Ernst Troeltsch defendeu a ideia de que Lutero foi um homem da Idade Média. E, em vários assuntos, ele de fato o foi. Ninguém muda um tempo em todos os seus aspectos relevantes, nem se engaja de modo integral no que é novo. Pensar o contrário é alimentar ilusões e exigir das personagens revolucionárias um vanguardismo sobre-humano.
Mas, apesar de seu manifesto interesse pela Teologia, Troeltsch talvez a tenha visto pelo reduzido ângulo de observação em que o nosso tempo a contempla, pois não restam dúvidas de que, no aspecto central da sua obra (o teológico), Lutero pertence à Modernidade e pode ser arrolado como um dos seus fundadores.
Para isso não ser verdade, seria necessário que Lutero não houvesse sido decisivo para revolução teológica alguma, o que certamente não é o caso. Às vezes, embaça a vista o fato de o Protestantismo que o seguiu ter negado ensinos fundamentais de seu fundador, como o livre exame e o sacerdócio universal, mas a responsabilidade pela negação deve ser debitada aos seus pósteros e aos herdeiros de Lutero, muito mais do que a ele próprio.
Em suma, numa visão afoita, pode parecer que, desde o princípio, o Protestantismo foi autoritário e fundamentalista, porém, com maior sobriedade, é possível separar Lutero (Melanchton, Zuínglio, Calvino e outros) e seus continuadores. Claro que, em questões como a Revolta Camponesa, Lutero adotou posições autoritárias, o que se debita à sua herança medieval, embora não seja fácil discernir se o fez por um ranço arcaico ou por entrever, nas arruaças dos revoltosos, práticas incompatíveis com a estabilidade não apenas da ordem posta, mas de toda a sociedade da época, o que seria diferente e tornaria a sua posição mais compreensível.
O que está claro é que Lutero foi, antes de tudo, um libertário, um apaixonado pela liberdade, cuja vida não coube no status quo religioso. A esse amor ele aliou um traço de intrepidez incomum, no homem médio, de ontem e de hoje, o que por si só explica boa parte dos acontecimentos que o envolveram. Claro que sempre haverá quem discorde disso. Estamos no território movediço das interpretações. Mas, quando olhamos Lutero de dentro para fora e não apenas a partir de fora, seu amor à liberdade e intrepidez ganham grande relevo e explicam, sim, boa parte dos fatos em que se envolveu.
Como todos os racionais, libertários também sabem em quantas ocasiões precisam contemporizar e fazer ceder seu amor à liberdade. Sabem que não são onipotentes e precisam recuar, aqui e ali. Mas não peçam a um libertário que acomode o pescoço ao jugo. Ele preferirá morrer a fazê-lo.
Esse tipo foi Lutero. Ele entendeu que uma libra era diferente demais de uma liberdade. Por isso, ao perceber que o preço cobrado por Tetzel, o vendedor de indulgências à sua região, não se calculava em libras, mas em liberdades, revoltou-se. Na ocasião, ceder pareceu-lhe o mesmo que depositar docilmente o pescoço num jugo, o que se pede e obtém de muitos, não porém de um libertário. O resto já o sabemos. Sabemos o que sucedeu em seguida. Mas tendemos a perder de vista que tudo teve relação com o sentimento indômito de liberdade de Lutero.
A liberdade é, quase sempre, aguda nos poetas. Pergunto-me se o próprio verso não é uma forma criada e escolhida para permitir a vazão desse sentimento e dos outros, cujos grilhões ele rompe. E se o desacorrentamento do amor, da amizade, do protesto, da contestação, do repúdio, da ira, da generosidade etc. não é obra da liberdade. Desconfio que sim e que, se a forma perfeita para isso, não é o verso, é por certo a poesia. A liberdade que não se ajusta ao verso assimila-se à poesia. Nela e somente nela, esse sentimento desacorrenta os demais, seus irmãos. Liberta o amor, o descontentamento, o arrebatamento, a sublimação, entre tantos. Em verso ou em prosa, toda poesia é de fato libertária, e só uma inversão muito grande pode pô-la a serviço de uma dominação.
Claro que a liberdade encontra temperamentos tíbios e destemidos. É por ambos servida, mas muito melhor pelos últimos. A conjugação da liberdade com a intrepidez, mais que as ideias que elas servem juntas, é quase sempre o que deflagra as genuínas revoluções. Foi assim também na Reforma e, exemplarmente, no caso de Martinho Lutero, que foi um genuíno poeta da Teologia. Da conjugação de sentimentos reunidos em Lutero, não explodiu uma obra típica da Idade Média, mas algo nunca antes visto.
