quarta-feira, 1 de maio de 2013

Manifesto Sobre Fé e Ciência

A CIÊNCIA PROVOU: OS CÉTICOS SÃO MAIS INTELIGENTES (E OS CRENTES, MAIS FELIZES)
    
  Entre os filhos dum século maldito
  Tomei também lugar na ímpia mesa 
  Onde, sob o folgar, geme a tristeza
  Duma ânsia impotente de infinito
  Como os outros, cuspi no altar avito
  Um rir feito de fel e infinito...
  (Antero de Quental)

Vou confessar um crime: creio firmemente em Deus.
Trata-se de um crime continuado, de um crime que tenho praticado, sem contrição ou atenuação, desde que nasci e, muito mais intensamente, nos últimos 30 anos. Infelizmente e para minha profunda tristeza, a ciência descobriu (creiam-me) que os céticos são mais inteligentes. Portanto, que os crentes são mais obtusos de mente. Pelo menos é isso que um certo e novo ateísmo tem propagandeado, em alto e bom som, na Europa e nos Estados Unidos. É também o que o nosso potencial de importadores furiosos de ideias nos tem feito absorver, no Brasil, sem saber bem o que traficamos.
Refiro-me às concepções e modismos de autores como o inglês Richard Dawkins (Deus, um delírio), os norte-americanos Sam Harris (The end of faith), Daniel Dennett (Breaking the spell) e Christopher Hitchens (Deus não é grande) e os franceses André Comte-Sponville (O espírito do ateísmo), e Michel Onfray (Tratado de ateologia). Entre muitas outras ideias, a maioria desses intelectuais evidencia boa dose de confiança em que os céticos são mais inteligentes do que os crentes.
Apesar de discordar de quase todas as suas teses centrais, concedo inteira razão a Dawkins, Harris e demais grandes sábios nesse ponto. Só tenho de completar que a questão sobre a inteligência de descrer é muito mais complexa do que eles costumam mostrar. A começar pelo fato de que a convicção, com que aqueles autores a proclamam, é fé e não descrença. Portanto, se têm razão, eles estão errados, pois são movidos pelo que chamam erro.
Tenho de completar, outrossim, que a fé dos crentes (a que, na minha funda ignorância, faço questão de regar e afofar, todos os dias) é, ao mesmo tempo, formada por tanta descrença! Creio em Deus, é verdade. Cometi e cometo esse crime todos os dias. Confesso-o, mas não contrito. E para tudo agravar, admito que li interminavelmente (como pude!), e ainda leio, as obras de dezenas de cientistas e filósofos céticos sobre a origem do Universo, da vida e das espécies. Com base nessas leituras, cometi a loucura de publicar minhas conclusões sobre a questão de Deus no livro A hipótese de Darwin – a compatibilidade entre Deus e a evolução.
Mas não creio somente em Deus: creio também que o Jesus dos Evangelhos é uma pessoa divina. Mais uma vez, essa crença absurda e atrasada (hoje está claro) levou-me ao cúmulo da pequenez de estudar, com máxima atenção, a discussão dos últimos 200 anos sobre o Jesus histórico e a escrever as minhas ideias sobre esse problema em O Mestre de Nazaré.
Tanto ao estudar a questão de Deus como ao deter-me sobre o Jesus histórico, do fundo da minha pequenez individual e do meu nada intelectual, minha fé foi tão fortemente confirmada que me tornei o exemplo perfeito do que a nova ciência denomina o controle da fé sobre a consciência (inclusive a razão). Parti da fé e tive minha fé confirmada: eis o iter criminis todo. Cheguei aonde estava quando parti: pode haver maior prova do meu equívoco?
Para ilustrar o que digo com um exemplo, no livro The believing brain (Holt, 2011), Michael Shermer demonstra como a fé torna a mente humana perdidamente tendenciosa (é o meu caso). Não há como discutir aqui as ideias de Shermer, que são tão próximas das dos autores citados antes (alguns dos quais se denominam brights, brilhantes). Limitar-me-ei a informar que ele se refere a quatro tendências desviantes da razão, que denomina anchoring bias (tendência à ancoragem), authority bias (tendência à aceitação da autoridade), belief bias (tendência a valorizar o pensamento baseado em crenças) e confirmation bias (tendência a buscar evidências que confirmem a crença, em vez de refutá-la). A mente humana é profundamente desviada da verdade por essas quatro tendências, que se nutrem da fé. Claro, é o caso de perguntarmos: e as tendências da mente cética? E o senso de realidade peculiar dela, não tem lá suas tendências desviantes?
Sobre a tese de Shermer, só tenho a declarar que está corretíssima, mas como tudo o que vem do ateísmo atual ela pede algum complemento. No caso, o complemento de que o autêntico crente é um descrente contumaz. Sabe tão bem que crê e o quanto crê que desconfia mortalmente da sua fé. Claro que, sob esse ponto de vista, o crente perfeito é um perfeito Tomé. A tese de Shermer pede ainda outro esclarecimento, que até certo ponto ele próprio fornece: o que a ciência tem demonstrado não é que apenas a fé religiosa, mas que toda fé pode governar a consciência além do que é devido. Isso se aplica também (e como!) à fé científica dos novos ateus.
Juro, porém, que a experiência pessoal de fé religiosa pode gerar exatamente o contrário do que Shermer denomina belief-dependent realism (senso de realidade dependente da fé - e o que depende da descrença?). Foi minha fé mineira, minha fé nutrida em entranhada desconfiança, que me levou a estudar os temas de Deus e de Jesus. Minha fé fez-me cético radical. Bem cedo, disse comigo mesmo: não caio nessa. Vou estudar, ponto a ponto, as questões de Deus e de Jesus. Enfrentarei toda e a melhor literatura que puder encontrar, sobre esses temas, para não me entregar à sedução de uma fé cega. Farei isso, esteja onde estiver, ocorra o que ocorrer.
