3. Grandes exemplos de diversidade
Os vários grupos cristãos apresentam condições mediante as quais uma pessoa pode ingressar e transitar neles. Já indicamos que o não pentecostalismo é uma condição adotada por muitas confissões históricas e que o uso exclusivo da Bíblia o é para a Congregação Cristã no Brasil.
A comunhão dos apóstolos, porém, se distingue dessas de cunho particular. É a comunhão na diversidade, sem condições que não sejam o novo nascimento e a fé ortodoxa em questões vitais. Em tudo o mais, a comunhão apostólica é inteiramente aberta. Ninguém pode exigir ou proibir coisa alguma a um cristão exceto isso. O que comer, os costumes a guardar etc. não devem ser matéria de discussão na igreja (Rm 14:1-3,5).
Tanto no Velho como no Novo Testamento, tal princípio de unidade é ratificado exaustivamente. Quando Miriã e Arão erraram, ao se rebelarem contra Moisés, Deus de modo nenhum negou que os dois descontentes fossem também seus porta-vozes. Ainda que houvesse um princípio de sublevação no comportamento deles, o Senhor não negou a pluralidade de ministérios no seu povo. Havia, é certo, um só ministério global no Velho Testamento, como Paulo indica em 2ª aos Coríntios 3:7,9. Nesse ministério, estavam Moisés, Arão, Miriã e todos os demais filhos de Israel, cada qual a exercer a sua função, num quadro geral de harmonia. Mas ali também existiam ministérios, no plural, assim como no Novo Testamento há diversidade de ministérios integrados (1 Co 12:5).
Se o ministério de Moisés tinha a preeminência, uma ampla liberdade permitia que outros também mantivessem trabalhos espirituais. Miriã e Arão possuíam os seus ministérios. Ela era uma profetisa, ele, o Sumo-Sacerdote responsável por ministrar a Deus e ensinar o povo. Todo um campo de particularidades era possível, nessas funções, em harmonia com o ministério mais eminente de Moisés.
Para falar em sonhos e visões aos irmãos de Moisés, Deus não se dirigia primeiro a ele. Tampouco exigia que aqueles, ao receberem uma revelação, a submetessem a Moisés para que autorizasse ou não a sua publicação. As coisas reveladas, pelo simples fato de o serem, pertenciam e ainda pertencem ao domínio público. Deuteronômio 29:29 afirma que elas “pertencem a nós e a nossos filhos para sempre”, não a um homem ou a um ministério particular.
Esse é o princípio pelo qual Deus regia o ministério do Velho Testamento. O próprio Moisés de modo nenhum possuía um espírito exclusivista ou favorável ao seu ministério, em detrimento do que era exercido por outros. Não é pensável que um povo que, havia pouco, se libertara da escravidão e fugira como uma horda tivesse organização tão estrita que as palavras de todos fossem subordinadas à de Moisés. Israel tinha, antes de tudo, de sobreviver no deserto. Não havia condições para ele implantar qualquer coisa parecida com um regime de uniformização de discursos.
Em Números 11, quando o Espírito do Senhor desceu sobre os setenta anciãos designados como cooperadores na tarefa de cuidar do povo, Josué, ajudador de Moisés, sugeriu que este proibisse Eldade e Medade, que pertenciam aos setenta, de profetizar no arraial, enquanto os outros sessenta e oito o faziam em volta da tenda da congregação. Afinal, onde se vira tal dissonância, tal dissintonia?
Ao ainda inexperiente Josué pareceu que a solução para o caso era: “Proíbe-lhes” (Nm 11:28). Moisés, porém, disse-lhe: “Tens tu ciúmes por mim? Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu Espírito” (Nm 11:29). Ainda que o trabalho de Deus seja executado de um modo, por uns, é perfeitamente possível praticá-lo de outro modo. Ainda que alguém profetize na tenda da congregação, é possível profetizar no arraial. Desde que isso se faça pelo Espírito do Senhor...
