Muito se discute em que gênero literário os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, ditos sinóticos, se enquadram. Seriam obras biográficas, teológicas ou uma mescla de história e teologia? Se reconhecermos conteúdo predominantemente teológico aos textos, deveremos considerá-los registros de uma pregação profética semelhante à de Jeremias ou Daniel ou um gênero totalmente novo, que se originou e esgotou com a vinda de Cristo?
Os Evangelhos sinóticos são testemunhos diretos ou reconstituições de testemunhos de certas pessoas, sobre o ensinamento e os atos públicos de Jesus. Como testemunhos, não são biografias ou relatos de uma vida inteira. E, pela mesma razão, pressupõem três apóstolos (testemunhas diretas) dos fatos narrados. Como Papias, Ireneu e Eusébio afirmaram, Mateus deve ter iniciado a transmissão dos discursos de Jesus no Evangelho que tem o seu nome, Marcos contém o testemunho de Pedro sobre os atos de Jesus, e Lucas é o testemunho de Paulo, tanto a respeito dos atos como dos discursos.
Embora não tenha seguido Jesus durante o ministério deste, como judeu, Paulo deve ter comparecido a festas oficiais em que ele também esteve e nas quais ensinou no Templo. Por esse motivo, o conhecimento do apóstolo a respeito dos fatos narrados por Lucas não se limitou às aparições de Jesus a ele, mas incluiu a observação do ocorrido naquelas festas, principalmente na Última Páscoa. É possível que, como fariseu proeminente, Paulo tenha até participado das sessões de julgamento de Jesus pelo Sinédrio narradas por Lucas, embora não como membro daquele tribunal.
Paulo denominou “meu evangelho” o seu testemunho a respeito do ministério de Jesus. Pouco se pode duvidar de que a parte principal desse “evangelho” esteja abrangida em Lucas. Porém, além desse texto, o apóstolo deixou-nos Atos (também escrito por Lucas) e as suas epístolas. O primeiro tem lugar de destaque entre os textos paulinos em sentido amplo, por nos mostrar o evangelho pregado e crido, após a ascensão de Jesus.
Porém, um terceiro escrito deve ser colocado ao lado desses, como fecho da exposição do evangelho por Paulo: a Epístola aos Romanos. Se Lucas é o evangelho narrado, Atos, o evangelho pregado e crido, Romanos é o evangelho interpretado e explicado. Mais do que isso, é a melhor, mais completa, concatenada e longa explicação do evangelho de Jesus Cristo, em toda a Bíblia, ao lado da Epístola aos Hebreus.
Claro que as outras cartas ditas de Paulo e dos demais apóstolos também explicam o evangelho, porém explanações completas só as encontramos em Romanos e Hebreus. A primeira é da autoria de Paulo; a outra provavelmente não, porém foi escrita sob influência ou mesmo a partir de uma mensagem dele.
Quanto ao Evangelho de João, pode-se questionar se deve ser considerado narração ou explicação das boas-novas de Cristo. Para mim, é um misto das duas coisas, com predominância da primeira. Claro que os sinóticos também contêm interpretações, porém não é esse o seu foco. Por exemplo, eles citam como Jesus morreu e apareceu aos discípulos depois de três dias, mas pouco ou nada aduzem sobre os efeitos salvíficos desses acontecimentos. Alias, os sinóticos não interpretam o que narram sequer na medida em que João o faz, por meio dos seus discursos e do célebre prólogo a respeito do Verbo.
O autor do quarto Evangelho enxertou (e talvez expandiu) discursos não incluídos nos três sinóticos numa estrutura narrativa baseada nas festas e, principalmente, nas Páscoas ministeriais, com o duplo objetivo de narrar e interpretar. Porém, ainda assim, seu propósito principal foi narrar. Daí a escolha da forma literária de evangelho. É interessante observar que conquistas recentes, tanto no campo histórico como da análise textual, deram maior suporte ao caráter não ficcional de João. Mas o tratamento desse tema excede os limites destas simples notas a Romanos.
Desse modo, as principais explicações do evangelho, no Novo Testamento e em toda a Bíblia, permanecem Romanos e Hebreus. Isso basta para nos advertir da importância do apóstolo Paulo para a fé cristã. Para se entender o evangelho de Jesus Cristo, do modo como a parábola do semeador recomenda que ele seja entendido e crido, é indispensável voltar a esses livros, isto é, a Paulo.
Verdade é que a forma epistolar e a extensão de Romanos e Hebreus depõem contra a ideia às vezes propalada de que esses textos constituem tratados ou exposições teológicas sistemáticas. Porém, na Antiguidade, as exigências para enquadrar obras literárias na categoria do tratado não eram muito rigorosas. Textos relativamente curtos eram, às vezes, chamados tratados. Antes de Paulo, o filósofo grego Epicuro utilizou a forma epistolar para difundir suas ideias: é provável que algumas de suas epístolas tenham sido denominadas tratados ou, ao menos, assemelhadas a esse tipo literário.
Devemos ter Romanos em idêntica conta. Se não é um tratado, essa epístola de Paulo pertence a um gênero literário semelhante. É, ao lado de Hebreus, a mais raciocinada e abrangente exposição do pensamento de um apóstolo, sobre o pecado e sua condenação por Deus. E, do lado positivo, é a mais completa explicação do evangelho, em toda a Bíblia. O que, por si só, lhe garante lugar único, na coleção sagrada.
Os versículos 15 a 17 do capítulo 1 de Romanos ajudam a entender para que fim o tipo literário do tratado foi utilizado por Paulo: “Quanto está em mim, estou pronto a anunciar o evangelho também a vós outros, em Roma. Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego; visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé”.
O contexto dos versículos citados lembra que Paulo quisera ir a Roma anunciar o evangelho à igreja de lá, mas não pudera colocar em prática seu intento: “Não quero, irmãos, que ignoreis que muitas vezes me propus ir ter convosco, no que tenho sido até agora impedido” (Rm 1:13). Por meio da epístola, ele saldou o débito dessa pregação postergada.
Isso significa que Romanos é uma apresentação completa e,por vezes, até analítica do evangelho de Deus ou, para ser mais exato, dos efeitos da morte e ressurreição de Jesus. A característica estrutural mais importante do texto é o fato de relacionar o evangelho ao pecado. Daí os três primeiros capítulos da epístola, que formam um verdadeiro posfácio ao Antigo Testamento.
E por que o formam? Basicamente, porque a pregação dos profetas produzira, em Israel, um sentimento generalizado de morte e pecado. O autor de Gênesis expressou esse sentimento, ao encerrar sua narrativa com o homem, que Deus criara no capítulo 1, colocado dentro de um caixão, no capítulo 50. Não por acaso, o último versículo desse livro afirma: “Morreu José da idade de cento e dez anos; embalsamaram-no, e o puseram num caixão no Egito” (Gn 50:26). O verso expressa a consciência profunda de seu autor, que por sua vez reflete a de toda uma época.
Essa consciência do pecado foi o que levou Paulo a apresentar o “evangelho de Deus” (Rm 1:17). Romanos estende-a tanto aos judeus (de sangue ou convertidos) como aos gentios. No entanto, o apóstolo afirmou que alguns desses estavam debaixo da lei e outros (os gentios) não: “Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração” (Rm 2:12-14). Isso implica que, embora todos estivessem sob condenação, certas distinções deviam ser feitas entre eles.
Em raros momentos, o apóstolo chegou a referir-se ainda a um quarto grupo de pessoas, além dos judeus de sangue, dos prosélitos e dos gentios de cultura grega, a saber: os bárbaros. Ele o fez, por exemplo, quando se declarou “devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes” (Rm 1:14). Bárbaros e ignorantes eram pessoas que não pertenciam às culturas adiantadas da época.
Não devemos considerar que os bárbaros fossem as pessoas com a norma da lei inscrita no coração, a que o apóstolo se referiu em Romanos 2:12-14, embora essa afirmativa se aplique, em parte, a eles. Na estrutura de Romanos 1 e 2, tais pessoas eram, basicamente, gentios de povos cultos como os de Roma.
