segunda-feira, 10 de junho de 2013

A Unidade da Igreja (1)

O texto abaixo foi escrito na mesma época de Um sonho de comunhão (1991), disponível neste blog (novembro/2011). Entreguei uma via manuscrita dele para Djalma Marques e uma via, também manuscrita, de Um sonho para Maria Izabel Birolli. O que se seguiu é do conhecimento de muitas pessoas e dispensa repetições.
Quero lembrar, somente, que a gênese e o conteúdo dos escritos os fazem irmãos gêmeos. Um par de vasos que os Nabucodonosors afoitos levaram para as Babilônias erguidas por suas interpretações, e os Torquemadas queimaram. Por anos considerei A unidade da igreja perdido, até que, outro dia, deparei-o na "pasta errada" do meu arquivo, talvez como Hilquias, de modo mais nobre, é verdade, achou o livro perdido da lei no tempo de Josias (2 Rs 22:8).
Publico-o, agora, com o atraso de 22 anos que as circunstâncias impuseram. Ortega y Gasset bem avisou que o homem não é ele só: é ele e suas circunstâncias.

1. Unidade

Voltemos os olhos à natureza criada por Deus. Nela contemplamos um verdadeiro show de diversidade. Nada no mundo é igual ou repetido; tudo é imbuído do dom da diferença. O sol não é como a lua, o mar não é semelhante à terra, as árvores não são os animais, as aves não são iguais aos peixes, as feras não são como o homem.
Ainda que tomemos os peixes, as aves e cada grande grupo de seres vivos, em si e por si, depararemos diversidade quase infinita. A tilápia é tão diferente do tubarão, o bagre da traíra, as molinésias do peixe-espada, o lebiste do bacalhau. Que multifário espetáculode cores, formas, hábitos, instintos a natureza nos proporciona! Em uma palavra, que espetáculo de graça! A natureza só é tão deslumbrante, por ser tão variada.
Toda essa imensa diversidade, entretanto, subsiste em harmoniosa unidade. As diferenças tão profundas entre os seres só são percebidas numa visão de partes; no todo, reina inconteste a unidade. Quando voltamos o olhar das partes para o todo, temos a impressão fortíssima de um milagre: como pode o que é diverso e contraditório como repertório de partes ser tão uno enquanto todo?
Não devemos desprezar essa profunda lição que nos ministra a natureza, pois é a lição de Deus. Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Os céus proclamam a glória de Deus (Sl 19:2,1). E que glória diversa proclamam!
De fato, no transe que essa visão comunica, na vertigem em que nos envolve, aprendemos uma lição magnífica. Se Deus tudo criou, a ordem da criação revela o conceito divino. Por isso, o Salmo 19 coloca a criação e a lei lado a lado, como testemunhos paralelos e concordes das mesmas verdades eternas.
Tão profunda é a concordância entre a natureza e a Escritura que Paulo chega a misturá-las, a borrar seus limites, ao citar o salmo: “A fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo. Mas pergunto: Porventura não ouviram? Sim, por certo: Por toda a terra se fez ouvir a sua voz, e as suas palavras até aos confins do mundo” (Rm 10:17-18). As duas últimas orações são a continuação de Salmo 19:1-2. Por meio delas, Paulo cola a natureza na Escritura, anexa-as, funde-as, ao perguntar: “Não ouviram [a palavra de Cristo]?” E ao responder com o salmo: “Sim, por certo: Por toda a terra se fez ouvir a sua voz, e as suas palavras até aos confins do mundo”.
Quero, porém, me fixar no que a natureza ministra sobre a unidade. Ela nos mostra o verdadeiro sentido do um. Sentido conferido, ampliado e explicado pelas Escrituras, mas nunca alterado, já que o revelador por trás da natureza e da Bíblia é um. Diz-nos a natureza que a unidade é a harmonia da diversidade. Não por acaso, Universo, em latim, quer dizer unidade do diverso ou da diversidade. Eis o que é o mundo. Eis o que até os pagãos entenderam que ele é, pois o chamaram Universo. Eis o testemunho que temos incessantemente diante dos olhos e que, como todo testemunho, discorre conosco.
Como rejeitar tão eloquente depoimento? Como defender qualquer outra forma de unidade? É conhecida a passagem em que Cripriano explica a unidade da igreja por meio da luz solar: “A unidade da luz não comporta que se separe um raio do centro solar [...] Do mesmo modo a igreja do Senhor, como luz derramada, estende seus raios em todo o mundo, e é uma única luz que se difunde sem perder a própria unidade”. Exemplo maravilhoso: a igreja não é uma catedral escura ou uma instituição secreta; é luz vertida por Deus sobre o mundo!
