sábado, 6 de julho de 2013

Deus e a Matéria

Escrevi terça-feira que este é um tempo estranho, em que se requer do homem que viva no mundo sem uma visão de mundo. Continuamos, de fato, a ter um mundo para viver e decifrar, e olhem que ele nunca foi tão complexo. Mas, ao contrário de todas as outras épocas, hoje não possuímos visões de mundo que nos ajudem a entender e a viver neste mundo complexo. Visões de conjunto da realidade ou mesmo das realidades parciais tornaram-se tão raras, na ciência e na vida prática, que parecem um luxo, um capricho, quando não são tratadas como coisas inalcançáveis.
Mas, se a impossibilidade de visões de mundo fosse verdadeira, tanto a Filosofia como a Teologia estariam, de chofre, inviabilizadas. Não seriam possíveis, pois nada mais são que instrumentos de construção de visões de conjunto das coisas. Dediquei minha vida a essas duas disciplinas. E dos grandes teólogos e filósofos que pude estudar, dois me atraíram mais a atenção: Santo Agostinho e Karl Marx.
Curioso é que são pensadores em tudo opostos. Agostinho teve uma formação romana clássica. Estudou letras e retórica. Na tenra idade, assimilou o modo grego de pensar mais do que o cristianismo de sua mãe, Mônica, em relação ao qual cultivou admiração e ressalvas. E não o fez sem motivos. As doutrinas de que Agostinho se enamorou, nesse tempo, mostram que ele se inclinou com ímpeto para as visões de mundo materialistas (no caso, o maniqueísmo) e céticas (academicismo) que circulavam no Império. Só a partir de sua conversão, aos 33 anos, Santo Agostinho trocou o materialismo típico da cultura grega pela fé cristã, da qual se tornou o pensador exemplar e o maior referencial doutrinário, por quase toda a Idade Média.
Marx realizou o percurso contrário. Nasceu numa família de rabinos e se criou numa sociedade (a da Prússia) em que a filosofia reinante, promovida pelo próprio Estado, era o idealismo teológico de Hegel. Durante sua vida Marx transitou dessas influências para o materialismo histórico que ele próprio criou, com ajuda de Friedrich Engels. Apesar de todas as dificuldades de interpretação do mundo social em que se envolveu, o materialismo de Marx pode ser considerado o mais bem-sucedido exemplar dessa orientação filosófica em toda a História.
O motivo primeiro de meu igual interesse por pensadores tão opostos foi o propósito de empreender o exame mais honesto possível das filosofias que pudesse percorrer. Nada faculta análise mais escorreita e completa de uma doutrina do que o exame igualmente acurado da doutrina oposta. Como, desde o início de minha trajetória filosófica, eu me inclinara para o pensamento cristão, o aprofundamento na obra de Marx permitiu-me inverter esse pensamento, estudá-lo ao avesso e indagar seriamente se um modo contrário de ver o mundo, porventura, não seria mais fecundo do que o cristão.
Mas há um motivo tão fundamental quanto esse para o meu interesse por Agostinho e Marx. É que, embora as teologias e as filosofias nos facultem construir distintas visões de mundo, a História parece apontar a existência de duas e somente duas metavisões. Refiro-me ao materialismo, que Marx tão bem representa, e à metafísica, da qual Agostinho está entre os mais destacados cultores.
Se a visão de mundo é uma interpretação global da realidade ou de parte significativa dela, a metavisão é mais do que isso. É um agregado de visões distintas, mas convergentes. Pode-se propor que uma metavisão é uma visão de visões do mundo. Talvez, na História do Pensamento, não haja mais do que duas metavisões capazes de agregar todas as concepções filosóficas propostas. São elas o materialismo e a metafísica.
Isso se torna claro, quando lançamos à História do Pensamento um olhar a partir do alto. Ao fazê-lo, divisamos um período inicial de formação em que a Filosofia grega foi, antes de tudo, materialista. Logo em seguida, as obras de Platão e Aristóteles desafiaram e chegaram a abalar os pressupostos dos materialismos pré-socráticos e da cultura grega como um todo. Isso ocorreu desde que Platão ousou propor a existência de um nível da realidade subsistente à parte da matéria: aquele que hoje denominamos espírito e que ele chamou mundo inteligível ou das ideias.
Porém, o condicionamento exercido pelo modo grego de pensar, o peso total da cultura grega, fez com que, após o desaparecimento de Platão e Aristóteles, os filósofos tornassem progressivamente às visões de mundo materialistas. Os seguidores de Platão foram a exceção a esse movimento, pois continuaram a defender concepções metafísicas.
