Com os versículos 3:9-20, Paulo conclui seu esboço da condição de quatro tipos humanos: os gregos idólatras, os devotos frequentadores das sinagogas, os judeus pecaminosos e os piedosos. Vale a pena recordarmos as características centrais de cada um desses tipos. Do lado positivo, os gentios e os judeus piedosos têm em comum a posse de coisas divinas, como as Sagradas Escrituras e outros bens do culto judeu.
Porém, do lado negativo, esses tipos têm em comum o divórcio entre o dizer e o fazer. Condenam certas condutas e as praticam: “Tu, ó homem [gentio], que condenas aos que praticam tais coisas e fazes as mesmas, pensas que te livrarás do juízo de Deus?” (2:3). E “tu que tens por sobrenome judeu [...] pregas que não se deve furtar e furtas? Dizes que não se deve cometer adultério e o cometes?” (2:21-22). Assim se descreve a condição do homem religioso, gentio e judeu.
Por sua vez, a condição dos gentios ímpios consiste na idolatria e nos 21 pecados que decorrem dela, encontrados em 1:29-31. Por fim, a dos judeus ímpios é descrita por citações do Antigo Testamento, em 3:10-18. Essas citações são o equivalente judeu da lista de pecados dos gentios no final do capítulo 1.
Paulo nada suaviza, ao tratar de seus concidadãos. Pronuncia sobre eles juízo tão grave quanto o que faz desabar sobre o mundo idólatra. É como um profeta, que profere oráculos que ninguém quer ouvir. Parece-se com Jeremias, que arranca ao rei de Israel a exclamação: “Por que profetizas tu que o Senhor disse que entregaria esta cidade na mão do rei de Babilônia, e ele a tomaria; que Zedequias, rei de Judá, não se livraria das mãos dos caldeus, mas infalivelmente seria entregue nas mãos do rei de Babilônia? [...] e que levaria Zedequias para Babilônia?” (Jr 32:3-4). O rei mandou prender Jeremias por causa dessa pregação.
A palavra profética tem por característica seu nenhum compromisso com o gostar ou o não gostar dos ouvintes. Paulo retoma essa tradição, ao escrever Romanos 1 a 3. Mas, ao tratar de seus compatriotas (assim como dos gregos devotos), omite a idolatria. Ela não é um problema central do judeu, piedoso ou não. Não é um traço que componha a sua condição, como Paulo a descreve. Os judeus têm dois problemas principais: a violência e a morte. Paulo cita cruamente os Salmos, ao descrevê-los:
“Não há justo, nem sequer um, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Sl 14:1-3; 53:1-3). “A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua urdem engano, veneno de víbora está nos seus lábios, a boca eles a têm cheia de maldição e de amargura” (Sl 5:9; 140:3; 10:7). “São os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos há destruição e miséria; desconhecem o caminho da paz” (Is 59:7-8). “Não há temor de Deus diante de seus olhos” (Sl 36:1). E, para que ninguém tivesse dúvida de que essas citações se referiam aos judeus, o apóstolo acrescentou: "Ora, sabemos que tudo o que a lei diz aos que vivem na lei o diz" (3:19). Equivale a dizer: tudo o que os versículos acima cravam é para os judeus e somente para eles.
Dos 21 pecados dos gentios, em 1:29-31, somente o homicídio coincide com a violência atribuída aos judeus nos versos acima. Mesmo assim, não é idêntico a ela. É até muito diferente, pois é um pecado interior. Dos gentios Paulo afirma estarem “cheios de todo [...] homicídio”. Mas, em 3:15-17, a violência mencionada é interior e também exterior. É uma violência mais consumada que a dos gentios.
Por que essa violência explícita é típica dos judeus? Paulo não via, nos romanos, um hábito tão arraigado de se exasperar sem motivo e de passar da exasperação ao homicídio quanto observava nos seus irmãos judeus. Os romanos tinham-se dado leis que lhes permitiam derramar sangue apenas por crimes políticos. Os judeus matavam por motivos religiosos bem mais comezinhos.
Não muito depois de Romanos ter sido escrita, a descrição de Paulo se cumpriu de maneira plena, quando os judeus rebelaram-se contra os romanos, trancaram-se em Jerusalém, mataram-se uns aos outros e até comeram cadáveres de conhecidos e familiares. Ter-se-iam mutilado e aniquilado até o último homem, não fosse os romanos terem completado o trabalho, com o objetivo principal de freá-los. Tudo isso ocorreu no cerco de Jerusalém pelos romanos, descrito em detalhes por Flávio Josefo. É um exemplo inequívoco da violência hedionda que segue Israel como a coluna de fogo e a nuvem o acompanharam no deserto.
Infelizmente, essa violência não é só judaica. É monoteísta. No hipódromo de Constantinopla, o Imperador cristão Justiniano matou 30 mil pessoas. O mesmo Justiniano dizimou 100 mil samaritanos. Na Primeira Cruzada, um milhão de pessoas foram mortas. Outro milhão foi sacrificado na Cruzada Albigense. Sem mencionar os milhões de índios e negros mortos ou escravizados pelos cristãos na América. Será preciso multiplicar ainda mais os exemplos para tornar claro que a violência é intrínseca a um tipo de monoteísmo ímpio e diabólico? Será preciso acrescentar as atrocidades dos muçulmanos? Sua presença no noticiário do dia não me dispensa de narrá-las?
