não percebidas entre algumas tradições orais dos judeus e as Escrituras. Disse, por exemplo, que a dispensa da obrigação de honrar pai e mãe, por meio de uma doação, violava o espírito dos Dez Mandamentos. Nas suas exatas palavras: "Por que transgredis vós o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? Porque Deus ordenou: Honra a teu pai e a tua mãe e Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte. Mas vós dizeis: Se alguém disser a seu pai ou a sua mãe: É oferta ao Senhor aquilo que poderias aproveitar de mim; esse jamais honrará a seu pai ou a sua mãe" (Mt 15:3-6).
Os fariseus eram os primeiros a reconhecerem que as Escrituras se situavam num plano superior ao das tradições orais que circulavam. Eles viam as tradições como comentários e adendos às Escrituras. Portanto, como acessórios do principal, que era a Bíblia. O historiador Flávio Josefo deixa isso claro na sua Resposta a Ápio. O problema é que os fariseus não reconheciam as incoerências entre as tradições e a Bíblia. Jesus apontou essas incoerências e acusou os escribas e fariseus de transgredirem o mandamento de Deus por apego a elas. De modo nenhum, porém, isso implica que Jesus tenha incidido no contrário do que os fariseus praticavam, isto é, que ele tenha anulado as tradições por meio da Bíblia.
As próprias Escrituras citam e aceitam partes da Tradição. O autor de Timóteo, por exemplo, adotou os nomes dos opositores egípcios de Moisés criados pela Tradição (2 Tm 3:8). E Jesus, ao condenar os escribas e fariseus por observarem as menores coisas da lei em prejuízo das maiores, não disse que os seus seguidores deviam desconsiderar aquelas, mas que deviam “fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Mt 23:23).
Será que, entre as menores coisas que os discípulos deviam praticar, não estavam incluídas as ordenanças da Tradição? Certamente estavam. Por isso também, Jesus ordenou a seus discípulos guardarem “tudo quanto” os escribas e os fariseus lhes ensinavam (Mt 23:3). Na palavra tudo, estão abrangidas as tradições.
Porém, há outro dado que ajuda a entender como os judeus concebiam a relação da Escritura com a Tradição. Trata-se do hábito dos copistas e autores do Antigo Testamento de só inserirem no texto bíblico citações dele próprio, nunca da Tradição. Chamarei autorreferência esse hábito, que só aqui e ali é excetuado por uma menção a Janes e Jambres ou ao livro apócrifo de Enoque (Jd 14).
Mais que qualquer outra característica, a autorreferência põe em relevo o papel exclusivo da Bíblia como revelação divina. Se Deus se comunica com os homens de muitas maneiras, o fato de a Bíblia nunca nos remeter diretamente a outra palavra além das que ela própria transmite diferencia as Escrituras das demais comunicações de Deus com seu povo. Torna-as um nível especial da palavra de Deus aos homens.
De fato, os livros da Bíblia fazem numerosas citações diretas, porém quase nunca de obras externas a eles. Contudo, essa autorreferência habitual não exclui as outras fontes da revelação a que damos o nome de Tradição. Sem a autorreferência, teríamos de adotar a contradição como único critério para limitar a diversidade no interior da revelação. Assim, só poderíamos eliminar da revelação oráculos conflitantes. Graças à autorreferência, podemos estabelecer um limite diferente. Podemos considerar que as tradições que contradizem outras, mas não contradizem a Bíblia são parte da palavra de Deus. Desse modo, uma diversidade maior de oráculos se torna possível no âmago da revelação.
A autorreferência, portanto, não exclui a Tradição. Pelo contrário, ela amplia o número de proposições que podem ser aceitas como palavra de Deus, ao deslocar o critério de exclusão da contradição em geral para a contradição com os pontos fundamentais da Bíblia.
Mas, se Jesus admitia as regras e as histórias da Tradição que não excluíam os princípios centrais das Escrituras, não devemos concluir que o Adão, o Abraão, o Moisés, o Davi, o Salomão, o Jonas e o Daniel aos quais ele se referiu eram mais elásticos do que costumamos pensar? Não devemos supor que eles continham nuanças, como as histórias sobre Abraão transmitidas pela Tradição?
Sob essa perspectiva, não há razão para não admitirmos que Abraão resulte da fusão de vários patriarcas. Se as personagens do Antigo Testamento, em geral, eram mistos de dados da Bíblia e da Tradição, por que os relatos sobre a época patriarcal não podem ter-se fundido, de modo a formar a história de Abraão? Não há nessa fusão qualquer anormalidade. Pelo contrário, é a própria essência do processo de combinação das palavras da Bíblia com as da Tradição.
Estou a propor que Abraão não existiu? Que não fez o que a Bíblia afirma que fez? Ou que Deus não disse a ele o que Gênesis narra? De modo nenhum. Existiram adoradores de Deus que fizeram o que a Bíblia atribui a Abraão. Deus deu-lhes promessas e mandamentos. Porém, os nomes de alguns ou de todos eles e certos detalhes das suas histórias perderam-se. Só o que sobrou foi reunido, de modo a compor a vida de Abraão como a conhecemos.