Este não é o lugar para demonstrações técnicas, mas é possível comprovar, pela Bíblia, que Jó viveu por volta da época de Jacó e seus doze filhos. Temos, pois, em Jó, um autêntico ministro de Deus situado fora da linha dos descendentes de Isaque. Se alguns gostam de enfatizar que o livro de Atos foca Pedro e Paulo, em detrimento dos outros ministros, temos em Jó não alguns versículos, mas um livro bíblico inteiro dedicado a um ministério paralelo aos de Jacó e seus filhos. Tal era a predileção de Deus por Jó que, após Satanás ter dado voltas à terra, não lhe perguntou se observara Jacó ou José, mas: “Observaste o meu servo Jó?” (Jó 1:8;2:3). Ainda que Jó não fosse descendente de Isaque e Jacó, a bênção, a atenção e o mover de Deus estavam também com ele, no tempo dos patriarcas.
Mas isso não é tudo. Pode-se estabelecer também que Sansão e Samuel julgaram Israel no mesmo período. Nunca houve contradição em Deus levantar mais de um juiz sobre Israel, ao mesmo tempo, já que a unidade divina se dá dentro de uma ampla pluralidade.
Essa verdade se encontra por toda a parte, nas Escrituras, assim como um princípio correspondente pode ser encontrado por toda a parte, na natureza. Ao longo da História, Deus a ratifica repetidamente. Após o decreto de Ciro para que os judeus retornassem livremente à sua pátria, Daniel (notem bem: o abençoado Daniel) permaneceu longamente em Babilônia. É o que se depreende dos versos 1 e 4 do capítulo 10 do seu livro. Não será o caso de se perguntar por que ele lá permaneceu, se Deus desejava que o seu povo reconstruísse o Templo, Jerusalém e as outras cidades e aldeias? Por que ele ficou lá, se o culto especial só podia ser prestado no lugar que o Senhor escolheu? Enfim, se Deus havia dito: “Buscareis o lugar que o Senhor vosso Deus escolher de todas as vossas tribos, para ali pôr o seu nome, e a sua habitação; e para lá ireis. A esse lugar fareis chegar os vossos holocaustos, e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta das vossas mãos, e as ofertas votivas, e as ofertas voluntárias, e os primogênitos das vossas vacas e das vossas ovelhas” (Dt 16:5-6)?
Se descumprir esse mandamento era pecado, o próprio Deus foi cúmplice de Daniel, pois confirmou a permanência dele em Babilônia, concedendo-lhe visões. Mas não há pecado algum. Simplesmente, o mover de Deus é tão elevado que não se sujeita a obrigações formais e estritas. O povo voltava para a pátria, Daniel permanecia em Babilônia, e nessas duas coisas estava o mover de Deus.
Vejamos, porém, casos do Novo Testamento. João batizava em Enom, e o Senhor, do outro lado do Jordão (Jo 3:22-23), sem qualquer desarmonia ou emulação. Acaso aquele que repreendeu energicamente os seus discípulos, os fariseus, os herodianos, o próprio Herodes e os pecadores, quando erraram, não teria repreendido João Batista, se este houvesse estabelecido um ministério concorrente com o de Jesus? Mas Jesus não o repreendeu. Antes louvou-o, quando os discípulos daquele ministro o interpelaram.
Se a obra paralela fosse um desvio, quando os discípulos de João procuraram Jesus, por que ele não mostrou o erro de João? Por que, ao contrário, chamou-o maior de todos os nascidos de mulher até o fim da era dos profetas (Mt 11:11,13)? Como podia um desviado ser maior do que Abraão, Moisés, Davi, Isaías, Jeremias e Daniel? O Senhor situou todo o trabalho ministerial de João, inclusive o período em que ele transcorreu paralelamente ao de Jesus, na era da lei e dos profetas, antes do reino dos céus. A questão é como um ministro decaído e desviante pode ter sido posto acima dos de todos os profetas?
