Há séculos, a Teologia sustenta que Deus é onipresente, que ele “enche tudo em todas as coisas” (Ef 1:23). Mas Deus não está em toda parte por acaso ou por não ter o que fazer. A lição bíblica é de que ele criou o espaço, com o fim deliberado de ocupá-lo.
Porém, embora claro, esse dado introduz um problema: por que Deus quer ocupar o vazio? Acaso ele ama o nada? As respostas a essas perguntas não são tão óbvias quanto podem parecer. Não faz sentido pensar que Deus ocupa o espaço infinito por amor ao nada. E não ajuda afirmar que ele o faz para criar seres vivos e se relacionar com eles. Se é Todo-Poderoso, Deus poderia criar seres vivos, sem produzir um espaço infinito e vazio. De sorte que, se o Universo é um enigma, o espaço parece constituir o ponto nevrálgico dele. No século XX, a ciência descobriu que o espaço não é vazio, mas preenchido por criaturas que, de tão pequeninas, não são percebidas e, na maior parte do tempo, não são sequer detectáveis. Mais do que isso: as criaturas que formam o espaço são os blocos fundamentais de tudo o mais, já que tudo contém espaço. Até a matéria mais sólida, vista ao microscópio, é quase inteiramente vazia, e esse vazio, esse nada, essa geometria interna, é o que lhe confere a estrutura que possui.
À luz de revelações como essas, podemos refletir de maneira nova sobre Efésios 1:23. Podemos pensar que Deus não ocupa o espaço para assistir às interações da energia que o constitui, mas para determiná-las. Não nos dizem as Escrituras que Deus criou e conserva todas as coisas? Que ele se importa com o Universo e intervém, no seu interior, para fazer cumprir seu propósito eterno? E, se assim é, não deve Deus intervir, também, nas interações fundamentais do espaço, com base nas quais o Universo é estruturado? A Bíblia parece indicar, com efeito, que Deus tudo enche para estruturar todas as coisas.
Essa visão de mundo é vertiginosa. No Areópago, Paulo declarou que, em Deus, nós “vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17:28). Isso significa que Deus preenche a inteira esfera, em que a nossa existência se desenrola. Significa que ele preenche o mundo todo, sem ser o mundo todo. De modo nenhum podemos pensar que ele o faz sem motivo. Devemos, antes, entender que Deus preenche todas as coisas para as sustentar e formar o mundo em constante formação.
Os autores bíblicos e Paulo, em particular, viam o Universo físico impregnado de sentido divino. Para o apóstolo, a redenção de Cristo não só eliminava o pecado do homem como reconciliava com Deus “todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus”, isto é, o Universo inteiro (Cl 1:20).
A imputação, como Paulo a apresenta em Romanos, aplica-se ao homem, justifica-o e remove seus pecados. Porém, em outras passagens, verificamos que os seus efeitos se irradiam pelo Universo todo. Por esse motivo, embora seja uma doutrina da salvação humana, a imputação é ao mesmo tempo uma visão de mundo, uma chave para a interpretação do Universo. Assim devemos tomá-la.
“E, para ser o cabeça sobre todas as coisas, [Deus] deu [Cristo] à igreja, a qual é o seu corpo” (Ef 1:22-23). O plano de Deus não consiste só em preencher todas as coisas e em estruturar o Universo, por meio disso, mas em encabeçar todas as coisas, nos céus e na terra, em Cristo. Esse encabeçamento não é do Universo todo, mas especialmente dos seres livres, que podem submeter-se ou ser submetidos a ele.
Assim, se o preenchimento de todas as coisas por Deus é a moldura geral do Universo e se ele é revitalizado pela reconciliação de tudo com o Criador, o encabeçamento dos seres racionais é o quadro propriamente dito, a razão de ser específica do Universo. Romanos nos mostra que o objetivo desse encabeçamento só é alcançado, por meio da imputação. Só é alcançado, porque Deus renova o significado de todas as relações cósmicas ao lastreá-as em Cristo.