O que firmei até este ponto não nos deixa com mais do que uma nuvem de personagens, histórias transmitidas oralmente e costumes de época. Abraão parece ser essa nuvem. No entanto, o Abraão bíblico, mesmo quando levamos em conta todas as lições aproveitáveis da Crítica Histórica e Literária, parece mais  sólido do que tal nuvem. E, se for mesmo assim, crer na existência de um ou dois homens que viveram parte da saga atribuída a Abraão pode não ser necessariamente um erro. A multiplicidade de histórias sobre o patriarca e o grau de detalhamento do seu conteúdo parecem falar-nos de fatos reais, que se tornaram históricos. Por outro lado, parece fora do campo do possível que um ou mais escribas tenham inventado elatos tão numerosos, detalhados e concatenados, poderíamos acrescentar: relatos tão significativos e belos quanto os de Gênesis sobre Abraão. Até porque, se tais escribas tiverem existido e criado o Abraão bíblico, estaremos diante de uma verdadeira teoria da conspiração e não me parece que textos se expliquem por semelhantes teorias.
Contudo, na era da ciência, precisamos explicar um pouco melhor o Abraão bíblico, se quisermos conferir-lhe solidez parecida com a que, por séculos, a letra da Bíblia lhe atribuiu. Precisamos, ao menos, mostrar como as histórias a respeito dele podem ter-se formado. Não tenho, a esse respeito, uma explicação pronta para fornecer. Mas tenho desconfianças e ideias vagas, que em mim se constituíram, durante o estudo cuidadoso dos textos. Por exemplo, se pudermos reunir e compactar em Abraão não só a nuvem de personagens e as linhas gerais das histórias, mas também os detalhes a respeito delas, enfim se pudermos aceitar que esses detalhes não são sinais de invenção, mas de transmissão de fatos verdadeiros, estaremos em condições de concluir que, ao lado da tradição oral, relatos escritos podem ter sido compostos sobre uma ou duas personagens denominada(s) Abraão. E, se a veneração dos textos tiver sido levada tão longe quanto a das histórias orais, não será impossível que, num momento da História, relatos semelhantes aos que hoje lemos sobre Abraão tenham sido compostos. O livro de Moisés, mencionado em Êxodo 17:14, é um candidato a conter tais relatos. Talvez incluísse versões embrionárias  ou desenvolvidas das sagas de Abraão, Isaque, Jacó e do Êxodo. A possibilidade de ter sido realmente assim aumentará, se considerarmos que alguns hebreus primitivos não eram iletrados, mas cultivavam a escrita (possivelmente o semítico ocidental) e possuíam as condições necessárias para terem sido os transmissores dos textos primitivos sobre Abraão.
Não desenvolvo essas conjecturas para enaltecer ou diminuir a figura de Abraão. Meu objetivo é somente entendê-lo melhor. Tudo considerado, o patriarca bíblico não é simplesmente o da letra: é o da verdade, seja qual for e esteja onde estiver. Interpretar a Bíblia é amar essa verdade, ainda que se apresente fluida, como no caso de Abraão. A figura arrancada à letra de Gênesis não é o pai de muitas nações. É a sua caricatura, uma estátua de letra, um ídolo. O Abraão verdadeiro é imaterial e volátil como as tradições que o originaram. Mesmo assim, é portador dos princípios da salvação pela fé que Paulo tanto encarece e dos quais vivemos. Pois “o justo viverá pela fé”.
Paulo chama Abraão pai da incircuncisão. É nisso mais do que ousado. É quase temerário, como é próprio dos espíritos livres, quando pressionados, forçados a se inclinar ante interpretações literais. Fácil é ver que Abraão é o pai dos judeus. Basta ler as genealogias de Gênesis para o compreender. Basta atentar à letra e curvar-se a ela. Mas, para entender que ele é o pai da incircuncisão, demanda-se mais, muito mais. Demanda-se liberdade de espírito.
Não diz a Bíblia que Abraão se circuncidou? Como pode ter sido pai e exemplo para incircuncisos? De que parte surgiram as nações que não cultivam o costume de se circuncidar? Ainda uma vez, as genealogias respondem: de Abraão. Mas, se nasceram dele, o não praticarem a circuncisão não é um sinal de desobediência, assim como Israel praticá-la é sinal de fé? E não quebraram as nações, portanto, a tradição de seu pai? Paulo ousa apartar-se desse modo de pensar. De acordo com ele, “a fé foi imputada a Abraão para justiça. Como, pois, lhe foi atribuída? Estando ele já circuncidado ou ainda incircunciso? Não no regime da circuncisão, e, sim, quando incircunciso. E recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que teve quando ainda incircunciso; para vir a ser o pai de todos os que creem, embora não circuncidados” (4:11).
