quinta-feira, 20 de junho de 2013

A Unidade da Igreja (3)

4. Até a unanimidade

Efésios 4 nos fala de duas unidades: a do Espírito (Ef 4:3) e a da fé (Ef 4:13). A primeira é a unidade possível hoje. Somos exortados a preservá-la, pois já a possuímos. Porém, o outro versículo ordena buscarmos também a unidade da fé, que ainda não possuímos. Portanto, a unidade da fé é futura.
Que significam essas duas unidades? A do Espírito é a que pertence a ele e só ele pode produzir, embora a sua preservação dependa do nosso esforço, como o primeiro versículo diz: “Esforçando-vos diligentemente para preservar a unidade do Espírito”. Mas a outra unidade, da fé, envolve tanto a fé vital como convicções secundárias (Rm 14:22), a exemplo de o que comer, que dias guardar e coisas semelhantes.
Efésios 4:13 fala-nos da unidade da fé nesse sentido amplo. Refere-se à unidade da fé primária e também secundária. A primeira é a fé que conduz à salvação, a fé que "de uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3). Se ela nos foi entregue, já a possuímos. Temos também a unidade que se dá em torno dela. Porém, com a unidade da fé (primária e também secundária) se passa o contrário. Ainda não a possuímos, pois essa fé integral não terminou de nos ser revelada.
Não nos enganemos, esperando que a fé de cada um possa, à força de autoritarismos, chegar a ser idêntica. Não é possível saltar a etapa atual da unidade do Espírito, que nos faz um enquanto ainda mantemos divergências em matérias de fé secundária. A unidade do Espírito envolve conformidade na fé e diversidade em matéria de opinião. Claro que, por isso, a negação do direito à opinião e à sua expressão constitui um furto de liberdade, uma escravização do cristão, que por sua natureza é livre.
Assim, o limite óbvio para a divergência entre os cristãos, hoje, é o plano de Deus, no qual está calcada a fé que opera para salvação. No original de 1ª a Timóteo 1:3-4, a conformidade do ensino à dispensação ou economia de Deus é exigida: “Roguei que permanecesses ainda em Éfeso para admoestares a certas pessoas a fim de que não ensinem outra doutrina, nem se ocupem com fábulas e genealogias sem fim, que antes promovem discussões do que o serviço [economia] de Deus na fé”.
Ensinar outras doutrinas é afastar-se da economia, isto é, do plano de salvação de Deus. Fábulas e genealogias sem fim, como as introduzidas pelos gnósticos, negam esse plano de salvação, que se direciona a um só fim e não a vários. Por isso, são proibidas na igreja. Do que também se conclui que a diversidade ajustada ao plano divino não pode ser combatida, mas a que não se ajusta deve ser eliminada.
Outra distinção importante é a que se pode traçar entre unidade e unanimidade. Esta é a unidade de opiniões, sentimentos, pontos de vista. É a unidade total da alma. Por seu caráter perfeito, a unanimidade é uma flor delicada, que não cresce em qualquer clima, nem em qualquer solo.
Sob inspiração do Espírito, o escritor de Atos usou muitas vezes os termos unânimes, unanimidade e outros semelhantes. Porém, só o fez no início do seu livro, o que sugere que a unanimidade estava presente, naquele tempo, mas não em épocas posteriores. Isso é confirmado nas epístolas, em que Paulo exorta seus leitores a buscarem a unanimidade: “Completai a minha alegria de modo que penseis a mesma coisa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o mesmo sentimento” (Fp 2:2) e “Rogo a Evódia, e rogo a Síntique pensem concordemente no Senhor” (Fp 4:2). Vemos que a unidade estava presente em Filipos, mas a unanimidade não. Não era diferente na maioria das outras igrejas da época.
Porém, ainda quando não está presente, a unidade total de alma ou unanimidade deve continuar a ser nossa meta. Devemos trabalhar continuamente com vistas a ela. Só não adianta nos iludirmos. Não adianta forjarmos a unanimidade com a ferramenta do autoritarismo. Esse método é inteiramente humano. Não pertence ao Espírito. E, por não pertencer, por meio dele, só alcançaremos a unanimidade humana, jamais a do Espírito. Devemos, sim, exortar, conciliar e trabalhar de vários modos pela unanimidade dos que creem, mas não usar o esforço desassistido da graça para obtê-la.
A divisão é um erro grave, um descontrole no seio da diversidade. Nas relações familiares, encontramos bons exemplos de como ela opera. Por mais que haja desentendimentos entre os membros de uma família, o amor costuma ser mais forte que tudo. A família não se mantém unida pela ausência de diversidade ou de desavenças, mas pela presença do amor. Por isso também, a perda da unidade, na família, é uma verdadeira aberração.
Da mesma forma, as divisões existentes na igreja, são um sério problema. Por elas, a família de Deus é rompida, a realidade da vida familiar é perdida, e a unanimidade se torna uma meta inviável. Isso não é menos que uma aberração. Para usarmos a metáfora de Cipriano, é como se os raios do disco solar se desconectassem dele.