A luz derrama-se com liberdade, enquanto se reporta ao mesmo centro solar. Essa é a unidade que a criação nos revela. Poderíamos descrevê-la em tantos outros fenômenos, sempre da mesma maneira. Assim é nos peixes, na água, nos animais e sobretudo no exemplo do organismo vivo, qualquer que ele seja. Em todos esses casos, vemos o mesmo padrão invariável de unidade, isto é, a vigorosa harmonia na diversidade imensa. Não há unidade sem harmonia ou sem a mais ampla dose de liberdade e diversidade.
Não pode ser outra a unidade da igreja de Cristo. É apenas mais aperfeiçoada. Se a unidade do cosmo é uma diversidade, a da igreja é a perfeita diversidade. É o que significa dizer que Cristo veio reunir (Jo 11:52), juntar (Mt 23:37), e o faz ao seu modo, não de qualquer modo. Não ao modo do homem, que é sempre o da força, o da indelicadeza. Por isso também, quem com ele não ajunta, espalha (Mt 12:30).
Há muitas maneiras de juntar e diversas formas de unidade. A de Cristo, porém, é uma só. Por isso, não basta juntar: é preciso juntar com ele, juntar como ele junta. Do contrário, ainda que juntemos, espalharemos.
É possível buscar a unidade e estar contra Cristo. Basta, para isso, que se busque outra unidade, além da de Cristo e da Bíblia. Mas como é preciso juntar com ele! O ecumenismo hodierno busca a unidade, mas nem sempre a unidade bíblica, nem sempre a unidade com o espírito correto. O ecumenismo que transige com os pontos básicos de fé, para melhor ajuntar, não ajunta: espalha. Por isso, a sua unidade não é a de Cristo.
No Novo Testamento, há uma igreja em cada cidade, mas não só isso: nele vemos uma igreja que recebe a todos na base impreterível do amor. Essa é a unidade bíblica, uma unidade tão mais irrenunciável quanto percebemos ser impossível manter verdadeira harmonia fora do amor. Deus criou tal unidade como estruturou o Universo. O homem não pode (nem deve tentar) criar outra melhor.
A História não prova, abundantemente, ser isso impossível? O espírito da unidade é o amor fraternal sem barreiras. Não é a unidade com ou entre as denominações, já que o amor fraternal sem barreiras é aí tão difícil. Quem crê na unidade interdenominacional crê com ingenuidade. Não com a ingenuidade do engenho, nem com aquela que exclui a malícia, o que seria antes bom, mas com ingenuidade de entendimento, o que é péssimo (1 Co 14:20).
Um arguto escritor cristão deste século sentenciou sobre as divisões denominacionais: “Essa realidade não pode ser eliminada de um sopro, muito menos com exortações morais ao amor, à tolerância, ao entendimento. Tente alguém alcançar alguma coisa com essa laia, seja em que área for!” (BARTH, Karl. “A igreja e as igrejas”. In Dádiva e louvor – artigos selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 1986. p. 208).
Não é possível unidade aprovada por Deus, a não ser a de Cristo. A obra por excelência de Deus, hoje, é restaurar a unidade da igreja, mas não restaurar qualquer unidade ou restaurar a unidade de qualquer maneira. A obra de Deus é restaurar a unidade bíblica da igreja, a unidade prática da harmonia na mesma cidade, a unidade que é milagre. Que milagre? O do amor com liberdade e diversidade.
Em 1982, li as obras do pastor Juan Carlos Ortiz sobre a necessidade de uma renovação profunda da igreja, inclusive da sua unidade. Elas me impressionaram de um modo que mal posso traduzir. Porém, aquelas propostas se perderam. Deram em nada ou em muito pouco. Em tantos casos, o movimento iniciado por Ortiz terminou pior que o ecumênico de caráter interdenominacional. O impulso original do trabalho dele era, sem dúvida, genuíno, correto. A unidade, porém, que buscava não era a de Cristo. Na melhor das hipóteses, era uma espécie de unidade interdenominacional; na pior, uma unidade totalitária. O próprio Ortiz terminou de batina numa Igreja denominacional.
Deus não permite o sucesso de uma unidade diversa da que ele estabeleceu. Se o amamos e estamos dispostos a obedecer-lhe, devemos fazê-lo primeiramente nisto: na obra da restauração da unidade bíblica da sua igreja. Não me refiro, é claro, à letra da Bíblia. Refiro-me tanto a uma base concreta e prática da unidade quanto ao espírito dela.
Desgraçadamente, essas duas coisas perderam-se na História da Igreja. Bem cedo, setores inteiros da igreja entraram num processo de apostasia das verdades essenciais da fé. Num segundo momento, enquanto a ortodoxia era restaurada, na esteira da Reforma, o inimigo se aproveitou do desleixo para com o corpo, a igreja, a fim de introduzir um mal tão nocivo quanto o anterior: as facções protestantes. Pode-se propor que, durante a primeira crise, a unidade foi ferida pelas más doutrinas e, na segunda, pelas boas. E que, ante esse grave quadro, a obra de Deus só pode consistir em restaurar a unidade danificada por ambos os desvios.