A outra característica da condição do judeu ímpio, como Paulo a descreve, é a morte espiritual. Assim como a violência, essa característica recai somente no tipo judeu. “A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua urdem engano, veneno de víbora está nos seus lábios, a boca eles a têm cheia de maldição e de amargura”. Quatro órgãos usados para falar são mencionados: a garganta, a língua, os lábios e a boca. Sua relação com a morte espiritual indica que esta se comunica pelas palavras.
Que morte é essa? Não pode ser outra que a de Adão. Paulo liga tanto os judeus como os gentios a Abraão, no capítulo 4. No 5, conecta-os a Adão. Porém, em ambos os casos, a relação do patriarca com os judeus é mais forte do que com os gentios. Estes se ligam a eles, por meio dos judeus, que se conectam diretamente a Adão e a Abraão.
A relação especial dos judeus com Abraão parece óbvia, mas não a de Adão, pois Paulo nos diz que todos (judeus e gentios) morreram, em consequência do pecado de Adão. Mas, se olharmos mais atentamente, veremos que ele traça certas distinções. Diz que “até o regime da lei havia pecado no mundo, mas o pecado não é levado em conta quando não há lei” (5:13). E acrescenta que, dentre os que pecaram, só alguns o fizeram “à semelhança da transgressão de Adão” (5:14). Quem recebeu a lei? Não foi Israel? E, na linguagem do apóstolo, essa lei não fez com que o pecado judeu fosse “levado em conta”? Não foi essa uma peculiaridade do povo judeu? E quem pecou semelhantemente a Adão? Não foram, de novo, os judeus, que receberam a lei e a transgrediram, como Adão transgrediu o mandamento que Deus lhe entregou? Os gentios nunca tiveram uma lei divina. De sorte que a morte espiritual, sobrevinda por Adão ter comido da árvore proibida (Gn 2:17), desenvolveu-se de modo particular em Israel.
Paulo apresenta os judeus como campeões da morte espiritual, vinda por meio de Adão. A pecaminosidade gentílica é eminentemente diversificada. Abre-se na multidão de pecados diferentes que Paulo lhes atribui em 1:29-31. Faz lembrar a constatação de Feuerbach de que a consciência pagã é aberta, dispersa, ao passo que a do judeu reúne tudo numa coisa só: em Deus. Assim são também, gentio e judeu, no pecado: o pecado pagão é múltiplo; o judeu se concentra em duas condutas típicas: o derramamento de sangue e a morte espiritual que decorre da desobediência.
Essa apresentação das condições dos quatro tipos de homens, em Romanos 1 a 3, inspira-nos a pergunta: e a condição do cristão? Paulo a descreve? Sim, ele o faz, em todas as suas epístolas. Porém, a descrição que oferece deles é totalmente distinta da que comunica dos judeus e gentios sem Cristo. Tão longe vai Paulo, no seu nutrido otimismo com a nação cristã, que só no caso do homem incestuoso de Corinto pronuncia uma condenação. Entrega-o, como sabemos, “a Satanás”. Mesmo assim, ele o faz com a ressalva de que o espírito do pecador haveria de ser salvo, no dia do Senhor (1 Co 5:5). Precisamos da Epístola aos Hebreus, cuja autoria é desconhecida, para entender que o crente pode perder-se, de alguma maneira e por algum tempo. Enquanto permanecemos apenas com Paulo, isto é, com as epístolas que ele assina, não somos capazes de concluir isso.
Porém, Hebreus se concentra no destino escatológico do cristão decaído. Multiplica figuras de linguagem para descrevê-lo. E jamais menciona de modo claro as razões das ameaças escatológicas que desenvolve. Limita-se a citar genericamente a que pecados corresponderão tais juízos. Nas epístolas que assina, Paulo é muito mais explícito. O crente de Corinto praticara incesto. Fora por isso “entregue a Satanás”. Em Gálatas, ele acrescenta: “De Cristo vos desligastes vós que procurais justificar-vos na lei, da graça decaístes” (Gl 5:4).
Vemos que, em Paulo, o que leva à decadência da graça, ao desligamento de Cristo e à entrega a Satanás é a transmutação da perseverança, a mudança do objeto dela, de Cristo para um pecado ou uma falsa doutrina. Quando a constância deixa de ser em Cristo para se dar no pecado, a condição cristã passa da bênção à reprovação.
Esse é o outro lado da condição cristã, como o Novo Testamento a descreve. Hebreus parece ter sido escrita para corrigir a impressão enganosa de que os cristãos estão imersos numa condição apenas dourada. No entanto, somente quando chegamos a Apocalipse 2 e 3, o lado negro da condição cristã emerge de maneira total.
