quinta-feira, 30 de maio de 2013

O Primeiro Amor

Há quem queira fazer do primeiro amor, mencionado na carta ao anjo de Éfeso (Ap 2:4), uma experiência coletiva. Porém, é duvidoso que a igreja em Éfeso tenha decaído coletivamente do amor que tinha por Deus. Estamos certos de que os vencedores que ali estavam não haviam experimentado tal decadência. E de que Cristo censurou o abandono do amor como algo intrinsecamente mau. Considerou-o uma queda, pois disse: “Lembra-te de onde caíste” (Ap 2:5). Pode uma coletividade formada por partes heterogêneas ter a mesma experiência, e todas as suas partes adquirirem uma só qualidade intrínseca? A doença que aflige o organismo não se instala em determinado órgão e, só após longo tempo, afeta outros?
Vemos as Escrituras declararem, seguidamente, que Deus fará a cada um segundo as suas obras. Não precisamos ir além das cartas às sete igrejas para encontrar esse princípio reafirmado, já que ao anjo de Tiatira Jesus declarou: “darei a cada um segundo as suas obras” (Ap 2:23). Ora, o fato de o julgamento de Deus ser individualizado implica que coletividades não podem ser avaliadas de uma só maneira. E se não podem, o abandono do primeiro amor não há de ter sido uma experiência da igreja em Éfeso, mas do seu anjo.
Todo peito humano tem muitos amores. Cristo demanda um único e o chama primeiro. Esse amor não é primeiro apenas do ponto de vista cronológico, mas principalmente pela qualidade intrínseca, que se revela nas primeiras obras. Por isso, após dizer “tenho contra ti que abandonaste o teu primeiro amor”, acrescenta “volta à prática das primeiras obras” (Ap 2:5). Porém, as obras são ainda mais heterogêneas do que a condição geral. De sorte que, por ângulo nenhum, é possível considerar que a igreja em Éfeso houvesse decaído do primeiro amor, quando a epístola lhe foi dirigida.
Uma descrição mais adequada desse amor é, sem dúvida, a que o relaciona à fé e à esperança. Paulo afirmou: “Agora, permanecem a fé, a esperança e o amor” (1 Co 13:13). Essas três virtudes são chamadas teologais, por serem expressões privilegiadas da graça e terem função teológica particularmente intensa. Todas excluem o mérito humano: “Pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Ef 2:8).
Mas, se a fé é dom de Deus, a esperança também o é. “Abraão, esperando contra a esperança, creu, para vir a ser pai de muitas nações” (Rm 4:18). Se crer é um dom, o esperar que o antecede e prepara pode ter outra natureza? Pode proceder, simplesmente, do homem? Não é o que a experiência nos mostra. Ao primeiro contato com a palavra de Deus, o homem a caminho da conversão não crê, mas já espera. Espera que a palavra que ouve seja verdadeira. Espera que as promessas contidas nela se cumpram. Isso ocorreu com Abraão. Ocorre também conosco.
Nasci num século em que a ciência e a técnica eram incomparavelmente desenvolvidas. Se Abraão tinha por contexto o que seus olhos podiam alcançar, a ponto de Deus lhe ter dito “Ergue os olhos e olha desde onde estás para o norte, para o sul, para o oriente e para o ocidente” (Gn 13:14), à minha geração a ciência descortinou um cenário radicalmente diverso. Revelou um Universo infinito e os homens pregados, sem o saberem, à face de um planeta perdido na imensidão negra e vazia. Até hoje, não parece fácil ao homem crer em Deus, nesse novo contexto. Porém, desde que me tornei capaz de julgar, pareceu-me extraordinariamente grandioso que Deus houvesse criado e pudesse governar galáxias infinitas e, talvez ainda mais, que a complexidade infinita do cosmo se reduzisse a uma origem divina tão simples.
Cri nisso, de maneira obviamente simplificada, quando tinha 11 ou 12 anos. Contudo, essa fé inicial estava misturada a uma profunda insegurança. Faltava-me a intensidade do abandono nas mãos do Criador e governante dos espaços infindos. Minha fé era ainda mais esperança que fé. Eu esperava, e já o fazia com ardor, que a ideia da criação e do governo do mundo por Deus pudesse ser verdadeira. Talvez o fizesse à semelhança de Abraão que, "esperando contra a esperança, creu [...] segundo lhe fora dito: Assim será a tua descendência” (Rm 4:18), mas não excedia esse ponto.