O apóstolo liga a justiça à incircuncisão, pois Abraão creu, e isso lhe foi imputado para justiça, quando era incircunciso. Desse fato ele extrai que os gentios precisam crer, mas não se circuncidar. Reconhece que Deus ordenou a Abraão circuncidar-se e denominou a circuncisão aliança entre ele e a descendência do patriarca. Mas Paulo acredita que a prática da circuncisão não é obrigatória. Verdade é que ele circuncidou Timóteo, mas o fez como concessão aos judeus (At 16:3). Sua fé não ia na direção desse ato isolado. Para ele, “nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas o ser nova criatura” (Gl 6:15).
Não ser coisa alguma envolve não ser obrigatório. A circuncisão não é necessária, mas a incircuncisão tampouco o é. Para Paulo, o indivíduo pode escolher entre circuncidar-se ou não se circuncidar, pois todos os mandamentos carnais, isto é, externos, pressupõem a liberdade, não a escravidão.
Deus ter chamado a circuncisão “sua aliança” com a descendência de Abraão (Gn 17:10) e a ter feito feito um sinal (Gn 17:11) não a torna obrigatória. Ainda que tivesse sido chamada mil vezes aliança ou feita mil vezes sinal, a circuncisão continuaria a ser um mandamento carnal, portanto não obrigatório. Entre o mandamento exterior e a conduta, coloca-se um senhor soberano: o livre arbítrio. Esse senhor cumpre ou não cumpre o mandamento, como o desejar. Diferente é o caso dos mandamentos ditados por Deus ao próprio senhor soberano, isto é, ao livre arbítrio, a exemplo do amor, da misericórdia etc. Estes são obrigatórios.
Ao interpretar o Livro de Gênesis assim, Paulo não só parte da mistura de versos bíblicos e tradições que compunham o Abraão de seu tempo como ressalta aspectos desconhecidos dele. Chama-o “pai da circuncisão” (4:12), mas também “pai de todos os que creem, embora não circuncidados” (4:11).
Vemos por que, no tempo de Jesus e de Paulo, a palavra Abraão não evocava algo palpável e cristalizado na letra de Gênesis. Quando Paulo dizia “Creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça”, as tradições sobre o patriarca não estavam fora de perspectiva. O apóstolo não era um protestante fundamentalista. Não adorava a estátua de letra. Não é, pois, de esperar que o seu Abraão fosse o da letra.
A estátua de letra não é melhor que a de pedra. Se a redução de Deus à pedra, à madeira, ao ouro ou à prata é condenável, a redução da palavra à letra não o é em menor medida. Observo incredulamente como, ainda hoje, o culto à verdade produz reações de revolta e perseguições da parte dos adoradores da letra, assim como o culto a Deus provocou a perseguição dos idólatras ao longo da História. Servir a verdade, mais cedo ou mais tarde, nos força a revirar os altares erguidos à letra. O Abraão literal é um desses altares espúrios e dedicados a ídolos, não a Deus, nem à verdade.
O Antigo Testamento é inteiramente perpassado pelo conflito entre Deus e os ídolos. A idolatria é o problema central que o percorre. No tempo atual, porém, a idolatria não se manifesta mais como culto à pedra, mas à letra. A interpretação da História Bíblica não coloca outro problema. Ao menos não coloca outro mais grave.
Por séculos, as igrejas protestantes radicalmente contrárias ao uso de imagens têm sido as campeãs da conformidade à fé literal. Quando a ciência mostrou que a História Bíblica às vezes não é literal, elas insistiram na afirmação da letra, do Abraão literal, do Moisés literal, do Jesus literal.
Contudo, há uma estranheza no ar. A cobrança da fé literal foi suspensa, no mundo evangélico. E, em vez de dar espaço à busca da verdade, enfraqueceu-a. Suspendeu-a também. O altar à letra inclinou-se, mas o da verdade não foi restaurado. Importa entoar o gospel, expulsar os demônios, buscar a prosperidade. A quem não o faz resta pregar para os bancos e se preocupar. Os partidários do gospel, da expulsão de demônios e da prosperidade não querem problemas de História, pois não combinam com as suas práticas. Os outros não os querem, pois afugentam as pessoas que ainda não os abandonaram.
Assim, estranhamente, a verdade a respeito da História parece não importar, onde a paixão pela letra foi represada e contida. Importa calar, a um tempo, a questão da verdade e a paixão pela letra. A verdade e a letra: não são elas o conteúdo histórico da igreja? Vivemos, porém, num tempo em que o conteúdo deixou de importar. Vivemos na era da aparência, da margem, do limbo. Nem a verdade, nem a letra têm nela lugar. Mas ninguém resiste para sempre ao furor e ao inexorável. Chegada a sua hora, o que se cala e recalca irromperá novamente. E ainda não nasceu quem possa imaginar o que então sucederá.