Frequentemente, ouvimos dizer da experiência de Lutero, na torre, quando ele leu a citação de Habacuque por Paulo (“O justo viverá pela fé”). Ali, Lutero creu que Deus justifica o homem pela fé, independentemente de obras. Sua experiência costuma ser narrada para ressaltar a importância da descoberta de que o homem é incapaz de agradar a Deus, que o salva gratuitamente, por meio da redenção de Cristo. Porém, muito antes dela, a justificação pela fé fora descoberta por Paulo e mudara a sua vida para sempre. É o que verificamos à luz de Romanos.
Claramente, o ato de restituição do penhor ao pobre é imputado como justiça. Semelhantemente, doações a pessoas necessitadas também resultavam na justificação do doador: “Distribui, dá aos pobres; a sua justiça permanece para sempre” (Sl 112:9). O próprio Fineias, sacerdote, foi justificado por eliminar a causa da peste que aniquilava os israelitas: “Então, se levantou Fineias e executou o juízo; e cessou a peste. Isso lhe foi imputado por justiça” (Sl 106:30-31).
Tudo isso aponta para a existência de uma justiça relacionada à lei. Paulo a reconhece plenamente, pois lembra que “Moisés escreveu que o homem que praticar a justiça decorrente da lei viverá por ela” (Rm 10:5). Ele se refere a Levítico 18:5, em que Deus ordena: “Os meus estatutos e os meus juízos guardareis; cumprindo os quais o homem viverá”. Há aqui uma promessa de vida eterna, não gratuita, mas condicionada a determinadas obras. O problema é que o preenchimento da condição para obter o cumprimento da promessa é impossível, não porque seja difícil, já que Deuteronômio afirma “Este mandamento, que hoje te ordeno, não é demasiado difícil” (Dt 30:11), mas porque o homem tornou-se enfermo e incapaz de guardar a lei, por causa do pecado.
A impressão que se tem é de que a inviabilidade da justiça da lei infelicitou tão enormemente a Paulo (como a Lutero depois) que ele se pôs a buscar a resolução do problema, por todo o Antigo Testamento. É o que transparece das citações de Gênesis 15:6 e Salmo 32:1-2, em Romanos 4:3,7-8. Esses versos são agulhas retiradas por Paulo do vasto palheiro do Antigo Testamento, já que não se repetem, nem têm paralelos em outros textos.
Paulo aprofunda a sua descoberta dos versos misteriosos até onde lhe é possível. Extrai conclusões não da superfície deles, mas das suas profundezas. A que mais se destaca é o sentido do verbo imputar, cuja presença ele percebe tanto em Gênesis como no Salmo 32. E, por percebê-la, cita repetidamente a palavra, em Romanos 4. Às vezes Paulo a traduz imputar, outras vezes atribuir, ainda outras levar em conta, mas não se cansa de se referir à grande descoberta, como se nota nos seguintes trechos:
“Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça [...] Ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça [...] Davi declara ser bem-aventurado o homem a quem Deus atribui justiça, independentemente de obras [...] Bem-aventurado o homem a quem o Senhor jamais imputará pecado [...] Dizemos: A fé foi imputada a Abraão para justiça. Como, pois, lhe foi atribuída? [...] Pelo que isso lhe foi também imputado para justiça. E não somente por causa dele está escrito que lhe foi levado em conta, mas também por nossa causa, posto que a nós igualmente nos será imputado, a saber, a nós que cremos naquele que ressuscitou dentre os mortos a Jesus nosso Senhor” (4:3, 5-6,8,9-10, 22-24).
Nove vezes e em nove versículos, Paulo usa os verbos imputar, atribuir e levar em conta. Mostra, por meio deles, que, além da justiça da lei, há outra doada por Deus ao homem. Essa é a justiça da fé, a justiça atribuída ao que simplesmente crê, a justiça que mudou a vida de Paulo, a de Lutero e a própria História do mundo, libertando os homens da opressão do pecado e da lei.
Paulo se bate pela anterioridade dessa justiça à da lei. A justiça da fé manifestou-se a Abraão; a da lei veio séculos mais tarde, por meio de Moisés. Por ser anterior à lei, a justiça da fé é mais fundamental do que ela. Não só isso: a experiência das duas justiças é descrita com verbos distintos por Paulo. A justiça da lei manifestou-se, mas não pôde ser alcançada, pois o pecado tornara o homem incapaz de obtê-la. Quanto à da fé, Paulo abre o capítulo 4, indicando que Abraão a “alcançou”. Escancara esse fato e o põe em contraste com a justiça da lei, que se revelou, mas não foi jamais alcançada. O apóstolo indaga com ênfase: “Que diremos ter alcançado Abraão?” (4:1). Não importa só conhecer a justiça. Importa alcançá-la, como Abraão a alcançou.