Por terem permanecido praticamente os únicos a defenderem a novidade metafísica, é que os platônicos se tornaram tão importantes na Filosofia Antiga. Por isso também, foram tão associados ao cristianismo. Só ao nos darmos conta da oposição persistente entre materialismo e metafísica, compreendemos por que, desde o século II, o cristianismo juntou suas águas às do platonismo em escala tão magna. Não é exagero afirmar que eles se fundiram quase totalmente, devido às afinidades que os associavam no plano da metavisão. No entanto, a fusão nunca resultou em confusão. Sempre se soube razoavelmente bem o que, no pensamento cristão medieval, era platonismo, e o que era fruto do cristianismo primitivo.
Essa fusão de platonismo e cristianismo foi responsável pelo verdadeiro funeral dos materialismos, ocorrido entre os séculos IV e V. Não se tratou de um enterro individual, mas coletivo, do sepultamento de toda uma civilização, da cultura pagã inteira, que feneceu nesses séculos e arrastou para a cova os materialismos filosóficos penosamente construídos. Até os pressupostos vulgares, entranhados na maneira grecorromana de ver o real como matéria, foram então abandonados. O materialismo exauriu-se até a última gota e desapareceu do mundo cristão.
Os motivos desse espantoso acontecimento constituem um dos mais empolgantes capítulos da História, pois poucos movimentos nos levam mais diretamente ao significado da Idade Média e da Modernidade como antítese dela. A era medieval foi fruto do desmoronamento da cultura pagã, cujas sementes não se perderam, mas cuja forma foi varrida da face da Terra. E, se a Modernidade pode ser definida de várias maneiras, do ponto de vista das visões de mundo, o elemento central dela deve ser identificado como o reaparecimento do materialismo no mundo.
Continuemos, porém, a olhar os acontecimentos a partir do ponto elevado a que me referi. Ao fazê-lo, descobriremos que os materialismos ressurgidos na Idade Moderna destruíram veneráveis sistemas metafísicos apenas para serem, eles próprios, refutados em seguida. De fato, nenhum dos materialismos filosóficos propostos, na Modernidade, manteve-se íntegro. Nem o marxista que, a meu ver, é o melhor. Todos foram reduzidos a pó. Arrastaram também consigo as metafísicas, mas por outro motivo, a saber: porque demonstraram que estas eram irrefutáveis, estavam fora do campo da ciência e, portanto, eram inúteis para fazer avançar o conhecimento.
Não descrevo esse traçado da Filosofia e mais amplamente das Ideias como resposta a questões formuladas na busca do conhecimento, mas como recolocação das próprias questões. O reconhecimento das metavisões materialista e metafísica é um modo de interrogar os fatos da História do Pensamento. É um modo de perguntar aonde esse incrível traçado de reflexões nos conduz.
Nesse ponto, precisamente, a consideração das obras de Santo Agostinho e de Marx se torna fundamental. Se a refutação do materialismo antigo, na época de Agostinho, teve bons fundamentos, e dificilmente se pode duvidar desse fato, a compreensão do estado atual das metavisões passa pela indagação do grau em que a metafísica agostiniana foi abalada pelos materialismos modernos e pelo de Marx, em particular. Verdade é que esses materialismos se preocuparam com as metafísicas clássicas, com Platão e Aristóteles, mais do que com Agostinho e com o próprio Tomás, mas o corpus agostiniano foi o que mais as revitalizou e proveu as condições indispensáveis para a metafísica se perpetuar. Não foi sem motivos que a Alta Idade Média se fez agostiniana e que a Reforma afundou suas raízes no teólogo de Hipona.
Por isso, a pergunta preliminar decisiva para a determinação do estado atual das visões de mundo é a do impacto dos materialismos modernos na metafísica agostiniana. Se Marx tem um papel destacado entre os materialismos, é particularmente útil indagar se os pressupostos da sua doutrina se fundam em razões suficientes para remover aquela metafísica.
Na realidade, como as metafísicas são todas irrefutáveis, é claro que a agostiniana não foi refutada pelos materialismos modernos. A incompatibilidade dos pontos, digamos, corretos da doutrina de Marx com Santo Agostinho não importou a refutação desta, porém o desvelar da irrefutabilidade das metafísicas tornou a visão de Universo de Santo Agostinho tão inaceitável quanto as metafísicas anteriores e mais imperfeitas e os próprios materialismos.