É fora de dúvida que João se equivocou, mas há modos e modos de se equivocar. O erro de João Batista não foi grave ou culposo. Atos é inequívoco ao indicar que o discipulado mencionado pelo Senhor, em Mateus 28:19, era o de Cristo e de mais ninguém. Na igreja primitiva, sob orientação do Espírito Santo, levantaram-se muitos discípulos, mas não vemos alguém ser chamado discípulo de um ministro que não seja Cristo. Só em relação a Paulo, e ainda assim como um reflexo de sua posição passada no judaísmo, mencionam-se discípulos (At 9:25).
No entanto, nem João, nem Paulo perderam-se por terem mantido discípulos, já que ter discípulos não é, em si, errado ou proibido. Em Israel, ter discípulos não significava mais que ser mestre. E a igreja sempre teve mestres (At 13:1-2; Ef 4:11). O Velho Testamento também fala em moços seguidores de Moisés, de Elias e outros. Não se trata de justificar quem quer que seja, mas de contextualizar os fatos que nos cabe julgar.
João viveu num período de transição. Isso significa que Israel passava da época em que os profetas haviam tido seguidores, e os mestres, discípulos, para uma era em que todos seriam ensinados por Deus. Nada mais cabível que, num tempo de transição, a passagem de um a outro desses quadros se dar gradativamente.
Quando João batizava em Enom, sua obra era paralela à de Cristo, mas dava testemunho dele. É o que João 3:26 nos informa: “Mestre, aquele que estava contigo além do Jordão, do qual tens dado testemunho, está batizando”. "Do qual tens dado testemunho"! João continuava a prestar o seu testemunho de Cristo. E não só isso. Ele também formava discípulos para fazerem o mesmo, pois declarou: “Vós sois testemunhas". Testemunhas de quê? Ele mesmo esclareceu: "testemunhas de que vos disse: eu não sou o Cristo, mas fui enviado como seu precursor. O que tem a noiva é o noivo [Jesus]; o amigo do noivo [João] que está presente e o ouve, muito se regozija por causa da voz do noivo. Pois esta alegria já se cumpriu em mim. Convém que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3:28-30).
Meu objetivo não é minimizar os erros de João. Mas é preciso definir claramente esses erros. Digamos que João tenha errado gravemente: ainda assim, seu erro não invalida o princípio das obras paralelas, seguido corretamente por Jó, Daniel e tantos outros. A verdade bíblica não é assim tão miserável que possa ser abalada pelo erro de um homem.
Quando seus discípulos vieram relatar-lhe o “sucesso” de Jesus além do Jordão, João respondeu-lhes: “O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada” (Jo 3:27)! Ninguém angaria coisa alguma boa, se os céus não lhe dispensarem. Cada qual faz o que os céus lhe dão. Se alguém faz muito, sem iludir, é porque Deus lhe deu muito; se outro faz mais, é porque Deus lhe concedeu mais; e se o Cristo faz tudo, é porque lhe tem sido dado tudo! Os céus tudo decidem.
Não há por que brigar ou proibir, zangar-se ou boicotar. Deus deixa caminho aberto a todos os ministérios, a fim de que o que é bom floresça, o que é melhor floresça mais e o que é melhor do que tudo imponha-se sobre todos. Essa é a obra do Novo Testamento. Assim surgiu o evangelho e por nenhum outro método.
O próprio Senhor ordenou a seus discípulos que não proibissem a obra de quem não seguia com eles: “Falou João [Zebedeu] e disse: Mestre, vimos certo homem que em seu nome expelia demônios, e lho proibimos, porque não segue conosco. Mas Jesus lhe disse: Não proibais; pois quem não é contra vós outros, é por vós” (Lc 9:49-50). Nessa passagem, a razão dada para a não proibição de modo nenhum foi negativa. Jesus não negou que ele ou os apóstolos por ordem dele tivessem jurisdição para proibir. Algo mais forte foi dito: Jesus declarou que o obreiro que atuava paralelamente e fora repreendido pelos discípulos estava em harmonia com eles. Portanto, o trabalho do obreiro não só devia ser tolerado como ele tinha o mesmo direito dos apóstolos de ministrar.