O veredito condenatório de Romanos 1:18—3:18 divide-se em duas seções: a do versículo 18 do capítulo 1 ao 16 do capítulo 2 e a do verso 17 do segundo capítulo ao 18 do capítulo 3. A primeira seção aplica-se aos povos gentios cultos, pois deles se diz que se haviam inculcado por sábios (Rm 1:22). Já a segunda seção trata dos judeus. Portanto, os bárbaros parecem excluídos do longo veredito condenatório das duas seções.
Não desejo afirmar que alguém (no caso, os bárbaros) não tenha pecado ou esteja isento da ira de Deus. Nada disso. Mas quero reafirmar que a condenação do pecado por Deus se revela de modos diferentes a grupos também diferentes. Em Romanos 5:13, Paulo afirmou que o pecado não é levado em conta onde não há lei: “Porque até o regime da lei havia pecado no mundo, mas o pecado não é levado em conta quando não há lei”. E em 4:15, ele escreveu: “pois a lei suscita a ira; mas onde não há lei, também não há transgressão”. Se, entre os seres humanos, os bárbaros são os que têm legislação menos desenvolvida e mais afastada do conteúdo da lei de Deus, o princípio de Romanos 4:15 e 5:13 aplica-se a eles.
Enfim, a explicação do evangelho, a partir da condição pecaminosa dos vários grupos humanos, tão bem definida no Antigo Testamento, é a característica estrutural mais importante de Romanos. Essa condição não é, porém, estendida de maneira homogênea a todos os homens. Ao contrário, é descrita como realidade essencialmente heterogênea. Como um gradiente de tons escuros que representam pecados, todos eles condenáveis, porém distintos. E um dos pontos de maior destaque, na epístola, é o fato de o apóstolo nunca ter colocado o conhecimento dessas distinções nas mãos de qualquer ser humano.
Todo tratado envolve pensamento refinado. Não é concebível que Paulo se tenha dado ao trabalho de compor um para afirmar a condenação universal pura e simples. Romanos 1 a 3, de fato, trata de uma condenação universal, mas pressupõe uma gama de diferenciações internas, cuja existência o apóstolo afirmou, ao mesmo tempo em que subtraiu o conhecimento do seu conteúdo do alcance do homem em sua atual condição.
AS COISAS INVISÍVEIS DE DEUS
Em Romanos 1:20, lemos: “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das cousas que foram criadas. Tais homens são por isso indesculpáveis.”
Se Romanos e Hebreus são os únicos tratados da Bíblia, o versículo acima deve pressupor muita coisa. Deve ter entrelinhas bem largas, repletas de um texto invisível que permaneceu na cabeça do apóstolo e jamais foi escrito. Pois é impossível alguém escrever um tratado, iniciá-lo com a condenação do mundo gentio culto e responsabilizar esse mundo, com sua imensa cultura, em apenas três linhas. Isso nos traz a certeza de que o texto de Paulo possui entrelinhas. No entanto, ele fechou o verso citado com a frase implacável: “Tais homens são por isso indesculpáveis”.
Com perdão do neologismo desajeitado, de onde vem a indesculpabilidade dos gregos? Vem de conhecerem os atributos invisíveis de Deus. Somos tentados a dizer: e ponto final. Sim, e ponto final. Mas não nos esqueçamos das entrelinhas do versículo. Poderíamos perguntar: que são esses atributos e como podem ser conhecidos?
Para responder (ou ao menos tentar responder) tais perguntas, precisamos partir do que Paulo afirmou. A começar pelo termo grego aórata, traduzido atributos invisíveis, na Versão Almeida Revista e Atualizada. A tradução é, sem dúvida, muito boa, mas altamente interpretativa. De um ponto de vista mais literal, aórata significa “os invisíveis”. A palavra atributos não consta no original. Por isso, em várias versões, lê-se “coisas invisíveis”.
Boa parte dos primeiros escritores cristãos considerou que, com essa palavra grega, Paulo quis dizer o que, na literatura da época, se denominava, mais propriamente, “coisas inteligíveis”. Talvez por razões de simplicidade, já que o nível de escolaridade na época não era alto, ele tenha preferido dizer invisíveis, em vez de inteligíveis, porém a ideia subjacente deve ser mesmo essa última. Ao menos é o que se conclui do exame da literatura da época, que está repleta de alusões ao invisível ou inteligível em oposição ao visível ou sensível. O primeiro é o que não pode ser visto, tocado ou conhecido por qualquer dos sentidos. O outro é o que o pode ser.
Vejamos alguns exemplos dessas ideias opostas. Orígenes escreveu: “Para quem pode compreender, Paulo apresenta sem rodeios as coisas sensíveis, sob o nome de visíveis e as realidades inteligíveis que só o espírito pode captar, sob o nome de invisíveis. Ele sabe que as coisas sensíveis ou visíveis têm apenas um tempo [e] que as realidades inteligíveis ou invisíveis são eternas” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 471). Sob essa ótica, não é preciso dizer a que Paulo se referiu quando escreveu: “Não atentando nós nas cousas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas” (2 Co 4:18).
A interpretação de Orígenes não reflete apenas o seu modo de ver, a sua preferência pessoal, mas uma vasta literatura composta desde o século V a. C. Porém, vejamos um segundo exemplo, já que por duas testemunhas toda palavra será estabelecida. O filósofo pagão Celso escreveu, no século II: “A essência e a geração constituem [respectivamente] o inteligível e o visível. A verdade acompanha a essência, o erro a geração. À verdade se liga a ciência, ao outro domínio a opinião. O inteligível é questão de intelecção, o visível, de visão. É o intelecto que conhece o inteligível, e o olho o visível” (CELSO. O discurso verdadeiro. In ALEXANDRIA, Orígenes de. Ob. cit. p. 583).
Orígenes discordou em quase tudo de Celso. O debate entre eles foi um dos mais célebres de toda a Antiguidade cristã. Porém, o mestre de Alexandria não fez o mais leve reparo à distinção adotada por Celso entre o sensível e o inteligível. E por que não o fez? Porque as palavras em questão haviam entrado para o léxico e assumido significados inequívocos nos primeiros séculos. Eram utilizadas tanto por quem acreditava num mundo inteligível, além do sensível, quanto por quem só cria na matéria. Nesse contexto, portanto, quando se referiu às coisas invisíveis de Deus, com toda probabilidade, Paulo quis dizer o que é estritamente inteligível.
O mesmo contexto não nos permite dúvidas sobre o significado da palavra inteligível. Por esse termo, designa-se o que pode ser conhecido pela inteligência. Contrapõe-se, de certa maneira, ao místico ou irracional. Quer isso dizer que Deus não é “místico”, mas apenas inteligível? Não. Porém, não há, na Bíblia, uma frase que garanta que o que em Deus há de místico possa ser conhecido pelo homem ou comunicado por um homem a outro. Místico é o não revelado, o incompreensível e incomunicável.
Mas avancemos. A afirmativa seguinte de Paulo, em 1:20, é tão importante quanto a referência às coisas invisíveis de Deus. Ele diz que essas coisas (invisíveis) “claramente se reconhecem (katorátai), desde o princípio do mundo, sendo percebidas por meio das cousas que foram criadas”. Se a opção de Almeida VRA por “atributos invisíveis” é boa, não se pode dizer o mesmo dos verbos reconhecer e perceber, nas frases acima. O original não diz "claramente se reconhecem", mas "claramente se veem".
Quis o apóstolo afirmar que o invisível se vê? Que o inteligível é percebido pelos sentidos? Obviamente não, pois isso contraria não só o modo de pensar de Paulo, mas de quase todos os escritores da época. No original, o verbo katorátai aparece ao lado de outro, nooúmena, que significa entender. Portanto, o ver claramente, a que Paulo se referiu, é um ato transformado por nooúmena. É um ver com os olhos da inteligência, pois Deus e os seus atributos são invisíveis. A tradução mais literal do versículo seria: “as coisas invisíveis de Deus [...] ao serem entendidas, claramente se veem”.