No versículo acima, “fora dito” está no particípio perfeito, o que significa que a ação ocorreu antes de Abraão esperar e crer. Indica que o patriarca esperou e creu no que Deus lhe falara antes, a saber: na promessa “Assim será a tua descendência” (Gn 15:5). É significativo que a frase central da teologia paulina (“Abraão creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça”) venha imediatamente após tal promessa. E que, em Romanos, Paulo acrescente que a esperança atuou com a fé, que Deus imputou a Abraão para justiça.
Não creio deslizar, ao supor que a passagem da esperança à fé não elimina a primeira. Pelo contrário, a esperança se dilata, amplia-se junto com a fé. Paulo nos diz: “Justificados, pois, mediante a fé [...] gloriemo-nos na esperança da glória de Deus” (Rm 5:1-2). A esperança não é tragada na fé: continua a existir ao lado dela. “E não somente isto”, prossegue Paulo, “mas também nos gloriemos nas próprias tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança” (Rm 5:3-4). Novas esperanças são produzidas após a experiência de crer e ser justificado.
Em Romanos 5:1-5, vemos as virtudes teologais de 1ª aos Coríntios 13:13 operarem na experiência prática: a fé leva à justificação, e a esperança se amplia com a fé. Sobre o amor, Paulo discorre em seguida: “Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado” (Rm 5:5). Se a fé e a esperança são dons, o amor derramado em nós pelo Espírito Santo não é outra coisa. Também ele é dádiva, é experiência privilegiada da graça.
Como Abraão esperou contra a esperança, isto é, contra toda probabilidade, e depois creu na promessa, também nós esperamos,depois cremos em Deus. Esperança e fé são estágios da experiência inicial da palavra de Deus. O amor primeiro nutre-se no ventre dessas experiências e ali se plasma. Mas, a partir de quando a fé entra em cena, a esperança e o amor se avultam. Passamos a experimentá-los ao mesmo tempo, não mais em estágios.
O amor é um atributo divino, que o Espírito nos comunica. Não é algo que Deus tenha, mas que ele é. Deus não tem amor, como nós temos: ele é amor. Por isso, quando ora para que a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com os coríntios (2 Co 13:13), Paulo quer dizer que a graça é o que Cristo é, o amor é o que Deus é, e a comunhão é a comunicação daquilo que o Pai e o Filho são.
O primeiro amor não pode ser entendido ou tomado à parte da fé e da esperança, pois decorre da certeza de que a palavra de Deus governará a nossa existência. Essa certeza é a fé. Semelhantemente, o amor resulta da expectativa de que Deus cumprirá o que prometeu, de um modo que não compreendemos. E isso é esperança.
Tal amor ligado à fé e à esperança pode parecer complicado, mas não o é. Complicados são os outros amores. Esse é tão simples quanto algo pode ser. É o amor que resulta da entrega, do autoabandono, do homem nas mãos de Deus. Assim como, na conversão, a fé se segue à esperança, o primeiro amor segue-se à fé. É impossível amar sem crer, pois o amor emana da fé.
“É necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o buscam” (Hb 11:6). Amar nada mais é do que conhecer, e conhecer é resultado de aproximar-se. Por isso, Hebreus está a indicar que aproximar-se de Deus é amá-lo. Ninguém se aproxima de Deus sem antes crer nele e sem depois o amar. Do mesmo modo, quando Jesus orou “que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17:3), rogou que amássemos o Pai e o Filho. Deus é irresistível. Por isso, conhecê-lo não é outra coisa que amá-lo.
O primeiro amor consiste em conhecer a Deus, no interior da experiência de esperança e de fé. Pressupõe não só esperança, mas a certeza de que, até onde os olhos da nossa inteligência podem alcançar, tudo se sujeita ao governo de Deus, como o Credo nos lembra: “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador dos céus e da Terra”. Se o Criador dos céus e da Terra me é favorável, nenhum mal me pode alcançar sem a sua permissão e mais: sem que ele o converta em bem. E, se ele transforma em bem todo mal que me atinge, devo esperar tudo que decorre desse fato, assim como a ressurreição, a glorificação e a vida eterna. No estado de descanso e abandono, de alegria e confiança irrestritas em que me coloco, ao crer e esperar essas coisas, o primeiro amor é, simplesmente, um passo a mais: é reconhecer que Deus é o único responsável por tudo isso. E ponto final.