Com base em Paulo, Santo Agostinho indica o motivo por que o homem não pôde alcançar a justiça da lei: “O livre arbítrio existiu perfeitamente no primeiro homem, mas em nós, antes da graça, não há o livre arbítrio de modo que não pequemos, mas somente de modo a não querermos pecar. Mas a graça faz com que não somente queiramos agir retamente, mas também com que o consigamos” (HIPONA, Agostinho de. Explicação de algumas proposições da Carta aos Romanos. São Paulo: Paulus, 2009. p. 26).
Infelizmente, a justiça da fé, descoberta por Paulo, perdeu-se na História que se seguiu. A consequência máxima da perda se vê na Idade Média, quando a hierarquia da Igreja Católica enfatizou a tal ponto a justificação pelas obras, para vender indulgências e outros benefícios, que o povo mergulhou em profunda superstição. A Reforma foi a reação inevitável a esse estado de coisas.
A crise assim instalada colocou as duas justiças face a face. Pouco antes do Concílio de Trento (1545-1563), teólogos católicos e protestantes chegaram a um consenso sobre o problema, no Colóquio de Ratisbona, ocorrido em 1541. Esse foi um momento histórico crucial, pois nele o rasgo iniciado com a Reforma esteve a ponto de cerzir-se. O consenso alcançado em Ratisbona, que se tornou conhecido como “fórmula da dupla justiça”, consistiu em afirmar que as obras anteriores à justificação do pecador não o auxiliam a obtê-la, mas as posteriores lhe são imputadas para justiça.
Infelizmente, o Concílio de Trento não só rejeitou a dupla justiça como aprovou, consecutivamente, a doutrina da colaboração do homem na justificação, a eficácia dos sacramentos, independentemente da fé, a atualização do sacrifício de Cristo na missa, a autoridade exclusiva da hierarquia eclesiástica, o purgatório e as orações aos santos. Assim, o desvio da justificação pela fé obteve um fôlego novo e se comunicou aos séculos que se seguiram.
Mas a justificação exposta em Romanos não se perdeu apenas na Idade Média. Ainda hoje, ela é frequentemente reduzida a experiência única, ocorrida no início da caminhada espiritual do homem com Deus. É inegável que a imputação inicial de justiça é um aspecto da justificação pela fé, mas não é o único. Não é possível reduzir a justificação a esse aspecto. Em Romanos 4:18-22, o apóstolo diz que “Abraão, esperando contra a esperança, creu, para vir a ser pai de muitas nações, segundo lhe fora dito: Assim será a tua descendência. E, sem enfraquecer na fé [...] não duvidou da promessa de Deus, por incredulidade; mas, pela fé, se fortaleceu, dando glória a Deus, estando plenamente convicto de que ele era poderoso para cumprir o que prometera. Pelo que isso lhe foi também imputado para justiça”.
O versículo 18 refere-se à primeira experiência de fé de Abraão. A promessa nele citada (“Assim será a tua descendência”) antecede a frase decisiva do Antigo Testamento: “Creu Abraão no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça” (Gn 15:5-6). Retrata, portanto, a atribuição inicial de justiça ao patriarca. Mas o versículo 22 indica que Abraão foi novamente justificado por Deus, ao alcançar convicção de que Deus era poderoso para cumprir a promessa de lhe dar novo filho.
Isso mostra que a fé e a atribuição de justiça não ocorrem só uma vez, na vida de cada indivíduo. São um trato contínuo de Deus com ele. Ao longo de toda a vida, o homem recebe a imputação da justiça. Ele é justificado por fé várias vezes. A partir da primeira justificação, suas obras passam a contar diante de Deus, porém não sem a fé ou desacompanhadas dela. Por isso é que o autor de Tiago reivindicou o papel das obras na salvação. A que exemplo ele recorreu, ao reivindicá-lo? Ao de Abraão, pois disse: “Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou, e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça; e foi chamado amigo de Deus. Verificais que a pessoa é justificada por obras e não por fé somente” (Tg 2:21-24).