[Segue-se, no texto, uma página cujo conteúdo desejo retratar em parte, pois não mais acredito na condição especial de bênção do movimento das Igrejas Locais, a que pertenci, ou no estado irrecuperável de degradação espiritual das igrejas católica e protestantes. Transcrevo essa página abaixo não para reafirmar o que então escrevi, mas para deixar um registro daquilo em que, na época, acreditava. Cumpre esclarecer, porém, que, embora equivocado nesse particular, o texto foi escrito exatamente para ressaltar a insuficiência da posição peculiar das Igrejas Locais,quando não acompanhada do que ele repetidamente chama o espírito da unidade, isto é, o amor fraternal. Os motivos da presente retratação estão detalhadamente explicados no texto “Reforma e Restauração”, disponível em www.lobaomorais.blogspot.com]

O desejo de Deus é a restauração da unidade bíblica da igreja, não de qualquer unidade. Por isso, a restauração do Senhor, no nosso meio [nas Igrejas Locais], tem tanta confirmação divina. Não estamos na condição histórica do Catolicismo, do Protestantismo estilhaçado em inúmeras Igrejas, do ecumenismo interdenominacional ou de movimentos como o de Ortiz. Deus tem abençoado tão ricamente a restauração, em nosso meio,porque aqui está a genuína e bíblica unidade. Confesso que procurei informar-me muito sobre os vários ramos do cristianismo, porém nunca encontrei prática tão genuína da unidade, após os primeiros séculos, quanto entre aqueles que, com justiça, são denominados a restauração do Senhor.
Achei inclusive alguns grupos que se reúnem como a igreja nas cidades onde estão, mas mantêm laços fortes demais com Igrejas protestantes. Estes últimos grupos não creem, como nós, que a obra principal de Deus, hoje, ocorre radicalmente fora tanto do Catolicismo como do Protestantismo, ambos irrecuperáveis. Paulo disse, mais de uma vez, que um pouco de fermento levada toda a massa (1 Co 5:6;Gl 5:9). Este é um princípio seriíssimo e prático: basta intervir tempo suficiente, sem arrependimento e reforma, para que o fermento torne a massa imprestável. No caso do Catolicismo e do Protestantismo, é evidente que esse tempo já passou. A massa já se tornou imprestável. De modo que implantar a restauração bíblica da igreja em bases interdenominacionais, com o corpo no deserto e o coração no Egito, é no mínimo fiar-nos em duvidosa utopia.
A restauração genuína de Deus é, pois, a da unidade bíblica da igreja radicalmente fora do Catolicismo e do Protestantismo. Só nessa posição, é possível reimplantar em bom solo o princípio da verdadeira unidade.

[Fim do trecho retratado.]