A vida do velho homem é o oposto exato da que começa com esse amor. O velho homem nasce do gozo e, enquanto vive, o almeja. Porém, o gozo deve morrer, acabar, extinguir-se, para que o homem possa salvar-se. Por isso, Jesus afirmou que quem quiser ser seu discípulo, deve tomar a sua cruz e segui-lo (Mt 16:24). Fazê-lo não é mais do que consentir, dizer sim a uma força já operante na natureza humana. É abraçar o ser-para-a-morte característico da condição humana autêntica. É negar o prazer como princípio fundamental da existência. Gostemos ou não, essa já é uma tendência da natureza do velho homem. Viver com sabedoria consiste em aderir voluntariamente às restrições que implica.
A vida com Cristo, como é diferente da do velho homem! Consiste em não negar o princípio de que se origina (o primeiro amor) e em retornar a ele continuamente. “Tenho contra ti que abandonaste o teu primeiro amor”. A perfeição está no princípio. É o desenvolvimento desse princípio, sem negações ou contradições, a perfeita atribuição a Deus da esperança e da fé que conduzem à salvação.
Esse amor foi abandonado pelo anjo da igreja em Éfeso. A palavra grega aphékas, utilizada no texto, significa tanto o ato de abandonar como o de repudiar. Era empregada para descrever o divórcio. No contexto de Apocalipse 2, não indica a perda involuntária do amor, mas o repúdio voluntário dele.
Abandono do primeiro amor é o divórcio, a ruptura da relação com Deus. Na Antiguidade, o marido era quem repudiava. Porém, não raro, a mulher repudiava silenciosamente o marido que a maltratava. Decidia não mais o amar, nem lhe dedicar atenção sincera. Apocalipse refere-se a essa reação. De maneira sutil, o anjo mantém a sua perseverança (Ap 2:3), continua a não suportar homens maus (Ap 2:2), odeia as obras dos nicolaítas (Ap 2:6), mas rompe a sua relação com Cristo. Os atos de piedade que ele mantém são meramente exteriores, formais, até mesmo fingidos. São como os da mulher que não ama e não respeita mais o marido, somente o atura.
Algo semelhante ocorrera ao anjo de Laodiceia, porém o desvio estava em estágio mais adiantado. Ao contrário do que se observa em todas as outras cartas, nem uma só palavra positiva é pronunciada do anjo daquela igreja. À expressão “Conheço as tuas obras” segue-se: “que nem és frio nem quente” (Ap 3:15). As obras do anjo são totalmente abrangidas na sua mornidão. Resumem-se a ela. Ele não tinha a perseverança, a resistência a homens maus ou o ódio à heresia nicolaíta que caracterizavam o anjo de Éfeso. Por isso, a figura de linguagem usada para descrever a situação comum em Laodiceia não é a do divórcio interior e silencioso da mulher que permanece fisicamente ao lado do marido, embora o aborreça. É, antes, a do repúdio efetivo do cônjuge pelo outro cônjuge. Muitos, em Laodiceia, tinham expulsado Cristo do seu meio. Tinham-no repudiado interior e exteriormente. Por isso, ele estava à porta e batia suplicantemente. Necessário era que a porta lhe fosse aberta por cada indivíduo: “Se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com ele e ele comigo” (Ap 3:20).
No Novo Testamento, o amor não se separa da fé e da esperança. Se o abandono do primeiro amor é o divórcio para com Cristo, a permanência nele decorre do reconhecimento de que a salvação é obra apenas de Deus. Não podemos amar a Deus, se pensarmos que cremos, esperamos e somos salvos com nossas próprias forças. Que vantagem nos oferece um Deus que não salva? Tem ele virtudes, se olha para o padecimento e não livra? E como é possível amar alguém destituído de toda virtude? Não amamos, sempre e somente, a virtude das pessoas? Desde as virtudes físicas até as morais? Por certo, um Deus sem virtude não é amante, nem é amável.
Indispensável é reconhecer que a salvação pela fé é obra de Deus e somente dele. Só esse reconhecimento faz ver “as virtudes daquele que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1 Pe 2:9). E somente a visão de virtudes tais faz nascer o amor. Nada disso se experimenta coletivamente.
Enganam-se os que fazem do primeiro amor experiência coletiva. O amor verdadeiro é fruto de experiências individuais de fé e esperança. Só o indivíduo crê, espera e ama, de um modo que Deus aprova. Ou alguém acredita que Abraão foi justificado por crer e esperar coletivamente? Não o foi, se não há aprovação ou reprovação coletivas. Se coletividades são heterogêneas. Se, nelas, uns possuem certa qualidade, outros, qualidade diversa, uns são aprovados, outros, reprovados. Enfim, se Deus encerrou a todos e a cada um no pecado, a fim de usar de misericórdia para com todos e cada um (Rm 11:32).