Tiago depositou a fé no interior das obras. Viu, pois, as obras como locus natural da fé. Além de teológica, sua posição é antropológica. Indica que sentimentos como a fé nascem de experiências concretas. Não são abstratos. Podemos não só concordar com ele como admitir que o princípio que ele afirmou é universal. Vigora tanto antes como depois da primeira justificação. De sorte que, nesta, a fé já está misturada às obras. Não a boas obras, é bem verdade, mas a pecados, pois tudo e não apenas parte do que o homem realiza antes de crer é pecado.
De acordo com esse princípio, a experiência de imputação da justiça não ocorre uma única vez, mas ao longo de toda a vida daqueles que creem. Por isso Paulo afirma que Abraão creu inicialmente em Deus e aquilo lhe foi imputado para justiça e também que ele creu em Deus, muito mais tarde, o que também foi declarado como um ato de justiça. Esse parece ser o significado da expressão com que Paulo abre a sua epístola, ao afirmar que a justiça de Deus se revela no evangelho "de fé em fé". De fato, o homem não crê uma só vez, mas muitas para justiça. Por isso ele vive de fé em fé.
O significado implícito e explícito dessa ordem de ideias é que a fé é tudo. É que Deus não deixou uma só parte da experiência de salvação fora da fé, assim como não deixou uma só parte da fé fora de seu amado Filho. Ser salvo é crer, e crer é crer em Jesus Cristo. Nesse sentido, a justiça de Deus se revela no evangelho de fé em fé, cobrindo absolutamente todas as experiências válidas e eficazes de salvação.
A própria fé que o homem possui, antes de ser recriada pela imputação de Deus, é pecado. O homem crê, mas sua fé não tem força salvífica. É até mesmo pecado. Como poderia o pecador acumular insultos a Deus, esmagar o seu próximo, e a fé tudo apagar, sem o favor de Deus? Somos salvos por fé, porque Deus no-la imputa como justiça, não porque ela tenha o poder intrínseco de nos salvar.
O que torna a fé proveitosa não é ela própria, nem algo inerente a ela. É a imputação de Deus. Deus imputa a fé como justiça, o que lhe comunica a eficácia ou poder de produzir a justiça. Assim, concluímos que, antes da justificação, as obras são imputadas ao homem como pecados; quando ele crê em Cristo, sua fé lhe é imputada para justiça. E, depois que o homem crê, como o exemplo de Abraão esclarece, a fé continua a lhe ser imputada para justiça.
Esse renascimento da fé, pela imputação, é uma recriação do ato de crer. É o que se chama o dom da fé. A fé é muitas vezes vista como ato inteiramente humano, mas não o é. Hebreus 12:2 chama Jesus autor da nossa fé. Atribui-lhe com isso o ato de crer. João também afirma: “A obra de Deus é esta: que creiais naquele que me enviou” (Jo 6:29). Mas, se crer é obra de Deus, a fé é uma criação dele. Por isso, o original de Gálatas 2:20 menciona a fé do (não no) Filho de Deus, indicando que Cristo é a sua fonte, não nós.
Nesse sentido, a justificação pela fé é um trato contínuo de Deus com o homem, não uma experiência isolada ou única. Nada temos que não tenhamos recebido, afirma Paulo (1 Co 4:7). Na sua declaração, está implícito: exceto pecados. Não é correto supor que o homem nada tenha absolutamente. Ele tem suas obras. Mas tampouco é correto afirmar que essas obras são qualquer outra coisa, em si mesmas, além de pecados. Do mesmo modo, o livre arbítrio é capaz de muitas coisas. É capaz, inclusive, de querer agradar a Deus. Mas só é capaz de o querer eficazmente por meio da imputação de Deus.
A imputação divina é a doação de significado e eficácia a tudo o que existe. Na esfera moral, nada encontra em si mesmo o seu sentido. Tudo possui o sentido que Deus lhe imputa. É a consequência, no plano moral, de Deus ter criado e conservar todas as coisas por seu imenso poder. A revelação nos ensina que Deus tudo criou para tudo preencher. Por isso, a sua declaração de mais amplo alcance talvez seja que “nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17:28). Por que Deus, que criou e preenche todas as coisas, abandonaria a esfera moral à luta dos opostos? Deus não a pode ter abandonado, se encabeça essa ordem como o seu vértice. Se, pela imputação da justiça, decide os destinos dos espíritos.