Como o milagre da visão intelectual dos atributos de Deus se realiza? Paulo afirmou que isso se dá, “por meio das coisas criadas”. Calvino referiu-se à revelação geral de Deus, na natureza ou por meio dela, e à revelação especial, nas Escrituras ou mediante elas. O desvelamento dos atributos de Deus, por meio das coisas criadas, inclui-se no primeiro caso.
Que dizer de todas essas declarações de Paulo? Em Romanos 1, vemos a condenação dos gentios. Mas, no versículo 20, é-nos revelado o justo motivo dela. Por que os gentios merecem ser condenados? Porque receberam a palavra de Deus, por meio das coisas criadas, e não o glorificaram (Rm 1:21), antes adoraram e serviram a criatura (Rm 1:25).
O regime idólatra é a rejeição da revelação de Deus na natureza. Paulo fundou a condenação do mundo gentio nessa rejeição. E, ao declará-lo, pressupôs todo o tempo a clareza com que os atributos de Deus se manifestam por meio das coisas criadas. Exatamente por isso, ele escreveu “claramente se veem”, o que se coaduna com a literatura da época. De Platão em diante, o mundo chamado culto passou a aceitar, cada vez mais, que os atributos da divindade, no sentido mais forte desta palavra, se manifestam na natureza. Passou, outrossim, a afirmar a existência de um Deus supremo. Paulo percebeu os dois fatos, mas verificou também a contradição entre eles e a adoração aos ídolos. Os gentios conheciam Deus? A resposta de Paulo é um firme e sonoro sim. Porém, adoravam a Deus? A resposta é um firme e sonoro não.
Só nos resta juntar a pergunta fatal: e as pessoas do nosso próprio tempo? Paulo viu diferentes motivos para firmar a condenação de judeus e gentios e outros ainda mais diferentes para afirmar a dos bárbaros da sua época. Se povos distintos, num mesmo século, mereciam a condenação por motivos históricos bem diferentes, quanto mais os que viveram 20 séculos depois!
A consciência do homem culto de hoje não é como a do cidadão romano do século I. O homem atual não tem a certeza do grego do tempo de Paulo de que os atributos da divindade estão refletidos na natureza. E, se não tem tal certeza, pode a condenação do gentio daquela época ser transportada aos nossos dias?
A DEPRAVAÇÃO SEXUAL DOS GENTIOS
Em Romanos 1, Paulo afirmou três vezes que os gregos rejeitaram o conhecimento de Deus e, também três vezes, que Deus os entregou a pecados. Em duas ocasiões, os pecados mencionados por ele foram sexuais; só na terceira ocasião, foram pecados não sexuais.
No versículo 24, lemos: “Por isso Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seus próprios corações, para desonrarem os seus corpos entre si”. Imundícia e desonra, nesse versículo, são pecados sexuais.
Já os versículos 26 e 27 afirmam: “Por causa disso os entregou Deus a paixões infames: porque até as suas mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas, por outro contrário à natureza; semelhantemente, os homens também, deixando o contato natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo em si mesmos a merecida punição de seus erros”.Também aqui,o pecado citado,o homossexualismo, é de natureza sexual.
Por esses motivos, pode-se afirmar que, em Romanos, a impureza sexual é o pecado primeiro dos gentios. Curioso é que essa conclusão não aparece no restante dos escritos de Paulo. É uma característica peculiar de Romanos. Indispensável é, portanto, encontrarmos uma explicação para ela.
A centralidade dos pecados sexuais e do homossexualismo, em Romanos, parece-me mais histórica do que teológica. Roma não era só o centro do Império, mas também das bacanais, festa que se tornou célebre pela prática das mais grotescas licenciosidades. A princípio, só mulheres participavam das bacanais. Porém, mais tarde, os homens foram admitidos. O historiador Tito Lívio afirmou que, quando isso ocorreu, eles passaram a “se entregar mais entre si do que com mulheres” (Liv. 39, 13,10). Plutarco descreve o comportamento das damas da elite romana em termos ainda mais pungentes: "Essas mulheres são insaciáveis na busca do prazer. Na sua concupiscência, experimentam tudo, desviam-se e exploram, do princípio ao fim, toda a escala da devassidão até resultarem nas mais indizíveis práticas".
Paulo toma essa liderança, essa posição de vanguarda dos romanos nas orgias como um espelho de toda a sua vida. Como se destacavam na celebração dos festins de libertinagem, os romanos praticavam as mesmas impurezas no seu dia a dia, como Plutarco atesta. Não era diferente, pelo contrário era o que ocorria corriqueiramente, também na Corte de César.
Por esse motivo, só ao citar pela terceira vez os pecados a que os gregos foram entregues, Paulo aludiu a transgressões não sexuais. E é digno de nota que, ao fazê-lo, ele mudou totalmente a sua abordagem do elemento comportamental para o motivacional do pecado. Com efeito, ao descrever os pecados sexuais, em 1:24,26-27, Paulo se concentrou na conduta externa, assim como o ato de desonrar o próprio corpo e as relações homossexuais. Porém, ao abordar os pecados não sexuais, nos versículos 29 a 31, ele depositou ênfase na intenção e não na conduta.
Esse corte é assinalado pela “disposição mental reprovável” (1:28) e pelo fato de os gentios estarem “cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade” (1:29). Estar cheio ou possuído de algo não é ainda o praticar, mas tê-lo no coração. Não é diferente com os outros pecados não sexuais mencionados por Paulo. Quase todos eles são internos, assim como o aborrecer-se, a soberba, a presunção, a invenção de males, a insensatez, a perfídia e a falta de afeto ou de misericórdia (1:30-31).
Por que Paulo mudou sua ênfase do aspecto externo para o interno do ato pecaminoso, em Romanos 1? O motivo parece ter sido a dualidade fundamental do pecado. Para Paulo, assim como o homem possuía uma substância física e outra espiritual, havia duas classes distintas de pecado: os que tinham sede no corpo e os que se passavam fora do corpo. Em 1ª aos Coríntios 6:18, ele escreveu: “Fugi da impureza [sexual]! Qualquer outro pecado que uma pessoa cometer, é fora do corpo; mas aquele que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo”. O pecado no corpo é físico; o pecado fora do corpo é psíquico.
Assim como em Coríntios, em Romanos 1, são mencionados pecados físicos (sexuais) e também psíquicos. Os primeiros têm por característica contribuir de modo direto para a morte física do homem. É o que acontece com a prostituição, que é o comércio do próprio corpo e o aniquila, por expô-lo a doenças, quando não a outros males, já que um pecado físico costuma vir associado a outros, assim como a prostituição e os excessos de lascívia à bebedeira.
Mas, se os pecados se dividem em físicos e psíquicos, a embriaguez, a glutonaria, a prostituição e o homossexualismo não diferem tanto em princípio. Paulo não hierarquiza os pecados. Não os dispõe em graus. Limita-se a dividi-los em físicos e psíquicos ou em pecados no corpo e fora do corpo. Essa parece ser a maior distinção que ele traça. Entende cada um desses tipos de pecado como regido por princípios próprios. E que os primeiros revelam o julgamento presente de Deus, ao passo que os outros tornam necessário o vindouro.
Nesse sentido e sob essa luz, Romanos 1:18 afirma que a ira de Deus já se revela do céu. Revela-se onde? Nos pecados físicos. Nesse caso, os pecados não são a causa do julgamento, mas o próprio julgamento divino. Já em 2:1-2,5, é dito que o juízo futuro virá como punição e em consequência dos pecados não sexuais de 1:29-31: “Portanto [isto é, por causa dos pecados não sexuais mencionados antes] és indesculpável, ó homem, quem quer que sejas; porque no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas. Bem sabemos que o juízo [vindouro] de Deus é segundo a verdade, contra os que praticam tais coisas [...] Segundo a tua dureza e coração impenitente acumulas contra ti mesmo ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus”.
Temos aqui dois tipos de pecados: os físicos e os psíquicos. Os primeiros são, eles próprios, juízos divinos, não causas de outros juízos. São o término e não o início de um processo de desvio espiritual. Já os últimos, são causas de julgamentos futuros de Deus. Portanto, são o início de um desvio que terminará com o julgamento vindouro.