Nesses capítulos, Jesus dirige-se pessoalmente aos líderes de sete igrejas da Ásia. Usa a palavra anjos para descrevê-los. Em grego, ággelos (anjo) significa emissário. No contexto de Apocalipse, o termo não se refere a seres celestes, mas a homens que levam as cartas às sete igrejas, a verdadeiros líderes cristãos.
Essa interpretação é fortemente fundamentada na visão do capítulo 1 de Apocalipse, em que Cristo caminha no meio dos candeeiros ataviado como Sumo-Sacerdote. Ele próprio afirma que os candeeiros representam as sete igrejas e que as estrelas que leva na mão são os anjos das igrejas (Ap 1:20). Portanto, os anjos são a interpretação de um símbolo (as estrelas). E, como em toda interpretação, a coisa significada pelo símbolo é literal. No caso, é um emissário real, um homem.
Ao final de cada carta de Apocalipse, afirma-se que o Espírito diz aquela palavra “às igrejas”, no plural. Devemos extrair disso que, assim como o Filho faz o que o Pai também faz, o Espírito realiza o que o Filho realiza. Se o Espírito fala às igrejas, o Filho faz exatamente o mesmo. Mas isso cria um contraste com o tratamento na segunda pessoa do singular, que predomina nas sete cartas. Esse tratamento indica que as proposições das cartas não são dirigidas às igrejas, mas a um indivíduo, no caso ao anjo de uma delas.
Em suma, o anjo leva a carta à igreja, mas a carta é sobre ele e sobre a igreja. A situação de cada igreja é sempre descrita, em relação ao seu anjo, assim como a situação de Israel e Judá é descrita em relação aos seus reis, nos livros históricos do Antigo Testamento. Cada carta é um duplo relato, sobre a igreja e seu líder. Necessário nos é discernir o que se refere a um e a outro.
Ao anjo da igreja em Éfeso, Jesus afirmou: “Conheço as tuas obras”. E acrescentou: “Tenho, porém, contra ti que abandonaste o teu primeiro amor. Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te, e volta à prática das primeiras obras; e se não, venho a ti e moverei do seu lugar o teu candeeiro, caso não te arrependas” (Ap 2:4-5).
Essa palavra não é dita, primariamente, a respeito da igreja, mas de seu anjo. Seria estranho se tivesse sido dita da igreja, pois implicaria um estado espiritual coletivo. Não há tal coisa na Bíblia. Estados espirituais variam de pessoa para pessoa. Não há estados únicos de entidades coletivas. A igreja em Éfeso não perdera o primeiro amor. Seu anjo é que o abandonara.
Diz-se com certa frequência que o anjo ou a igreja cai por "perder" o primeiro amor. Mas ele não perde o primeiro amor: abandona-o. Perder indica algo involuntário. Perdemos um amor, por vermos ou ouvirmos coisas indignas da pessoa amada. Isso é próprio do amor humano. Ele se perde. Porém, nem o amor humano é digno de ser abandonado. Para dizê-lo com as palavras do poeta, ele pode durar um enquanto, por se perder, mas nasceu para ser eterno. Não deve ser abandonado. Abandonar voluntariamente o amor é grave, entre seres humanos, gravíssimo em relação a Deus.
Esse é um exemplo de queda no Novo Testamento. Em muitos aspectos, ele se assemelha à queda espiritual do rei, no Antigo Testamento. A diferença principal é que o rei cai na idolatria; o líder cristão, em outras coisas. Mas cai de toda forma. Sua condição não é intangível, perfeita para sempre. A de ninguém o é.
Os anjos de Éfeso, Pérgamo, Tiatira, Sardes e Laodiceia estavam em estados reprováveis. Não se pode afirmar o mesmo do de Esmirna. E o estado do anjo de Filadélfia era muito positivo. Também desse ponto de vista, não há muita diferença entre os líderes das igrejas e os reis Israel. Há entre eles pessoas aprovadas e reprovadas. Ninguém é aprovado só por ser anjo ou por ser rei.
Cinco de sete líderes de igrejas haviam decaído ou estavam prestes a decair, no primeiro século. Ainda assim, Cristo os tinha seguros na sua mão, como o Sumo-Sacerdote segurava as estrelas no capítulo 1. Essas verdades são contraditórias. Por um lado, Cristo segura os anjos na sua mão. Por outro, eles estão numa condição decaída. O guardar de Cristo é garantia do triunfo final desses líderes. Não é garantia do resultado intermediário favorável. Não garante a incolumidade deles, se fizerem o mal, como as sete epístolas claramente elucidam.
Embora a condição cristã se afaste tanto da dos gentios e dos judeus mergulhados em pecado, há motivos para o cristão temer tanto o castigo de Deus quanto para o gentio e o judeu o fazerem. Temor é uma palavra presente, da primeira à última página das Escrituras. Não há culto a Deus, fora do temor. Todo culto é de homens, e homens temem. Caem, quando deixam de temer. Por isso, cada palavra de Cristo aos anjos aprovados infunde-lhes coragem, mas cada palavra aos decaídos infunde temor.