Quem tem algo a dizer, diga-o. Quem não tem, cale-se e ouça. Não é o que Paulo recomenda aos coríntios praticarem em suas reuniões públicas (1 Co 14:27-30)? Ampliemos esse princípio absolutamente, e teremos o Novo Testamento. Mas, por falar em Paulo, ele não nos relata que, após a sua conversão, não consultou carne e sangue para iniciar o seu ministério? Não trabalhou paralelamente aos apóstolos, em Damasco e depois na Arábia? E não o fez sem consultar quem quer que se possa chamar carne e sangue (Gl 1:16-18)? Como se não bastasse, não citou ele tal fato para justificar uma radical liberdade em Gálatas? Se Paulo o citou, devemos tê-lo não só como possível, mas como um modelo.
Acaso Cefas, de Jerusalém, Paulo, de Antioquia, e Apolo, de Alexandria, não estiveram todos em Corinto? Não foram todos apóstolos para os coríntios? Eis um lindo e harmonioso exemplo. Embora Corinto fosse a região de labores especiais de Paulo, como os outros apóstolos apressaram-se a reconhecer (Gl 2:9), Jerusalém não pediu autorização para mandar um apóstolo ali. Claro que, cedo ou tarde, uma coordenação ia ser necessária, mas a obra de Deus se dá num contexto de fundamental pluralismo.
Que dizer, então, de Barnabé, Apolo e outros, que não seguiram física ou doutrinariamente a Paulo? Barnabé desentendeu-se com Paulo e se separou dele (At 15:39), e Apolo de modo nenhum atendeu um pedido dele sobre o trabalho missionário de ambos (1 Co 16:12). Claro que isso não precisa ser tomado como exemplo ou paradigma, mas, se houve ali algum erro, tampouco precisamos aumentá-lo ou considerá-lo algo que não pudesse ser removido, um minuto depois, pela confissão.
Se Paulo obteve supremacia no ministério, como Moisés antes dele, foi devido à graça superior que recebeu e que, pouco a pouco, desabrochou. E se Barnabé e Apolo tiveram alguma desvantagem, proveio também daí, não de terem trabalhado paralelamente.
Por toda parte, vemos a mesma coisa. Deus nunca proibiu, pelo contrário incentivou e fomentou fortemente os trabalhos ministeriais paralelos. Desses fatos, devemos extrair que o trabalho paralelo é um verdadeiro princípio bíblico e, como tal, é obrigatório. Deve existir. O que não se deve é confundir o trabalho paralelo (o princípio) com os erros eventuais dos ministros de Deus.
Estêvão foi muito além da incumbência para a qual fora designado, em Atos 6. Ele passou do serviço às mesas à discussão pública com os judeus. E, ao fazê-lo, não repetiu o ensino de Pedro e dos onze, mas tratou de outras revelações com o mesmo objetivo deles: pregar a salvação de Cristo. Essa atitude de Estêvão desencadeou uma cruenta perseguição. Claro: quem olhasse tal quadro com espírito autoritário diria que ali não estava somente um desvio ministerial, mas a devida punição a ele! Olhemos, porém, atentamente, para Atos, e veremos em Estêvão o que é um homem identificar-se plenamente com Cristo, o que é um homem ter rosto como de anjo (At 6:15) e subjugar as trevas com luz indizivelmente clara.
Não está aí um quadro de inegável pluralismo? E não podemos concluir, desses fatos, que a obra cristã primitiva desenvolvia-se em tal pluralismo? Nem mesmo o ministro confirmado por Deus com uma sabedoria superior à de todos os demais era encarregado da obra em toda a Terra. Paulo reconhecia claramente a sua “esfera de ação”. Foi essa a expressão que ele utilizou em 2ª aos Coríntios 10:13: “Nós, porém, não nos gloriaremos sem medida, mas respeitamos o limite da esfera de ação que Deus nos demarcou e que se estende até vós”. Não há ministro algum cuja seara seja ilimitada.