É que as pessoas crentes, mas racionais e ajuizadas, sabem que a fé pode cegar. Então desconfiam profundamente dela. Algumas chegam a se resolver a tirar a prova. Foi o meu caso. Fazer questão de tirar a prova é um traço constitutivo da minha personalidade. Sempre cri, nunca acreditei. Nunca parei de pensar e de pensar criticamente. Tenho de dizer envergonhado: nem por um único dia. Muito longe disso.
Pensar criticamente, para mim e creio que para todos os meus irmãos humanos, é também descrer, desconfiar, duvidar, questionar, dizer “não: é impossível”.
Quando fiz isso (seria melhor dizer que o senti), pela primeira vez, tinha apenas 18 anos. Lembro-me vivamente daqueles dias: de como entrei em transe. Desabei das nuvens do dogmatismo ao chão da dúvida. Essa experiência foi, certamente, tão forte e tão radical quanto a que os crentes denominam conversão. Aliás, foi uma conversão à verdade como ela é e não como sou. Os sentimentos que então me tomaram foram tão poderosos, tão avassaladores que, simplesmente, não consegui lidar com eles. Tive de bater em retirada, para não perder totalmente e tão cedo o equilíbrio, a higidez intelectual. Por sentir que não possuía o capital de maturidade, forças, saúde (por incrível que possa parecer) para continuar a passar por aquela experiência, tomei a resolução de adiar uma reflexão necessariamente profunda e angustiosa sobre as minhas dúvidas, bem como o encontro de vida ou morte (porque totalmente autêntico) com elas.
Três anos mais tarde, num outro estado de alma, iniciei a longa caminhada em que tenho examinado minhas dúvidas profundamente. Nunca mais deixei de desenvolvê-la, pois não é dado ao homem fazê-lo. Faço questão de confessar esse crime.
Pode haver um estado de apego maior à verdade, como ela é e não como queremos forçá-la a ser, que o da pessoa que se crê responsável diante de Deus? Essa pessoa sentirá o peso esmagador não da condenação ao inferno, mas da condenação a professar a mentira. Tenho experimentado isso, em algum grau.
Digamos, porém, que toda essa experiência seja lorota e que a divisão da moda seja mesmo entre inteligentes e nem tanto. Descrentes de um lado, crentes de outro. Que isso significa, na prática e no interior dos grandes problemas do conhecimento? Que significa, por exemplo, em termos da grande questão da origem da vida? Deus criou o primeiro ser vivo (seja lá o que tiver sido) ou as pecinhas de que este foi feito juntaram-se, ao som e à luz dos fenômenos daquela época? Se um Criador fez o primeiro ser vivo ou se os componentes juntaram-se, no milagre da protocélula, não são o objeto de dois épicos atos de fé?
Desde que Stanley Miller produziu aminoácidos em laboratório, há várias décadas, até estes tempos em que os cientistas, extasiados com a parafernália e a ciência incríveis à sua disposição, sintentizam pernas e braços de RNA, nada que se possa dizer um ser vivo mexeu-se nos laboratórios. Confesso-me o mais empedernido dos céticos quanto à possibilidade de vir a mexer-se, ao mesmo tempo em que mantenho minha tranquila fé no papel do Criador. Sou cético e crente, crente e cético. Pergunto, pois: e os novos ateus, que são? Em qual dos delírios creem: no teológico ou no científico?
Anos depois da minha queda do céu dos dogmas, quando publiquei A hipótese de Darwin, meu prefaciador, o filósofo Regis de Morais, escreveu algo em meu favor. Disse que admirava como eu era capaz de me controlar, ao examinar tão demoradamente os despautérios de um ateísmo que se crê superior. Regis encontrou esse autocontrole em A hipótese. Pois devo afirmar, com a radical desconfiança que tenho dos elogios (à diferença dos ateus, que demonstram acreditar piamente neles), que minha paciência com aqueles senhores aristocratas esgotou-se. Não passam de uns fundamentalistas científicos. São tão perigosos (embora atuem por outros métodos) quanto o fundamentalista que matou quase 100 pessoas na Noruega, em 2011, para relançar os Templários. Não são mais que uns bregas, que não percebem que a sua aristocracia envelhecida não combina com o apreço pela verdade, nem com o tempo atual.
No entanto, o fim de minha paciência não significa que passarei a falar como esses senhores falam com o mundo: de cima para baixo. Não me entendam mal. O fim da paciência quer dizer que falarei ainda mais de igual para igual, pois esse é o único modo digno de um ser humano se dirigir a outro. Assim conversarei, seja com eles, seja com os seus seguidores (geralmente desinformados). Aliás, é fato que os templários científicos têm cada vez mais seguidores. Nossos jovens mergulham na onda ateísta em falanges. Virou moda, tornou-se intelectualmente chique, avançado dizer “não creio”, “não acredito em Deus”. Mesmo que não se tenha mais uma frase a juntar a essas.
A revista de ciência Galileu publicou uma reportagem, informando que a porcentagem de ateus é, hoje, de incríveis 85% na Suécia, 72% na Noruega, 80% na Dinamarca, 60% na Finlândia, 44% no Reino Unido, 44% na Holanda, 43% na Bélgica, 49% na Alemanha, 54% na França. Se considerarmos que, por muitos milênios, o percentual de ateus radicais (pessoas sem fé religiosa de qualquer espécie) foi sempre muito próximo de zero, perceberemos que, de repente, a humanidade deu um gigantesco salto adiante, em matéria de inteligência! Claramente, é chegado o tempo de o Ministério da Inteligência advertir: crer faz mal para o cérebro.