Quando lemos Romanos 1:18-32, sentimos que não é possível a alguém traçar condenação mais completa e enfática. No entanto, Paulo não se contentou com afirmação tão cabal da perdição dos gentios. Prova disso é que continuou a desenvolver o tema, em 2:1-16. E por que o fez? Porque Romanos 1:18-32 trata apenas do juízo presente, isto é, dos pecados físicos. Para uma pessoa com visão dualista do pecado, como era o caso de Paulo, era indispensável mencionar também o juízo vindouro, que é consequência dos pecados psíquicos. Isso ele fez em Romanos 2:1-16.
A chave para a compreensão da depravação sexual dos gentios, com toda a imundícia a ela relacionada, em Romanos 1, é a sua natureza de pecado físico. Portanto de juízo, e não de causa do juízo de Deus. Os atos sexuais são mais instintivos e menos voluntários. O que é instintivo produz consequências imediatas, inclusive quando se deprava. É o que Romanos 1 está a nos dizer. O capítulo 2, porém, afirma outra coisa. Afirma que, no terrível juízo vindouro, os homens terão de prestar contas a Deus de toda injustiça, malícia, avareza, maldade, inveja, homicídio, contenda, dolo, malignidade, difamação, calúnia, desagrado de Deus, insolência, soberba, presunção, invenção de males, desobediência aos pais, insensatez, perfídia, falta de afeição e falta de misericórdia. Esses males envolvem a vontade, não impulsos irrefreáveis. Por isso, nenhum deles escapará da avaliação divina. Sobre eles, recairá a sentença de morte de Deus.
QUEM SÃO OS GREGOS?
No capítulo 2, versos 9 e 10, Paulo afirma: “Tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, do judeu primeiro, e também do grego; glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem; ao judeu primeiro, e também ao grego”. A referência a judeus e gregos ecoa os versículos 1:14 e 1:16: “Sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes [...] Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego”.
Uma nota ao pé desses versos, na Bíblia de Jerusalém, expressa não só o entendimento de seus elaboradores como da grande maioria dos comentaristas. Diz ela: “A expressão gregos, contraposta a bárbaros, designa as pessoas cultas, inclusive os romanos (que tinham adotado a cultura grega); contraposta aos judeus, designa os gentios” (Bíblia de Jerusalém, 5ª impressão, São Paulo: Paulus, 2008. p. 1966).
Colossenses 3:11, por sua vez, refere-se a gregos, judeus, circuncisão, incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre. Embora essa enumeração seja mais longa que as de Romanos, notamos de novo que os termos se agrupam de dois em dois. Gregos se opõem a judeus; circuncisão, a incircuncisão; bárbaro, a cita; escravo, a homem livre. Com exceção da terceira, essas oposições são bastante claras. A própria contradição entre bárbaros e citas não é tão evidente quanto as demais, mas se esclarece quando lembramos que bárbaro se referia ao habitante do Império, e cita, ao não habitante.
Essas observações não são importantes apenas do ponto de vista histórico, mas principalmente para compreendermos a mensagem de Romanos. Se retirarmos uma palavra de qualquer dos binômios acima e a utilizarmos de modo livre ou a inserirmos num outro binômio, poderemos incidir em equívocos. Por exemplo, poderemos pensar que os gregos e bárbaros, os sábios e ignorantes de 1:14 são os mesmos dois grupos de pessoas mencionados com palavras diferentes, isto é, que os gregos são os sábios, e os bárbaros, os ignorantes. Mas isso seria tornar gregos sinônimo de sábios, quando a primeira dessas palavras denotava o falante da língua grega, independentemente de quão refinada fosse a sua cultura. No primeiro século, havia gregos analfabetos, assim como bárbaros cultos. Os magos persas e os escribas egípcios eram bárbaros profundamente cultos. Mas não se pode dizer que algum sábio fosse ignorante ou vice-versa. Portanto, os binômios de 1:14 não se equivalem.
Tudo isso nos mostra que um vocabulário amplo e preciso estava à disposição dos escritores, no século I, para designar diferentes povos e grupos humanos. Dificilmente, podendo recorrer a termos tão bem definidos pelos binômios que integravam, Paulo usaria a palavra gregos para indicar ora os gentios em geral, ora os gentios de cultura grega. Penso que, contrapostos aos judeus ou aos bárbaros, gregos são sempre pessoas de fala grega. O próprio Paulo é um exemplo. Ele era grego, embora fosse judeu por religião e de sangue. Portanto, nele, não havia oposição entre o ser-grego e o ser-judeu. E é importante frisar: não só em Paulo, mas num número enorme de pessoas de várias partes do mundo essa situação se realizava.
Já os termos empregados para indicar os gentios de modo geral eram outros. Não incluíam a palavra gregos. Ethne, ora traduzido nações, ora gentios, é um desses termos. Indica a totalidade dos gentios, embora seja, em geral, empregada por Paulo para descrever os que creem, como em 1:5 (“para obediência da fé entre todos os gentios”) e em 2:14 ("Quando, pois, os gentios que não têm lei, procedem por natureza de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos"). Agostinho interpretou os gentios mencionados nesse último verso como os "que cumprem a lei segundo os ditames da consciência e têm a obra da fé escrita no coração", isto é, "aqueles que creem em Cristo" (HIPONA, Agostinho de. O espírito e a letra. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2007, p. 69).
Incircuncisão, por sua vez, é uma variação de gentios e, assim como essa palavra, indica o conjunto de todos os não judeus, mas é geralmente empregada para os gentios que creem: “Se, pois, a incircuncisão observa os preceitos da lei, não será ela, porventura, considerada como circuncisão?”. Efésios 2:11 acrescenta: “Outrora vós, gentios na carne, chamados incircuncisão”.
Tudo isso mostra que a palavra grego não significa o mesmo que gentio ou incircuncisão. Notem que o termo nunca é usado, por Paulo, em oposição a circuncisão. Judeu e grego tampouco são empregados como variante de circuncisão-incircuncisão. Isso porque a oposição entre essas duas últimas palavras tinha por foco a religião, ao passo que a oposição judeu-gentio se dava em função da língua.
Na realidade, grego era o homem que se comunicava em grego ou em latim. Era o indivíduo que usava uma das línguas em que a literatura clássica havia sido vazada. A própria palavra bárbaro tinha o sentido definido em função da fala, como se vê em 1ª aos Coríntios 14:11: “Se eu, pois, ignorar a significação da voz, serei estrangeiro [bárbaros] para aquele que fala; e ele, estrangeiro [bárbaros] para mim”.
Bárbaro não era tanto o membro de uma etnia quanto o falante de línguas que não o grego ou o latim. Como os judeus da Palestina, em geral, não falavam grego, era natural que fossem considerados bárbaros pelos romanos. Vários escritores dos primeiros séculos se referiram ao cristianismo como uma filosofia bárbara, porque judaica. Por isso, quando se declarou devedor a gregos e a bárbaros, Paulo incluiu judeus no último grupo. Não havia qualquer conotação pejorativa em o fazer ou em usar a palavra bárbaro nesse sentido.
Aliás, os bárbaros de quem Paulo se considerava devedor devem ter sido judeus e povos da sua família linguística, já que ele não poderia ser devedor de pessoas com quem não pudesse se comunicar. Não temos notícia do uso de tradutores pelos apóstolos. Portanto, as barreiras de idioma eram mais importantes para definir os limites da atuação deles do que nos acostumamos a pensar. Frise-se que, na única ocasião em que encontrou barbárois, no Livro de Atos (At 28:2,4), não se acrescenta que o apóstolo lhes tenha pregado o evangelho, como era seu costume.
Não insisto nessas diferenciações por diletantismo ou apenas por sua importância histórica. Elas interessam à elucidação do sentido da Carta aos Romanos. E interessam porque a condenação dos versículos 1:18 a 3:20 não parece dirigida aos gentios, de modo geral, mas apenas aos judeus e aos gregos. A própria palavra gentios só aparece duas vezes, em 2:14,24. A primeira é uma referência positiva e não condenatória. A segunda tem sentido neutro. Portanto, também não condenatório. Já incircuncisão aparece em 2:25-29, após a condenação dos judeus, em conexão com a palavra circuncisão. Nesses versos, Paulo mostra que a oposição religiosa dos judeus aos gentios é impotente para salvá-los. Portanto, ele condena os judeus e não os gentios.