A obra de Marx, em particular, está ancorada no valor da igualdade. Promove-o muito mais do que a liberdade. A agostiniana, ao contrário, é uma doutrina da liberdade de Deus e do homem. Para o Santo de Hipona, Deus é a verdade, e a verdade é libérrima. Por isso o Universo é como é, vale dizer, porque Deus o quis. Por isso também, quando conhecida pelo homem, a verdade rompe todos os seus grilhões. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32). A verdade libérrima promove a libertação do homem. Isso é Santo Agostinho.
O materialismo moderno desenvolveu-se numa direção muito diferente. Michel Foucault foi historiador e filósofo materialista. Para ele, “à diferença do mundo cristão, universalmente tecido pela aranha divina [...] o mundo da história efetiva conhece apenas um único reino, onde não há nem providência, nem causa final, mas somente as mãos de ferro da necessidade que sacode o copo de dados do acaso” (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p. 28).
Mas em Foucault, como em Marx, o que importa não são os pressupostos materialistas. A contribuição por excelência dele consistiu na tradução do pensamento de Marx em linguagem política, na extração de toda uma série de consequências políticas que estavam à sombra do corpus marxista e careciam de elucidação. Foucault mostrou que o poder não se encarna num sujeito particular, por mais privilegiado que seja (por exemplo, o Estado ou uma classe social), mas se difunde no tecido social. Por isso, o poder é impessoal. Sempre que se apresenta personificado ou concentrado, ele não é mais que a miragem de um fato complexo que não foi discernido ou a cristalização provisória de uma potência prestes a se desagregar.
Nada melhor do que recordar as palavras do próprio Foucault sobre o tema: “O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede” (idem. p. 183).
Embora vacile bastante ao descrever natureza do poder, Foucault tende afinal a considerá-lo expressão de uma luta. O contorno dos fatos, do real histórico, “não obedece a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta” (idem. p. 28). Essa concepção é tributária da noção de igualdade de Marx. Ambas afirmam a igualdade em prejuízo da liberdade. Por maior que tenha sido a boa vontade de Foucault, não é possível concluir que a luta constante produza outro resultado. Ela não liberta, mas acorrenta.
Marx falou da revolução permanente. Que é tal revolução, a não ser a luta contínua? Na imensa rede de conflitos que ela envolve, o homem não pode ser livre. Permanece cativo. De quem? De ninguém. Apenas da própria luta. Lutar, lutar e lutar, sem solução e sem fim, torna-se o destino dele.
É essa uma doutrina da liberdade? Não aparenta. Tanto Marx como Foucault criaram doutrinas da igualdade, mas que conduzem à ampliação demasiada e à perpetuação dos conflitos, não à pacificação. A não ser que creiamos que o “acaso da luta” trará paz  à Terra. Por isso, os sistemas que nos legaram não são doutrinas da liberdade.
A partir do século XVIII, em muitas sociedades, a fé em Deus foi parcialmente substituída por utopias políticas como a de Marx. Quase todas as vezes em que isso ocorreu, uma versão de materialismo, teórico ou prático, operou a transição entre as duas. Mas Deus e a política são incomensuráveis. Deus é o transcendente, a política, o imanente. Deus é invisível, a política, visível. Deus é o atemporal; a política, o temporal. Deus, o incompreensível, a política é o que comprendemos sobre a sociedade. Não há elemento comum entre eles. Por isso, não podem ser aproximados e comparados. E, se não o podem, como é possível opô-los ou substituir um pelo outro? Toda e qualquer substituição operada, por esse meio, padecerá de falha lógica, que terá de ser cobrada.
No entanto, que fazem os materialismos modernos quase sem exceção? Comparam Deus e a política. Não contente, Marx ainda compara a libertação promovida por Deus com a igualdade alcançável por meio da política. À primeira chama ópio do povo, por desviar da outra. Como pode chamá-la ópio, a não ser comparando a libertação transcendente com a luta imanente, isto é, comparando o incomparável?
Em todos esses passos e a todo o tempo, o materialismo moderno incorre em inconsistências lógicas. Compara o incomparável.Troca objetos incomensuráveis. Mesmo assim, avançou grandemente no mundo. Por meio do marxismo, imposto à força em tantos lugares, o materialismo chegou a imperar na metade do globo, talvez. Porém, o quanto avançou retrocedeu. Não se pode afirmar que as coisas terminaram bem para ele, na medida em que os fatos o refutaram.
E, se o melhor dos materialismos teve esse fim, que dizer dos demais? E dos piores? Por outro lado, o valor científico nulo das metafísicas ficou ao mesmo tempo demonstrado. Assim se chegou à falência atual do conhecimento, àquela que sentimos e pressentimos na indisponibilidade de visões de mundo que nos ajudem a viver. Resta indagar se a falência permite propor novos tratamentos para a disjunção fundamental entre Deus e a matéria.