Lembremo-nos também de que a seara de Paulo sequer cabia exclusivamente a ele. Pelo contrário, Paulo disse que Apolo regou o que ele plantara. Disse mais que o mistério do crescimento não veio dele, nem de Apolo, mas diretamente de Deus (1 Co 3:6). Portanto, Paulo dividiu sua seara com Apolo, como a dividira antes com Barnabé. Ninguém é designado sozinho para a obra em toda a Terra para a obra numa região qualquer. Não é pouco importante lembrar que ser designado com outro, aqui, não é o mesmo que ser acompanhado de um escravo ministerial.
Vemos, em tudo, que a unidade cristã é plural. Assim é no Velho e no Novo Testamento. Não é de outro modo na História da Igreja, em particular na época dos pais que sucederam os apóstolos e transmitiram o seu ensinamento. Cipriano foi um deles. Sabemos que opôs-se à intenção de Estêvão de Roma de impor a sua convicção a todas as igrejas do orbe sobre o batismo dos hereges. Convocando um concílio, na sua região, para decidir o assunto, Cipriano recomendou aos bispos que expressassem livremente o seu sentimento sobre o assunto. É comum ver-se, nesse seu gesto, decidida oposição às pretensões demasiadas do bispado romano.
Ireneu, por sua vez, afirmou, no século II, que a dissonância no jejum não dissolve a consonância na fé. E Gregório de Roma declarou que a divergência sobre determinados assuntos não fere a unidade da igreja.
Poderíamos dar outros exemplos, tanto da época dos pais como posteriores. Não o faremos para não nos tornarmos cansativos. O importante, o digno de realce, é a virtual unanimidade, o amplo acordo dos pais sobre o tema. Não creio que eles teriam chegado a esse consenso, se uma prática oposta houvesse criado raízes na época dos apóstolos. Pelo contrário, se esse tivesse sido o caso, os ramos nascidos das raízes teriam sido observados e testemunhados por eles.
Nem uma testemunha externa, um governante como Plínio, o Moço, na epístola que dirigiu ao Imperador Trajano sobre os cristãos, apontou qualquer prática desviante dessas. Plínio descreveu a vida cristã primitiva de modo tão simples que parece incompatível com a hierarquia e o controle.
Se em certas épocas um obreiro se torna digno de maior destaque, como José entre os doze patriarcas e Paulo a seu tempo, devemos lembrar-nos de que toda grande verdade de Deus tem o seu outro lado. Do contrário, não seria grande. Sem o seu outro lado, verdade entra em desequilíbrio. No caso da obra de Deus, a unidade precisa do equilíbrio da pluralidade.
Se o enfoque centralizado num obreiro é importante para a unidade da igreja, o pluralismo também o é. De modo nenhum, esse pluralismo desagrega a unidade. Pelo contrário, ele a acrisola, purifica-a e a torna mais forte. É na colaboração de diversidades e até de contrariedades que a unidade final se enriquece. De modo que a unidade sem pluralidade é pobre, não passa pela prova. E, por não passar, Deus mesmo a descarta. Substitui a unidade da uniformidade pela unidade da diversidade, que a natureza e a Bíblia exemplificam.
Essa diversidade precisa ser tão respeitada quanto a unidade que dela resulta. Elas são aspectos da mesma verdade. Toda unidade é, portanto, o âmbito de uma diversidade não apenas real, mas forte e prevalecente. Alguns perguntarão: como a unidade poderá ser alcançada, dando-se espaço para a pluralidade? Devemos, porém, lembrar-nos de que a construção da unidade não obedece a um passo-a-passo definido, nem é produzida pelo braço humano. É, antes, obra de Deus sujeita aos princípios das Escrituras. Se esses princípios estiverem assegurados, não importam os métodos como eles são implementados.
Paulo conclui suas observações em prol do uso do véu, em 1ª aos Coríntios 11:16, afirmando que, se alguém pretendesse ser contencioso e não seguir a sua recomendação, devia saber que os apóstolos e as igrejas de Deus não tinham tal costume. Dessa frase alguns extraem que há costumes comuns às igrejas, o que é óbvio. Que povo não tem costumes? Porém, os costumes a que Paulo se refere não são obrigatórios. Se o fossem, feririam a comunhão não condicionada que deve vigorar nas igrejas. Ou temos costumes obrigatórios, ou temos comunhão.