Que devemos extrair desse uso de termos? Uma conclusão importante é que todas as palavras de sentido condenatório de Paulo, em Romanos 1 a 3, são dirigidas aos judeus e aos gregos, não aos gentios de modo geral. Por exemplo, quando diz que o evangelho é o poder de Deus para salvação do judeu e também do grego, as pessoas indicadas por essa última palavra são as de língua grega ou latina, não todos os gentios do mundo. Claro que toda salvação pressupõe condenação ou perdição. Portanto, nesse versículo, a condenação afirmada é a dos judeus e dos gregos.
O mesmo se dá na afirmação de que “tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, do judeu primeiro, e também do grego; glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem; ao judeu primeiro, e também ao grego” (Rm 2:9-10). Também aí, a condenação incide sobre judeus e gregos.
Esse uso de palavras é extremamente consistente. E extremamente revelador, pois significa que o apóstolo não estendeu a condenação de Romanos 1 a 3 aos bárbaros. Isso esvazia, em alguma medida, a doutrina da condenação universal baseada nesses capítulos. Romanos 1 e 2 não têm em vista o mundo todo, mas os gentios de língua grega ou latina e também os judeus.
Estou a propor que os bárbaros não são condenáveis? De maneira nenhuma. Na passagem a respeito de Adão (capítulo 5), Paulo afirmou que todos os descendentes dele pecaram, inclusive os bárbaros. E se eles estão incluídos no pecado, não podem estar isentos da condenação. Só enfatizo que Paulo não definiu a sua culpabilidade, da mesma forma que fez com a dos judeus e dos gregos.
Faço notar esse silêncio. A doutrina da condenação universal forjada com base em Romanos tem esse tanto de pressa, de azáfama. Tem esse tanto de má formação. As impressionantes assertivas dos capítulos 1 a 3 não foram restritas aos judeus e aos gregos por acaso ou de modo não intencional. Pelo contrário, expressam o cuidado especial de Paulo com a linguagem de sua carta, que foi elaborada para expor a salvação de Cristo de maneira precisa e completa. Ante esses fatos, só nos resta pesar o sentido dos termos grego e gentio com tanto cuidado quanto teve Paulo ao usá-los e ao escrever o seu texto perene.
FÉ HIPÓCRITA
Paulo não adotou uma perspectiva única ao escrever Romanos. Ele não se colocou o tempo todo na posição do judeu, do gentio culto ou do grego piedoso, que frequentava as sinagogas e as igrejas cristãs, ao redor do mundo. Pelo contrário, em cada trecho da epístola, ele adotou uma perspectiva diferente.
No início do capítulo 1, ao dirigir-se aos cristãos de Roma, Paulo usou um vocabulário e se referiu a valores compreensíveis para eles. A partir do versículo 18, ele começou a descrever os gentios de cultura grega. Mencionou-lhes a situação espiritual, à luz do que denominou “a verdade de Deus”. E, no início do capítulo 2, passou a tratar dos gentios piedosos.
Essa segunda mudança se torna evidente, quando consideramos que o gentio do capítulo 2 não é como o do primeiro capítulo, que substituiu a verdade de Deus pela injustiça, adora ídolos e não apenas pratica o mal como o aprova (Rm 1:32). Pelo contrário, a figura que surge repentinamente em 2:1 condena os que praticam os males mencionados no primeiro capítulo (Rm 2:3). Trata-se, pois, de um gentio piedoso, que crê nas Escrituras, adora somente a Deus e censura os que vivem em pecado.
Paulo chama atenção desses gentios para a hipocrisia implícita em condenarem exatamente o que praticam. Tal atitude estava impregnada nos ambientes judaicos e cristãos do primeiro século. Mas o apóstolo deixa claro que, sob o evangelho, não há lugar para ela. Não importa se a pessoa adora a Deus ou aos ídolos. Hipocrisia é hipocrisia, seja no adorador de Deus, seja no idólatra. Ela será julgada por Deus: “Tu que condenas os que praticam tais cousas e fazes as mesmas, pensas que te livrarás do juízo de Deus?” (Rm 2:3).
Que julgamento é esse a que Paulo se refere? Não é o juízo final, pois ele o faz incidir sobre pessoas tementes a Deus, sobre cristãos da igreja em Roma. “Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (Jo 5:24). O novo nascimento não se dá em vão. Ele muda a condição da pessoa que o experimenta e a livra do juízo final. Mas, se os que creem em Cristo não sofrerão o juízo final, Romanos nos mostra que serão julgados, num outro momento.
Esse julgamento futuro é o que Paulo menciona em 2:1-16. Ele é chamado o dia da ira (Rm 2:5), quando uns receberão tribulação e angústia (Rm 2:9), e outros, a vida eterna (Rm 2:7). Não se trata, pois, do juízo presente, que se revela do céu sobre os idólatras (Rm 1:18), mas do tribunal de Cristo, mencionado em 2ª aos Coríntios 5:10: “Importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo”.
Não é improvável que esse julgamento ocorra durante o estado intermediário, entre a morte e a ressurreição. Talvez por isso, Paulo tenha afirmado que “tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal” (Rm 2:9). Se pretendesse indicar um julgamento após a ressurreição, o apóstolo teria afirmado que a alma e o corpo serão atingidos por ele, como em Mateus 10:28 (“Temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo”). Mas ele não o afirmou, antes disse que o juízo em questão virá sobre a alma. Talvez se trate, portanto, de um juízo anterior à ressurreição.
Vários autores do Antigo Testamento perceberam que o ímpio, não raro, prospera na presente vida. O salmista escreveu: “Não te irrites por causa do homem que prospera em seu caminho, por causa do que leva a cabo os seus maus desígnios” (Sl 37:7). Esse homem tem maus desígnios e os consegue realizar. Por vezes, chega a oprimir o justo: “Trama o ímpio contra o justo, e contra ele ringe os dentes [...] Os ímpios arrancam da espada e distendem o arco para abater o pobre e necessitado, para matar os que trilham o reto caminho” (Sl 37:12,14).
A inversão da justiça, que presenciamos no mundo, deu ocasião ao aparecimento da doutrina do julgamento de Deus. “Os malfeitores serão exterminados, e os que esperam no Senhor possuirão a terra” (Sl 37:9). Os malfeitores a que o salmista se referiu criam em Deus, pois eram judeus, mas praticavam o mal. Nisso, não eram diferentes dos gentios de Romanos 2:1-16.
Porém, ao escrever sua epístola, Paulo retirou as máscaras tanto dos religiosos gentios como dos judeus. Mostrou que máscaras são inúteis diante de Deus. É como se dissesse: você é isso ou aquilo? Pertence a esse ou àquele grupo religioso? Como outras pessoas do seu grupo, você condena rigidamente o pecado? Saiba que nada disso lhe aproveita. Com a sua piedade ou sem ela, você é tão bom quanto o idólatra.
É comum os cristãos localizarem a iniquidade no mundo, e a santidade, na igreja. Paulo faz algo distinto. Tranca os que creem e os que não creem, no cárcere da iniquidade. Não poupa sequer os apóstolos como ele próprio, já que declara: “Não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço” (Rm 7:19).
Estamos diante da mais devastadora crítica da religião que se pode conceber. Uma crítica tão mais ácida quanto mais os pagãos são isentos dela. Os incrédulos são artífices das ações pecaminosas de 1:29-31. Mas não são hipócritas, pois falam o mesmo que fazem. Praticam aquelas ações e as chamam seu bem. Como diz Paulo, “não somente as fazem, mas também aprovam” (Rm 1:31).
Já os adeptos da religião mais pura, os adoradores do único Deus, são hipócritas. Paulo quer dizer todos os adoradores, sem dúvida e sem exceção. Estende, portanto, os ais que Jesus dirigiu aos escribas e fariseus, hipócritas, a todos os adeptos do judaísmo e da fé cristã. Mas cria, ao mesmo tempo, uma discriminação entre aqueles que reconhecem esse pecado e aqueles que permanecem nas profundezas da hipocrisia religiosa.