A validade dessa visão, para a qual Paulo contribuiu com o elemento decisivo da imputação, até hoje não precluiu. Nem toda a ciência pôde mostrar que a visão é equivocada. Tampouco é ufanista afirmar que a ciência comprovou parte da visão. Resumidamente, portanto, a Bíblia nos informa que o Universo não é obra do acaso, que ele foi criado, conservado e estruturado por Deus para que o encabeçamento das criaturas racionais em Cristo tivesse lugar.
Nesse vasto contexto, é que a linguagem judicial de Romanos transmite a verdade real, não simbólica, sobre a salvação humana. A ela se liga outra linguagem, que nos comunica a verdade simbólica da salvação. A presença das duas linguagens se torna patente, quando Paulo afirma: “Se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida” (5:10).
A reconciliação por meio da morte de Cristo é uma verdade real (há quem prefira dizer literal). A salvação pela sua vida é uma verdade simbólica, já que não temos tal vida literalmente. Isso nos conduz à conclusão de que, no que tem de real e de nuclear, a salvação ocorre por imputação, mas esta é representada simbolicamente pela filiação natural.
Em outras palavras, para retratar com cores mais vivas o fato da imputação, tanto Paulo como o autor de 1ª de João recorreram ao símbolo da geração de filhos. É o que está implícito na expressão “salvos pela sua vida” e também nos versículos “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus e todo aquele que ama ao que o gerou, também ama ao que dele é nascido” (1 Jo 5:1) e “Aquele que é nascido de Deus não vive em pecado; antes, aquele que nasceu de Deus o guarda, e o maligno não lhe toca” (1 Jo 5:18). Em todos esses casos, a metáfora é usada para reforçar e ilustrar a consequência da filiação imputada ao homem por Deus.
A vida mencionada em 5:10, pela qual somos salvos, é a de Cristo. Portanto, é a vida de Deus. Mas sermos salvos pela sua vida não é o mesmo que nascermos de Deus, do modo como Cristo nasceu. O nascimento divino de Cristo lhe é exclusivo. Por isso, quando 1ª de João afirma que somos nascidos de Deus, sua linguagem é simbólica. O símbolo que utiliza é extraído do ensinamento comum das múltiplas gerações e emanações do divino. Esse ensinamento era fundamental tanto no judaísmo helenista como no platonismo e no gnosticismo. Por meio dos judeus helenistas, penetrara, inclusive, na Palestina.
No contexto desse ensino comum e disseminado, portanto, não surpreende encontrarmos as múltiplas gerações divinas também entre os cristãos. Só não podemos concluir, daí, que a geração é real, isto é, natural. No Areópago, Paulo declarou que a humanidade é “geração [de Deus]” (At 17:28-29). E, em Lucas 3:38, o próprio Adão é chamado filho de Deus. Nem por isso, devemos concluir que Adão e seus filhos nasceram de Deus ou têm a vida divina. E, se eles não nasceram de Deus, nem possuem a sua vida, que mão haverá de inserir, na geração dos crentes,o traço diferencial do nascimento de Deus?
A doutrina da imputação real ajusta-se maravilhosamente à visão de mundo bíblica. Mostra que Deus, que criou, sustenta e estrutura todas as coisas, não busca só louvor para si, mas salvação para o homem. E isso não por meio da força, mas da fraqueza de Cristo, na cruz, e da imputação de eficácia salvadora a ela. Os primeiros cristãos perceberam que, assim aclarada, a representação bíblica do Universo é muito diferente da de todas as outras religiões. Nenhuma fé jamais apresentou um quadro tão coerente ou tão realista do Universo. Nenhuma constituiu um acréscimo ao conhecimento acumulado, durante séculos, sobre o Universo, por meio do estudo e da observação. Só a visão de mundo cristã tem essas características.
O realismo maior dessa arrebatadora visão fez com que, desde o princípio, ela concorresse menos com a religião grecorromana do que com as filosofias racionais da antiga Grécia e do período romano. Pouco vemos autores cristãos debaterem mitologia; vemo-los discutir a compatibilidade ou não da fé cristã com a Filosofia. O próprio Paulo discutiu com os filósofos, em Atenas. E não foi por outro motivo que, até a Reforma, o Novo Testamento foi progressivamente entendido e explicado com ajuda da Filosofia.