2. O espírito da unidade

Tudo isso é, porém, apenas o princípio correto da unidade. É, por assim dizer, tão-só, a tomada de posição. É autoevidente que a posição deve ser movida pelo coração para ter algum valor. O amor fraternal sem barreiras é, com efeito, o espírito de toda unidade. Se tivermos a posição da unidade, sem o amor, estaremos mortos, pois a unidade destituída de amor é uma carcassa. É letra que mata. Só o espírito vivifica.
A comunhão é o espírito da unidade. Assim como há uma só unidade de Cristo, embora haja muitos tipos de unidade, há também uma só comunhão dos apóstolos, não obstante subsistam tantas comunhões. A prática da comunhão dos apóstolos é o viver sem barreiras, é a comunhão total na luz (1 Jo 1:7).
Enquanto temos barreiras, não temos amor uns pelos outros. Perdemos a comunhão dos apóstolos. Criamos outra comunhão. Por isso, Deus nos concedeu a experiência de andar na luz. Seres humanos sempre têm problemas de relacionamento. Isso é inevitável. É impossível que eles não ergam barreiras. Mas é imperativo que falem abertamente uns com os outros sobre as barreiras que têm no coração, a fim de desintegrá-las. Isso é andar na luz, como Deus está na luz.
Não há substituto para essa comunhão na luz. Só ela é, na prática, a comunhão dos apóstolos. Se deixarmos os problemas entre nós crescerem ou se eles efetivamente já crescem, no nosso meio [notem a desconfiança para com a comunhão existente nas Igrejas Locais], é sinal de que a comunhão está debilitada. O remédio único para isso é tratar todas as diferenças na luz.
Algumas linhas atrás, afirmei que a disseminação do fermento tornou imprestável a massa do Catolicismo e do Protestantismo. Ora, o pão sem fermento de Deus são “os asmos da sinceridade e da verdade” (1 Co 5:8). Que de bom poderemos produzir, se perdermos a sinceridade? A pureza da nossa comunhão reside na sinceridade, na adesão aberta e franca à verdade. Esconder problemas é esconder o fermento. Não é interessante que o Senhor Jesus tenha afirmado, na parábola do fermento, que a mulher não apenas misturou, abertamente, mas “escondeu” o fermento em três medidas de farinha (Mt 13:33; Lc 13:21 – grego)? O inimigo sempre introduz o fermento às ocultas. A comunhão sempre se desenvolve na luz.
O Evangelho nos ensina que o fermento dos fariseus era a hipocrisia (Lc 12:1). Dele os discípulos deviam acautelar-se. A hiprocrisia é o estágio avançado do processo de fermentação; a ocultação de barreiras é o estágio incipiente dele. Alguém não o crê? Então explique por que Paulo faz da sinceridade o não-fermento.
Encobrir problemas pessoais pode, sim, levedar toda a massa, pois danifica a comunhão, que é a própria massa. Quando assumimos essa condição, ainda que mantenhamos a posição correta da unidade, já não temos o seu espírito. A mais verdadeira caracterização da unidade é a comunhão. Que unidade é essa, em que afirmamos que somos um e não suportamos viver juntos? Essa é a falsa unidade, é a unidade que Jesus denominou hipocrisia. É a fermentação da unidade.
As sete igrejas de Apocalipse 2 e 3 possuem significado simbólico, pois podem ser vistas como estados básicos da igreja cristã, ao longo de sua história. Éfeso é a igreja no final da era apostólica. Esmirna, a igreja sob a perseguição romana. Pérgamo, a igreja aliada ao Império, após a conversão de Constantino. Tiatira, a igreja medieval apóstata. Sardes, a igreja parcialmente reformada. Filadélfia a igreja no estado avançado de restauração. Não dizemos que cada uma dessas igrejas possui um estado ou condição distinta?
Porém, se assim é, Filadélfia, a igreja louvada por Deus, é o estado em que prevalece o amor fraternal. Que quer dizer Filadélfia, a não ser philéo adelphói, amor entre irmãos? A igreja no estado avançado de restauração não é a igreja numa cidade. Todas as sete são igrejas em cidades. Mas Filadélfia e só ela é a igreja do amor fraternal, a igreja da comunhão ardente, do afeto sem barreiras, não da mera posição correta.
A comunhão dos apóstolos é mencionada no texto grego de Atos 2:42. A melhor tradução desse verso parece ser: “E perseveravam no ensino e na comunhão dos apóstolos”. Nem Atos 2:42, nem o testemunho que o livro inteiro presta da igreja primitiva têm foco numa comunhão qualquer. Os primeiros cristãos não perseveravam numa comunhão genérica, mas na comunhão específica e ortodoxa dos apóstolos.
Cada grupo religioso, cada sociedade, cada agremiação tem a sua ordem interna, a sua comunhão particular. Ninguém transitará bem na Congregação Cristã no Brasil, com livros diferentes da Bíblia em baixo do braço. A comunhão própria da Congregação não o admite. Numa denominação histórica não se permitem práticas pentecostais. Por isso, alguém que busque os carismas não será bem recebido em seu círculo. A comunhão histórica vive o bastante para não o permitir.
Quem está em condição de negar que, nos vários grupos cristãos, vigoram outras comunhões, além da dos apóstolos? Cada cabeça uma sentença, cada sentença um mestre. Cada denominação tem a sua comunhão; cada comunhão, uma unidade. Não nego que existam unidade e comunhão nas denominações. Nego que prevaleçam nelas a unidade e a comunhão ortodoxas.
Isso deve servir de advertência a todos os que confessam o seu compromisso com a restauração da unidade. Particularmente a nós [nas Igrejas Locais]. Sem o amor que vence barreiras, a unidade está morta. Em Filadélfia, philéo não indica o amor mais elevado, o amor próprio de Deus, que em grego é agápe. Philéo é um amor mais tendente à amizade. Não que o amor sublime, agápe, não se encontre em Filadélfia. Mas agápe é tão elevado que não se manifesta a todo momento. Nenhum amor pode ser verdadeiro sem ser sincero. E nenhum amor humano pode ser sincero, sendo sempre sublime.
Essa é a marca de Filadélfia: o amor-amizade entre irmãos. O amor singelo, que nada esconde, tudo abre, tudo traz para a luz de Deus. Tal amor é também comunhão, é ausência total de condição para a convivência. Nesse amor se sumaria a unidade.