Ao criar tal discriminação, o apóstolo mostra que a confissão da hipocrisia é a água purificadora. A água que faz do fariseu um publicano. Quando João Batista afundou Israel no Jordão, ele o batizou nessa água. Dirigiu ainda um convite à raça de víboras para que o deixasse no fundo do Jordão. E assim como João sepultou o judaísmo, Paulo fez o mesmo com o cristianismo hipócrita.
A ira que o pecador de Romanos 2 acumula para o dia do juízo é a revolta de Deus contra essa hipocrisia. É a ira justificada de quem tem tolerado o hábito judeu e cristão de dizer uma coisa e fazer o contrário, até o dia em que o fogo brando em que é preparada fará a indignação explodir. É, enfim, a ira contra o que Paulo denominou dureza e coração impenitente (Rm 2:5).
Pouco importa o brilho peculiar da doutrina que a hipocrisia religiosa anuncia. Em momento nenhum, Paulo disse que aquele brilho justifica o execrável hábito de praticar o que a consciência reprova. Assim, ele estabeleceu o primado da prática sobre a doutrina. Se uma pessoa crê na mais sublime de todas as doutrinas, se cruza até mesmo os mares para pregá-la, mas prega que não se deve ofender uma pessoa e ofende mil, sua fé sublime é hipócrita.
Quanta exaltação desse tipo de fé hipócrita há no mundo! Quantos creem que podem dizer os maiores disparates e serão louvados, que podem proibir o mal a uma pessoa e praticá-lo a uma multidão! Tais são os mártires das legiões de desavisados de um triste tempo. E continuarão a ser enquanto a exortação soar: “Continue, pois, o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo; o justo continue na prática da justiça, e o santo continue a santificar-se” (Ap 22:11).
O verbo continuar, empregado tantas vezes, indica a diferença entre um juízo presente como o dos idólatras e outro futuro, mas que virá tão certamente quanto a aurora de amanhã.
A CONSCIÊNCIA DO JUDEU
Após ter estabelecido a culpabilidade tanto dos gregos que adoravam ídolos como dos que cultuavam Deus, Paulo passou a tratar dos judeus e, mais especificamente, da consciência que tinham de si, nos versículos 17 a 20 do capítulo 2: “Tu que tens por sobrenome judeu, repousas na lei e te glorias em Deus; que conheces a sua vontade, e aprovas as cousas excelentes, sendo instruído na lei; que estás persuadido de que és guia dos cegos, luz dos que se encontram em trevas, instrutor de ignorantes, mestre de crianças, tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade”.
Paulo emprega os verbos aprender e ensinar no particípio, que é o tempo que mais enfatiza o caráter consumado da ação e seus efeitos. No versículo 18, “ser instruído na lei” está nesse tempo verbal, o que indica uma instrução consumada, um aprender completo. “Ser guia de cegos”, luz nas trevas, instrutor de ignorantes, mestre de crianças também é uma ação no particípio. Indica, portanto, não só que o judeu tinha consciência de haver conquistado um conhecimento completo, mas de ensiná-lo perfeitamente aos cegos, aos ignorantes e às crianças.
Essa consciência não era típica apenas de um fariseu como Paulo, mas também dos saduceus e dos integrantes das outras correntes do judaísmo. Sinal claro disso é o fato de o texto mencionar a lei (“tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade”) e vários mandamentos específicos. Sabemos que os fariseu criam na Lei e nos Profetas, enquanto os saduceus só aceitavam a primeira. Por isso, ao se deter na lei, Paulo focou o que era comum a todo judeu, até mesmo a essência do homem judeu.
A noção de que a lei do Antigo Testamento, a Torá, consistia em mandamentos está entranhada em nós. Paulo, porém, afirma que ela consiste no conhecimento e na verdade (Rm 2:20). Afirma, até mesmo, que a lei tem a forma dessas duas coisas. A palavra forma (mórphos) tinha denso significado filosófico, que passou para a língua do Novo Testamento. Independentemente de possuir maior ou menor intimidade com a Filosofia, ao usar essa palavra, era impossível a um judeu de língua grega, como Paulo, deixar de transmitir o significado filosófico de que ela estava impregnada, que era o de um pensamento puro e destituído de toda matéria.
Por isso, no verso 2:20, a “forma da sabedoria [conhecimento, no original] e da verdade” indica um pensamento destituído de conteúdo material, uma ideia abstrata, sobre o conhecimento e a verdade. A lei era exatamente isso para o judeu. E o judeu era, para si, o possuidor perfeito dessa lei.
Isso implica que a Torá não contém mandamentos concretos, que regem efetivamente a vida. Para encontrar mandamentos assim, é preciso recorrer ao que Paulo denominou “coisas excelentes” (Rm 2:18). No original, essa expressão é ainda outro particípio, que pode ser traduzido “coisas que excedem”. Ela indica “as sombras mais delicadas da vida moral, aludindo à casuística na qual as escolas judaicas eram excelentes” (RIENECKER, Fritz e ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 259). Trata-se de regras e estatutos que iam além da Torá, estabelecendo o que efetivamente se podia e não se podia realizar na vida cotidiana.
A mente judaica estava impregnada dessas duas coisas: da lei e das “coisas que excedem”.Mas Paulo não reconhece nisso qualquer vantagem. Para ele, o que importa não é ter a forma do conhecimento e da verdade, mas a viver. Não é preencher essa forma abstrata com coisas excelentes, mas a colocar em prática e em movimento na vida. “Tu, pois, que ensinas a outrem, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Dizes que não se deve cometer adultério, e o cometes? Abominas os ídolos, e lhes roubas os templos? Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei?” (Rm 2:21-23).
Os versos 17 a 20 apresentam o judeu como pensa que é; os de 21 a 23 apresentam-no como é.Para Paulo,a consciência do judeu era alienada, pois não correspondia ao seu ser real. Não que os princípios em que ela se baseava estivessem errados. A lei tem de fato a forma do conhecimento e da verdade. E realmente é preciso exceder essa forma, para buscar o conteúdo que ela deve revestir. Mas os judeus iam longe demais nessa direção, perdendo-se tanto da lei como de si mesmos.
Assim, embora denuncie o extravio interior dos seus concidadãos, Paulo vai em busca do que denomina vantagem do judeu. “Qual é, pois, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão? Muita, sob todos os aspectos. Principalmente porque aos judeus foram confiados os oráculos de Deus” (Rm 3:1-2). Se os princípios da consciência judia são corretos, sua vantagem é inegável. A suma dessa vantagem, o ponto em que ela mais se condensa e se deixa perceber, são as Sagradas Escrituras. Por isso, depois de reconhecer que os judeus têm “muita vantagem, sob todos os aspectos”, o apóstolo acrescenta “principalmente porque lhes foram confiados os oráculos de Deus”.
Paulo pensa como judeu. Muda algumas coisas na consciência israelita, mas não lhe altera a essência. Sem entendermos isso, não temos como ascender à compreensão de Romanos 2 e 3. Do modo como os judeus tomavam a lei como conhecimento e verdade, Paulo considerava os oráculos de Deus (a Lei e os Profetas) expressão acabada desse conhecimento e dessa verdade. E assim como os seus compatriotas, ele os tomava como forma cujo conteúdo devia ser preenchido mediante uma busca espiritual.
Por isso também, brada: “A incredulidade deles virá desfazer a fidelidade de Deus? De maneira nenhuma! Seja Deus verdadeiro e mentiroso todo homem” (Rm 3:3-4). Que é a fidelidade de Deus para Paulo? É a própria verdade divina, pois ele diz: “Virá desfazer a fidelidade de Deus?” E responde: “De maneira nenhuma! Seja Deus verdadeiro”. Pergunta sobre a fidelidade e responde sobre a verdade, porque, para o judeu e para Paulo, em particular, o foco da relação de Deus com Israel é essa verdade-fidelidade.