Estou a afirmar que a fé cristã é um racionalismo? Longe de mim tal propósito. A fé é um modo de vida com Deus baseado na oração, mas tanto a oração como a fé são interiorizações da palavra de Deus e não existem sem ela. Ora, a palavra é logos, não um transe profético em que se perde a razão. Como logos, ela nos apresenta Deus de modo compatível com o Universo.
O que há de real, na experiência dos místicos, é a relação com Deus, não a participação que creem possuir na vida divina. Pela imputação de justiça, entramos em relação real e próxima com o Criador e Conservador de todas as coisas nos céus e na Terra: na relação específica de filhos dele. Nesse sentido, oramos e devemos orar a Deus. Nesse sentido, temos comunhão com ele. Mas o que vai além disso é equívoco. A mística da coincidência do crente com Deus é um equívoco, pois reduz a nitidez da visão de mundo bíblica e atenta contra a sua verdade.
Ao longo de toda a História, vemos os povos em busca de uma visão geral do mundo. Porém, até o advento da Filosofia, tudo o que a humanidade alcançou, nesse caminho, foi o senso comum de cada época. O que devemos convir que é pouco, pouquíssimo, considerando o modo de ser do mundo.
A ciência contemporânea nos deu muito mais, é verdade. Mas não nos deu o essencial. O espaço se expande? A matéria se auto-organiza? Sim, a ciência o provou. Mas, se isso ocorre, por que não ocorreu antes? Por que não ocorreu, se os elementos do mundo são eternos, como ela supõe, e um tempo infinito esteve à disposição para que tivesse lugar? Em que pese o desenvolvimento científico, o materialismo não tem melhores respostas para essas perguntas, hoje, do que tinha no primeiro século. As explicações científicas cessam nesses pontos fundamentais, por absoluta falência, comprometendo a visão de Universo do homem contemporâneo.
Sobre esses pontos, resta o que sempre restou: as religiões e a Bíblia, que desde o princípio pareceu tão peculiar e diferenciada dos outros livros sagrados. Nela, vemos a criação do Universo, o pecado e a imputação da justiça ligarem-se numa ampla visão de conjunto. Em Gênesis, temos a criação; nos quatro Evangelhos, a redenção. Entre eles, situa-se a lei, o pecado e a ira, como Paulo tanto enfatiza. A ira de Deus é a rejeição da criação por ele, não quando o homem pecou, mas quando o pecado avultou por meio da lei.
No entanto, o aborrecimento de Deus não é como o do homem. Não vai de mal a pior. Na plenitude do tempo, Deus tudo mudou, enviando seu Filho para salvar o mundo. E o Filho, cooperando com o Pai, ofereceu-se, na cruz, em remissão de todos os nossos crimes. Com base no seu sacrifício, Deus renovou relações com toda a sua criação e o homem em particular.
Alguém dirá que isso não se passou? Que Jesus não morreu pelos nossos pecados? Mudem a História, e acreditarei. Mas será difícil mudá-la. Uma verdade formada por imputação não é como um fato natural. O fato é efeito de uma causa. A imputação o é de um querer. O fato se prova ou refuta por meios empíricos; a imputação, só por testemunhos do querer que a produziu. Os quatro Evangelhos e Atos são esse testemunho e me parece que eles não desabonam a interpretação de que Cristo, de fato, morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação.
Falta os opositores de hoje dizerem que os Evangelhos e Atos não são a palavra de Deus, após gerações de seres humanos lhes terem imputado exatamente essa condição. Claro: a má-fé não tem fim e a raça dos que estão sempre prontos a novas patifarias para refutar a visão de mundo da Bíblia tampouco o tem. Mas ela foi retratada nos versos em que Deus mostrou a Jó as coisas abstrusas da natureza, como a avestruz que "trata com dureza os seus filhos, como se não fossem seus; embora seja em vão o seu trabalho, ela está tranquila, porque Deus lhe negou sabedoria e não lhe deu entendimento [...] Ri-se do temor e não se espanta;e não torna atrás por causa da espada" (Jó 39:17-18, 22). Não percebem que Deus se mostra nas regularidades do céu porém, muito mais, em todas as durezas da Terra.