Afirmar que as ideias teológicas foram a causa da Reforma é errar grosseiramente. Os sentimentos o foram, liderados pela liberdade, que foi indômita o bastante para não ser esmagada e conduzir a uma autêntica emancipação. No entanto, embora costume reger outros sentimentos, a liberdade liga-se mais umbilicalmente a alguns que a fazem ser liberdade disso ou daquilo. Por exemplo, liberdade de tomar parte numa decisão, de se locomover, de plantar, de colher, de comprar, de vender, de acumular, de fazer e de se abster de fazer, de se associar e se desassociar, de falar e calar. Liberdade de crer, de pensar, de amar e de detestar. Todas essas liberdades emanam da especial associação a outros valores.
A liberdade que moveu Lutero, de modo primordial, não foi a de crer, mas a de amar. Amar a verdade cristã, e só por isso crer nela. Se tiver sido o poeta que penso que foi, o artista que escreveu em prosa, mas também compôs versos, Lutero terá sido um poeta lírico. Quando exaltado, o sentimento de liberdade que move um poeta de tal estirpe tende à iconoclastia. Com abalo, ele sente que nenhum ídolo é a verdade da coisa que retrata, mas a sua aparência. É um simulacro que, amado, escraviza e impede o espírito de alcançar aquele objeto. Ao impor a perda da verdade, portanto, o ídolo agride o sentimento de liberdade do poeta e desperta a iconoclastia. Que dizer do poeta teológico!
Elias não foi movido por outro sentimento, ao combater o culto a Baal. Nem João Batista, ao renunciar ao sacerdócio hereditário para vociferar no deserto contra os pecados do povo. Embora o primeiro tenha subvertido um culto pagão, o último alterou uma instituição considerada santa. No fundo, os dois removeram simulacros. Lutero também rachou um ídolo que, como o de João, tinha aparência santa, mas não real santidade: as obras do esforço humano. E o fez porque elas anulam a suficiência da fé para a salvação. Como a fé pode ser suficiente para garantir a graça de Deus, se as obras são consideradas necessárias para a salvação? Se por meio da indulgência o indivíduo pode ser salvo do purgatório ou mesmo do inferno?
O sola fide nunca significou que o indivíduo é salvo pela fé, mas só pela fé. Na época de Lutero, significou, especialmente, que ele era salvo sem indulgências, esmolas, sem a aparência de que o sacramento se reveste e sem a própria Igreja hierárquica.
O sola fide é, pois, um grito de liberdade, um ato iconoclasta. Só deixa de o ser quando o apelo à fé, que é comoção com a verdade, passa a ser um apelo à sua aparência (ao consentimento a um credo ou a uma disciplina). Isso ocorreu, muitas vezes, na esteira da Reforma Protestante.
Na encíclica Libertas, o Papa Leão XIII exprimiu o conceito católico de liberdade, em conexão com a lei natural entendida como expressão da razão. Nas suas palavras: “Todo ser é o que lhe convém segundo a natureza. Por isso quando se move segundo a razão, é por um movimento próprio que ele se move, e opera por si mesmo, o que é a essência da liberdade; mas, quando peca, procede contra a razão, e então é como se fosse posto em movimento por um outro e sujeito a uma dominação estranha. É por isto que “aquele que comete pecado é escravo do pecado” (LEÃO XIII. Libertas. Disponível em www.vatican.org).
A Reforma, enquanto movimento desenvolvido até o meado do século XVI, aproximadamente, sempre foi incompatível com essa ideia católica de liberdade, derivada da Suma teológica de São Tomás de Aquino. No claustro de um mosteiro agostiniano que seguia a filosofia de Occkham e não a de Tomás, é que ela foi concebida. Por isso, foi, desde o início, uma mescla de ideias de Occkham e de Agostinho. Do primeiro, extraiu o conceito de um Deus que se move por uma vontade soberana, não pela razão. Por exemplo, para Guilherme de Occkham, Deus não criou o Universo em conformidade com uma razão necessária, mas de acordo com a sua vontade. Tampouco o criou com base na lei eterna ou na natural.
O sola fide não deixa de ser expressão dessa concepção geral de Deus. Por que Deus salva por fé e não por obras? Porque assim deliberou fazer. E por que a salvação é efeito de uma predestinação? Porque não se atém ao mérito da pessoa ou mesmo à sua fé, mas ao decreto soberano de Deus. Esse decreto é expressão da vontade divina, não da sua razão. Claro que tal doutrina não surge, em Lutero ou nos outros reformadores, diretamente de Occkham, sem mediação de Santo Agostinho. Realização peculiar da Reforma foi, exatamente, essa mediação, que nem Lutero, nem Calvino, nem outros receberam pronta.