Só no interior de uma consciência assim, de uma consciência profundamente judaica, faz sentido perguntar: “Se por causa da minha mentira fica em relevo a verdade de Deus para a sua glória, por que sou eu ainda condenado como pecador?” (Rm 3:7). O Ocidente está impregnado de ceticismo. Mal crê numa verdade última. Mas crê com inabalável firmeza que uma mentira não pode ter sentido derradeiro. Por isso, para o homem ocidental, a pergunta sobre o sentido último da mentira não tem significado. É inteiramente absurda. Já para o judeu essencial, para o judeu do tempo de Paulo, que cria na verdade absoluta, embora não a compreendesse, a pergunta sobre o significado último da mentira podia fazer sentido, se ressaltasse a verdade de Deus.
Ao descrever a consciência do judeu, Paulo não se exclui dela. Adota-a intensamente. Pensa, crê e escreve como judeu, pois se curva ao Deus que é verdade, no sentido mais forte do termo. Porém, ele se aparta da alienação em que a consciência de seus compatriotas incorre ao perder-se. Aparta-se da falsa consciência que leva o judeu a buscar o conteúdo da verdade de Deus em minuciosos comportamentos formais. Descobre que esse conteúdo deve ser o ditado direto do Espírito Santo ao coração humano. E que esse ditado só se torna acessível, quando o homem crê na verdade definitiva, na verdade apostólica, na verdade da redenção de Cristo.
A CULPA DOS JUDEUS
Com os versículos 3:9-20, Paulo conclui seu esboço da condição de quatro tipos humanos: os gregos idólatras, os devotos frequentadores das sinagogas, os judeus pecaminosos e os piedosos. Vale a pena recordarmos as características centrais de cada um desses tipos. Do lado positivo, os gentios e os judeus piedosos têm em comum a posse de coisas divinas, como as Sagradas Escrituras e outros bens do culto judeu.
Porém, do lado negativo, esses tipos têm em comum o divórcio entre o dizer e o fazer. Condenam certas condutas e as praticam: “Tu, ó homem [gentio], que condenas aos que praticam tais coisas e fazes as mesmas, pensas que te livrarás do juízo de Deus?” (2:3). E “tu que tens por sobrenome judeu [...] pregas que não se deve furtar e furtas? Dizes que não se deve cometer adultério e o cometes?” (2:21-22). Assim se descreve a condição do homem religioso, gentio e judeu.
Por sua vez, a condição dos gentios ímpios consiste na idolatria e nos 21 pecados que decorrem dela, encontrados em 1:29-31. Por fim, a dos judeus ímpios é descrita por citações do Antigo Testamento, em 3:10-18. Essas citações são o equivalente judeu da lista de pecados dos gentios no final do capítulo 1.
Paulo nada suaviza, ao tratar de seus concidadãos. Pronuncia sobre eles juízo tão grave quanto o que faz desabar sobre o mundo idólatra. É como um profeta, que profere oráculos que ninguém quer ouvir. Parece-se com Jeremias, que arranca ao rei de Israel a exclamação: “Por que profetizas tu que o Senhor disse que entregaria esta cidade na mão do rei de Babilônia, e ele a tomaria; que Zedequias, rei de Judá, não se livraria das mãos dos caldeus, mas infalivelmente seria entregue nas mãos do rei de Babilônia? [...] e que levaria Zedequias para Babilônia?” (Jr 32:3-4). O rei mandou prender Jeremias por causa dessa pregação.
A palavra profética tem por característica seu nenhum compromisso com o gostar ou o não gostar dos ouvintes. Paulo retoma essa tradição, ao escrever Romanos 1 a 3. Mas, ao tratar de seus compatriotas (assim como dos gregos devotos), omite a idolatria. Ela não é um problema central do judeu, piedoso ou não. Não é um traço que componha a sua condição, como Paulo a descreve. Os judeus têm dois problemas principais: a violência e a morte. Paulo cita cruamente os Salmos, ao descrevê-los:
“Não há justo, nem sequer um, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Sl 14:1-3; 53:1-3). “A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua urdem engano, veneno de víbora está nos seus lábios, a boca eles a têm cheia de maldição e de amargura” (Sl 5:9; 140:3; 10:7). “São os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos há destruição e miséria; desconhecem o caminho da paz” (Is 59:7-8). “Não há temor de Deus diante de seus olhos” (Sl 36:1). E, para que ninguém tivesse dúvida de que essas citações se referiam aos judeus, o apóstolo acrescentou: "Ora, sabemos que tudo o que a lei diz aos que vivem na lei o diz" (3:19). Equivale a dizer: tudo o que os versículos acima cravam é para os judeus e somente para eles.
Dos 21 pecados dos gentios, em 1:29-31, somente o homicídio coincide com a violência atribuída aos judeus nos versos acima. Mesmo assim, não é idêntico a ela. É até muito diferente, pois é um pecado interior. Dos gentios Paulo afirma estarem “cheios de todo [...] homicídio”. Mas, em 3:15-17, a violência mencionada é interior e também exterior. É uma violência mais consumada que a dos gentios.
Por que essa violência explícita é típica dos judeus? Paulo não via, nos romanos, um hábito tão arraigado de se exasperar sem motivo e de passar da exasperação ao homicídio quanto observava nos seus irmãos judeus. Os romanos tinham-se dado leis que lhes permitiam derramar sangue apenas por crimes políticos. Os judeus matavam por motivos religiosos bem mais comezinhos.
Não muito depois de Romanos ter sido escrita, a descrição de Paulo se cumpriu de maneira plena, quando os judeus rebelaram-se contra os romanos, trancaram-se em Jerusalém, mataram-se uns aos outros e até comeram cadáveres de conhecidos e familiares. Ter-se-iam mutilado e aniquilado até o último homem, não fosse os romanos terem completado o trabalho, com o objetivo principal de freá-los. Tudo isso ocorreu no cerco de Jerusalém pelos romanos, descrito em detalhes por Flávio Josefo. É um exemplo inequívoco da violência hedionda que segue Israel como a coluna de fogo e a nuvem o acompanharam no deserto.
Infelizmente, essa violência não é só judaica. É monoteísta. No hipódromo de Constantinopla, o Imperador cristão Justiniano matou 30 mil pessoas. O mesmo Justiniano dizimou 100 mil samaritanos. Na Primeira Cruzada, um milhão de pessoas foram mortas. Outro milhão foi sacrificado na Cruzada Albigense. Sem mencionar os milhões de índios e negros mortos ou escravizados pelos cristãos na América. Será preciso multiplicar ainda mais os exemplos para tornar claro que a violência é intrínseca a um tipo de monoteísmo ímpio e diabólico? Será preciso acrescentar as atrocidades dos muçulmanos? Sua presença no noticiário do dia não me dispensa de narrá-las?
A outra característica da condição do judeu ímpio, como Paulo a descreve, é a morte espiritual. Assim como a violência, essa característica recai somente no tipo judeu. “A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua urdem engano, veneno de víbora está nos seus lábios, a boca eles a têm cheia de maldição e de amargura”. Quatro órgãos usados para falar são mencionados: a garganta, a língua, os lábios e a boca. Sua relação com a morte espiritual indica que esta se comunica pelas palavras.
Que morte é essa? Não pode ser outra que a de Adão. Paulo liga tanto os judeus como os gentios a Abraão, no capítulo 4. No 5, conecta-os a Adão. Porém, em ambos os casos, a relação do patriarca com os judeus é mais forte do que com os gentios. Estes se ligam a eles, por meio dos judeus, que se conectam diretamente a Adão e a Abraão.
A relação especial dos judeus com Abraão parece óbvia, mas não a de Adão, pois Paulo nos diz que todos (judeus e gentios) morreram, em consequência do pecado de Adão. Mas, se olharmos mais atentamente, veremos que ele traça certas distinções. Diz que “até o regime da lei havia pecado no mundo, mas o pecado não é levado em conta quando não há lei” (5:13). E acrescenta que, dentre os que pecaram, só alguns o fizeram “à semelhança da transgressão de Adão” (5:14). Quem recebeu a lei? Não foi Israel? E, na linguagem do apóstolo, essa lei não fez com que o pecado judeu fosse “levado em conta”? Não foi essa uma peculiaridade do povo judeu? E quem pecou semelhantemente a Adão? Não foram, de novo, os judeus, que receberam a lei e a transgrediram, como Adão transgrediu o mandamento que Deus lhe entregou? Os gentios nunca tiveram uma lei divina. De sorte que a morte espiritual, sobrevinda por Adão ter comido da árvore proibida (Gn 2:17), desenvolveu-se de modo particular em Israel.