Infelizmente, nem a unidade do Espírito parece muito presente, na igreja de Deus, hoje. Atraímos vergonha para o evangelho, dividindo-nos e nos mantendo divididos do modo mais cruel e radical.
[Cabe inserir, aqui, um comentário. De 1991, quando A unidade da igreja foi escrito, até hoje, uma ação especial do Espírito Santo fez aumentar bastante a compreensão entre cristãos das mais variadas confissões. Oposições tradicionais como a católico-protestante, a católico-ortodoxa, a wesleyana-calvinista e a histórico-pentecostal continuaram a sofrer desgastes impostos pela nova consciência. Não cabe comentar, aqui, os fatores desse desgaste, mas é importante afirmá-lo, para que o diagnóstico sobre as divisões, apresentado no texto, não seja interpretado como historicamente imutável. As divisões cristãs não são inalteráveis. Embora constituam um problema persistente, elas mudam em intensidade e até em natureza, ao longo do tempo. Foi o que se deu, ainda mais intensamente que antes, nas últimas décadas].
Por isso, somos chamados a restaurar a unidade bíblica, a unidade do Espírito, rumo à unanimidade, não à unidade do homem, da carne ou do sangue. Nessa senda, o que excede os princípios da unidade deve ser objeto de tolerância e de transação por parte dos cristãos. Não se trata de saber se uma prática originou-se aqui ou ali, se Fulano ou Beltrano a propôs. Se quem a traz é um irmão de fé, devemos permanecer abertos a ele e a ela.
Só um mínimo de princípios necessita ser salvaguardado. Em tudo o mais, resta-nos permanecer de braços abertos e anelantes por abraçar os irmãos de qualquer procedência. A igreja só é local, porque o homem é limitado. Se ele não o fosse, só a igreja universal existiria. Portanto, nem o caráter local, nem o aspecto universal da igreja são mais importantes do que o amor.
Ao escrever este texto, não penso em direitos, meus ou de outros. O amor não enxerga direitos, somente deveres. Tampouco considera receber, mas dar. Por isso, o amor é o espírito da unidade. A unidade se realiza na comunhão, e a comunhão, no amor. Vale sempre dizer, no amor fraternal, que é também uma amizade. No amor de Filadélfia. Verdade é que há muitas barreiras regionais, culturais, geográficas, políticas e até pessoais a esse amor. Mas ele tem o incrível poder de explodir todas as barreiras. É o que vemos realizado no livro de Atos.
Naquela época, as dificuldades de comunicação eram imensas, mas a unidade estava calcada no amor. Um grande número de evangelistas, de mestres e até de apóstolos, autointitulados ou não, possuía cada qual sua esfera de ação. Porém, um trânsito de amor e um esquecimento contínuo dos próprios direitos aproximavam pessoas assim distantes e faziam delas um corpo.
Isso mostra que o que separa não é a geografia, mas o interesse particular. Não são as dificuldades de comunicação. É o apego ao ego e aos próprios direitos. O amor, porém, faz esquecer o eu e pensar no tu. Ele estreita as distâncias e fecha as lacunas que o interesse e o direito abrem.
De que necessitamos mais, hoje, do que do amor, que é uma singela amizade entre irmãos? Não permitamos que um sistema rígido esfrie esse amor entre nós. Os princípios da unidade divina não formam um sistema. Não formemos nós um, nem coloquemos qualquer sistema de prescrições e proibições acima da comunhão.
Unanimidade é o fruto do perfeito amor. É Atos capítulos um a cinco. Talvez pensemos que é preciso não ter pecado para experimentar o que se encontra nesses capítulos. Mas Atos foi escrito para mostrar que isso não é verdadeiro. Para viver a unanimidade, não é preciso não ter pecados, mas cobrir os que se tem. Só o amor realiza isso: “Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados” (1 Pe 4:8).
Pedro cita Provérbios 10:12, que afirma que “o amor cobre todas as transgressões”. Essas duas testemunhas, uma do Velho, outra do Novo Testamento, estão a nos mostrar que o amor tem relação com os pecados. Ele não os expia ou remove, como a justiça faz. Mas os homens não buscam a justiça o tempo todo. Por isso, o pecado está sempre presente entre eles. Só o amor é capaz de cobri-los.
Essa é a única e verdadeira condição da unidade: cobrir os pecados uns dos outros, por meio do amor. Se não há justiça sem perdão, não há comunhão sem o amor que cobre pecados. Não há comunhão sem disposição para sofrer o dano injusto, em vez de impor a lesão justa. Isso é a lei e os profetas. E ainda mais claramente é o evangelho. O resto é teoria sobre a unidade e palavreado inútil. A unidade real, a unidade possível é a que se impõe, quando o amor cobre nossa multidão de pecados. Seja essa a nossa unidade.

São Paulo, 30 de maio de 1991.