O mais importante, na doutrina assim concebida, é a ideia de liberdade que lhe subjaz e que deu vazão ordenada ao sentimento indômito já mencionado. Essa ideia surgiu da forja do occkhamismo medieval. Por isso, em todos os passos decisivos, não se reportou a uma razão natural ou abstrata, mas à vontade soberana de Deus.
Como a Reforma a concebeu, tal vontade não é o que costumamos chamar arbítrio, antes resulta da natureza divina, que é amor e não tem na razão sua fonte, mas uma forma de expressão. O próprio decreto de predestinação de Deus, como Efésios 1:5 nos diz, não se originou da razão, mas do bom-prazer ou beneplácito de Deus. Ou acaso esse verso afirma que Deus “nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo a sua reta razão?" Não diz, antes, “segundo o seu beneplácito”?
Se admitirmos que a compreensão da graça, por Santo Agostinho, nada mais é que a afirmação da doutrina bíblica da salvação ou a que mais se aproxima dela, não será difícil percebermos a alta inspiração por trás de sua associação ao occkhamismo, forjada por alguns reformadores. A fundação do cristianismo na liberdade ligada à razão é, ao contrário, um forte motivo para tornar a fé acessória. Que tem a fé de racional? Alguma coisa, por certo, mas não muito. Do contrário, não seria fé. E, se não tem muito de racional, a fé não se pode calcar na razão de Deus, mas na sua vontade, desígnio e predestinação.
A doutrina católica da liberdade, porém, tem na razão seu parâmetro. Mas que é a razão, para os católicos, a não ser o ensinamento da Igreja a respeito dela? Para serem conhecidas, a razão e a lei natural têm de ser decretadas, sob pena de os homens não serem capazes de as descobrir ou de concordar a respeito delas. O que está na natureza do homem, quando muito, é uma razão abstrata, que não tem conteúdo concreto, nem aplicação prática. O que passa disso tem de ser decretado para se tornar universal. No caso da lei natural e da razão em que se baseia, como não estão esclarecidas na Bíblia, quem as decreta é a Igreja.
Pode ser que, do alto de sua inspiração, Leão não tenha pretendido retirar da sua doutrina da liberdade essa consequência extrema. Talvez tenha sido sua intenção manter o conhecimento da lei natural difuso nos órgãos da Igreja, porém, na prática, as coisas jamais funcionaram assim. Para serem conhecidas, a razão e a lei natural têm de ser decretadas, sob pena de os homens não serem capazes de as descobrir ou de concordar a respeito delas. O que está na natureza do homem, quando muito, é uma razão abstrata, que não tem conteúdo concreto, nem aplicação prática. O que passa disso tem de ser decretado para se tornar universal. O problema é que, ao ser assim centralizada, a doutrina católica tende a se converter, simplesmente, em servidão à Igreja.
Não é diferente no meio protestante atual, em que, a despeito do discurso sobre o livre exame, a doutrina sempre converge para os Credos oficiais. Que seria do pobre crente, na sua denominação, se dissesse como Aristóteles: “Amicus Plato, sed magis amica veritas” (“Platão é amigo; mas amiga maior é a verdade”)? Se dissesse que “o Credo é amigo, mas maior amiga é a Bíblia”, com o objetivo de seguir uma interpretação contrária ao Credo? Não seria ele constrangido, pelos mais diferentes métodos, a conformar-se à profissão de fé da sua Igreja? Não seria, essa prática, uma nova forma do primado da razão conformadora? E não haveria, em tal caso, servidão ao Credo?
O problema é que essas duas concepções de liberdade, a católica e a protestante tardia, que se seguiu aos reformadores, não correspondem à liberdade bíblica. Ambas estão ancoradas na razão ditada por uma Igreja. No caso dos católicos, a situação é menos grave, pois eles creem na inspiração divina da Tradição e da Bíblia. Não há, pois, contradição entre a sua crença e a afirmação eclesiástica da recta ratio e da lei natural. Mas os protestantes não admitem tais coisas. Caem, pois, em contradição quando elevam as interpretações de suas Igrejas ao patamar da própria Bíblia.
Perguntamos, enfim, se a liberdade cristã, como vivida hoje, é de fato liberdade ou servidão. Achamos nesse um dilema formidável, que explica a contrarrevolução atual dos não crentes, que não enxergam liberdade no que é tão uniforme, tão padronizado, nas nossas Igrejas. E não conseguem, consequentemente, aceitar um evangelho que produza esse resultado. Por um lado, não chegam a ver a liberdade bíblica, por outro não aceitam a sua contrafação. E a nós, não nos cabe perguntar se trocamos a liberdade revelada por uma imitação?