Paulo apresenta os judeus como campeões da morte espiritual, vinda por meio de Adão. A pecaminosidade gentílica é eminentemente diversificada. Abre-se na multidão de pecados diferentes que Paulo lhes atribui em 1:29-31. Faz lembrar a constatação de Feuerbach de que a consciência pagã é aberta, dispersa, ao passo que a do judeu reúne tudo numa coisa só: em Deus. Assim são também, gentio e judeu, no pecado: o pecado pagão é múltiplo; o judeu se concentra em duas condutas típicas: o derramamento de sangue e a morte espiritual que decorre da desobediência.
Essa apresentação das condições dos quatro tipos de homens, em Romanos 1 a 3, inspira-nos a pergunta: e a condição do cristão? Paulo a descreve? Sim, ele o faz, em todas as suas epístolas. Porém, a descrição que oferece deles é totalmente distinta da que comunica dos judeus e gentios sem Cristo. Tão longe vai Paulo, no seu nutrido otimismo com a nação cristã, que só no caso do homem incestuoso de Corinto pronuncia uma condenação. Entrega-o, como sabemos, “a Satanás”. Mesmo assim, ele o faz com a ressalva de que o espírito do pecador haveria de ser salvo, no dia do Senhor (1 Co 5:5). Precisamos da Epístola aos Hebreus, cuja autoria é desconhecida, para entender que o crente pode perder-se, de alguma maneira e por algum tempo. Enquanto permanecemos apenas com Paulo, isto é, com as epístolas que ele assina, não somos capazes de concluir isso.
Porém, Hebreus se concentra no destino escatológico do cristão decaído. Multiplica figuras de linguagem para descrevê-lo. E jamais menciona de modo claro as razões das ameaças escatológicas que desenvolve. Limita-se a citar genericamente a que pecados corresponderão tais juízos. Nas epístolas que assina, Paulo é muito mais explícito. O crente de Corinto praticara incesto. Fora por isso “entregue a Satanás”. Em Gálatas, ele acrescenta: “De Cristo vos desligastes vós que procurais justificar-vos na lei, da graça decaístes” (Gl 5:4).
Vemos que, em Paulo, o que leva à decadência da graça, ao desligamento de Cristo e à entrega a Satanás é a transmutação da perseverança, a mudança do objeto dela, de Cristo para um pecado ou uma falsa doutrina. Quando a constância deixa de ser em Cristo para se dar no pecado, a condição cristã passa da bênção à reprovação.
Esse é o outro lado da condição cristã, como o Novo Testamento a descreve. Hebreus parece ter sido escrita para corrigir a impressão enganosa de que os cristãos estão imersos numa condição apenas dourada. No entanto, somente quando chegamos a Apocalipse 2 e 3, o lado negro da condição cristã emerge de maneira total.
Nesses capítulos, Jesus dirige-se pessoalmente aos líderes de sete igrejas da Ásia. Usa a palavra anjos para descrevê-los. Em grego, ággelos (anjo) significa emissário. No contexto de Apocalipse, o termo não se refere a seres celestes, mas a homens que levam as cartas às sete igrejas, a verdadeiros líderes cristãos.
Essa interpretação é fortemente fundamentada na visão do capítulo 1 de Apocalipse, em que Cristo caminha no meio dos candeeiros ataviado como Sumo-Sacerdote. Ele próprio afirma que os candeeiros representam as sete igrejas e que as estrelas que leva na mão são os anjos das igrejas (Ap 1:20). Portanto, os anjos são a interpretação de um símbolo (as estrelas). E, como em toda interpretação, a coisa significada pelo símbolo é literal. No caso, é um emissário real, um homem.
Ao final de cada carta de Apocalipse, afirma-se que o Espírito diz aquela palavra “às igrejas”, no plural. Devemos extrair disso que, assim como o Filho faz o que o Pai também faz, o Espírito realiza o que o Filho realiza. Se o Espírito fala às igrejas, o Filho faz exatamente o mesmo. Mas isso cria um contraste com o tratamento na segunda pessoa do singular, que predomina nas sete cartas. Esse tratamento indica que as proposições das cartas não são dirigidas às igrejas, mas a um indivíduo, no caso ao anjo de uma delas.
Em suma, o anjo leva a carta à igreja, mas a carta é sobre ele e sobre a igreja. A situação de cada igreja é sempre descrita, em relação ao seu anjo, assim como a situação de Israel e Judá é descrita em relação aos seus reis, nos livros históricos do Antigo Testamento. Cada carta é um duplo relato, sobre a igreja e seu líder. Necessário nos é discernir o que se refere a um e a outro.
Ao anjo da igreja em Éfeso, Jesus afirmou: “Conheço as tuas obras”. E acrescentou: “Tenho, porém, contra ti que abandonaste o teu primeiro amor. Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te, e volta à prática das primeiras obras; e se não, venho a ti e moverei do seu lugar o teu candeeiro, caso não te arrependas” (Ap 2:4-5).
Essa palavra não é dita, primariamente, a respeito da igreja, mas de seu anjo. Seria estranho se tivesse sido dita da igreja, pois implicaria um estado espiritual coletivo. Não há tal coisa na Bíblia. Estados espirituais variam de pessoa para pessoa. Não há estados únicos de entidades coletivas. A igreja em Éfeso não perdera o primeiro amor. Seu anjo é que o abandonara.
Diz-se com certa frequência que o anjo ou a igreja cai por "perder" o primeiro amor. Mas ele não perde o primeiro amor: abandona-o. Perder indica algo involuntário. Perdemos um amor, por vermos ou ouvirmos coisas indignas da pessoa amada. Isso é próprio do amor humano. Ele se perde. Porém, nem o amor humano é digno de ser abandonado. Para dizê-lo com as palavras do poeta, ele pode durar um enquanto, por se perder, mas nasceu para ser eterno. Não deve ser abandonado. Abandonar voluntariamente o amor é grave, entre seres humanos, gravíssimo em relação a Deus.
Esse é um exemplo de queda no Novo Testamento. Em muitos aspectos, ele se assemelha à queda espiritual do rei, no Antigo Testamento. A diferença principal é que o rei cai na idolatria; o líder cristão, em outras coisas. Mas cai de toda forma. Sua condição não é intangível, perfeita para sempre. A de ninguém o é.
Os anjos de Éfeso, Pérgamo, Tiatira, Sardes e Laodiceia estavam em estados reprováveis. Não se pode afirmar o mesmo do de Esmirna. E o estado do anjo de Filadélfia era muito positivo. Também desse ponto de vista, não há muita diferença entre os líderes das igrejas e os reis Israel. Há entre eles pessoas aprovadas e reprovadas. Ninguém é aprovado só por ser anjo ou por ser rei.
Cinco de sete líderes de igrejas haviam decaído ou estavam prestes a decair, no primeiro século. Ainda assim, Cristo os tinha seguros na sua mão, como o Sumo-Sacerdote segurava as estrelas no capítulo 1. Essas verdades são contraditórias. Por um lado, Cristo segura os anjos na sua mão. Por outro, eles estão numa condição decaída. O guardar de Cristo é garantia do triunfo final desses líderes. Não é garantia do resultado intermediário favorável. Não garante a incolumidade deles, se fizerem o mal, como as sete epístolas claramente elucidam.
Embora a condição cristã se afaste tanto da dos gentios e dos judeus mergulhados em pecado, há motivos para o cristão temer tanto o castigo de Deus quanto para o gentio e o judeu o fazerem. Temor é uma palavra presente, da primeira à última página das Escrituras. Não há culto a Deus, fora do temor. Todo culto é de homens, e homens temem. Caem, quando deixam de temer. Por isso, cada palavra de Cristo aos anjos aprovados infunde-lhes coragem, mas cada palavra aos decaídos infunde temor.