Os que invocam 1ª aos Coríntios 11:16 em altos brados querem usar os costumes ali mencionados para impor a uniformidade na igreja. Mas o verso não se refere ao cristão que utiliza sua liberdade para não apoiar o uso do véu, por motivo de consciência. Se fosse assim, a recomendação específica de Paulo, no tocante ao véu, entraria em conflito com Romanos 14:3,6, em que ele afirma: “Quem come não despreze ao que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu [...] Quem distingue entre dia e dia, para o Senhor o faz; e quem come, para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come, para o Senhor não come, e dá graças a Deus”. Costumes diferentes são lícitos, quando baseados em convicção.
Não há qualquer evidência de que as igrejas neotestamentárias tivessem práticas com força de condição espiritual para uma comunhão plena. Entre elas, havia considerável liberdade de formas, desde que não pecaminosas, é claro. Nem o acordo no tocante a práticas significava unidade, nem a diversidade de formas era considerada divisão.
Sob esse conceito, unidade é o somatório de todos os diversos, sem exclusão de algum. Uniformidade, por sua vez, é a unidade forçada e apenas de alguns. Um autor conhecido afirmou que o Novo Testamento defende a maior pluralidade de dons, pessoas e tudo o mais, exceto a pluralidade de igrejas (BARTH, Karl. "A igreja e as igrejas". In Dádiva e louvor- artigos selecionados. São Paulo: Sinodal, 1986.p. 207). Assim é, se nenhum dom ou pessoa for excluído. Mas, se houver exclusão, restará a uniformidade.
Os que são contrários a esse ponto de vista lembrarão que Paulo condenou a existência de partidos na igreja em Corinto (1 Co 1:10-13). Dirão, pois, que não só a pluralidade de igrejas é pecaminosa, mas também a pluralidade de grupos na mesma igreja. Ocorre que Paulo não condenou quaisquer grupos. Condenou partidos, ou seja, germes de futuras divisões maiores. Condenar partidos é o mesmo que condenar a pluralidade de igrejas, à qual eles tendem, já que os partidos são o estágio incipiente da pluralidade de igrejas.
Ao mencionar os partidos, portanto, o apóstolo não condenou a pluralidade, mas a doença dela, que ameaçava devorar a unidade. Ele condenou a tentativa da parte de dominar todo o corpo, como um tumor que cresce desordenadamente. Fundamental é tratar elementos plurais, a exemplo de opiniões, como elementos do todo, não como o próprio todo.
Não fazer da parte um todo, dos elementos da pluralidade uma nova unidade é a advertência dirigida a todo cristão. Claro que, se outra pessoa toma aqueles elementos e os usa para criar uma nova unidade, a responsabilidade não é de quem os criou. O inventor do avião não pode ser preso pela utilização de seu engenho para fins bélicos. Nem podem os autores bíblicos ser condenados por heresia, porque hereges usaram as Escrituras para sustentar suas doutrinas.
E, se essa é a unidade bíblica, a implantação prática dela há de ser o caminho para a restauração da igreja. Por muito tempo, temo-nos esforçado para implantar uma unidade férrea e inflexível. Talvez, no início da restauração da igreja, essa estratégia tenha sido necessária. Não se desatola o veículo sem acelerar o motor mais do que é benéfico para ele. Porém, é necessário um redirecionamento para o equilíbrio entre unidade e diversidade, o que não é absolutamente arriscar a unidade.
Se a restauração da nação de Judá, no Velho Testamento, é um tipo da que ocorre na era da igreja, a reconstrução das cidades e vilas, no interior do país, é uma das suas etapas finais. E, se Jerusalém, é o símbolo maior da unidade prática, as cidades e vilas representam a pluralidade. Necessário é, pois, reerguer os centros de pluralidade dentro da unidade. Do contrário, tudo o que nossa unidade expressará será desolação.