FÉ E ATROFIA CEREBRAL

Mas um dia abalou-se-me a firmeza,
Deu-me rebate o coração contrito!                                                          


Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!


Amortalhei na Fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e esquecimento...
Só me falta saber se Deus existe!
("O Convertido", Antero de Quental. In Sonetos)


Em artigo publicado na revista Scientif American, em 31 de maio de 2011, Andrew Newberg comentou um estudo da Duke University sobre os efeitos cerebrais de experiências religiosas em 268 homens e mulheres. Na pesquisa de Duke, o hipocampo de todos os indivíduos apresentou um grau de atrofia bastante superior à média da população, após vários anos de experiências místicas.
Embora a relação de longo prazo entre religião e atrofia cerebral não esteja totalmente estabelecida, pela primeira vez, um estudo científico sugeriu-a de maneira robusta. Porém, ainda mais surpreendente do que a atrofia apontada no estudo parecem ser os grupos de risco envolvidos. A pesquisa mostrou que esses grupos não coincidem com o universo religioso inteiro, mas com parte reduzida dele. Além disso, os grupos se estendem para fora do meio religioso, uma vez que a atrofia se manifesta também em pessoas não religiosas e em religiosos não praticantes. A diferença é que a incidência é muito maior em indivíduos que passam por experiências religiosas intensas.
Ao publicarem suas pesquisas, os cientistas de Duke Amy Owen e equipe ofereceram ainda uma hipótese explicativa dos resultados. Eles sugeriram que a atrofia pode decorrer do maior stress, a que os indivíduos pesquisados se submetem, em razão das experiências. Essa conclusão desloca a causa da atrofia da experiência religiosa propriamente dita para as relações sociais resultantes dela. O deslocamento condiz com a não observação da atrofia em membros ativos de igrejas, que não passaram por experiências da mesma intensidade.
Não há o que contestar, nos dados apresentados pelos cientistas de Duke. Porém, há um ponto obscuro neles: a hipótese explicativa que os autores da descoberta propõem talvez não seja a única possível. Não podemos nos esquecer de que o stress causa outros males físicos, que o estudo de Duke não apontou. Não há notícia de aumento de crises de hipertensão, doenças cardíacas, males degenerativos, imunológicos ou outras patologias, nos indivíduos estudados. Essas doenças deveriam estar presentes, se a causa da atrofia fosse o stress, já que todos os indivíduos estudados tinham mais de 58 anos.
Dificuldades como essas talvez nos autorizem a cogitar uma segunda hipótese explicativa da atrofia do hipocampo. Atrofia é um mal decorrente do déficit de exercício de um nervo, músculo, grupo de nervos ou músculos de um organismo vivo. Minha experiência pessoal sugere que as relações sociais que se seguem às experiências místicas tendem a induzir modos de pensamento extremamente reiterados e circulares, para não dizer viciosos. Não é por outra razão que indivíduos muito religiosos passam anos a julgar de maneira rígida fatos cada vez mais diversificados, que a vida lhes apresenta e que dificilmente se amoldam às suas explicações. Casos de gravidez antes do casamento e práticas sexuais não conservadoras são alguns exemplos. No terreno intelectual, a origem de espécies novas, sem intervenção de Deus, e a não ocorrência do Dilúvio de Noé nos dão outros tantos. Julgamentos reiterados de fatos e ideias como esses tendem a excluir explicações não concordantes com a religião e a paralisar, sistematicamente, as funções racionais associadas.
Assim, na mesma medida em que estimulam certos circuitos cerebrais, os modos reiterados de pensamento tendem a paralisar ou minimizar o funcionamento de outros circuitos. Funções inteiras do cérebro, não apenas cognitivas, mas sentimentais, são paralisadas em consequência de engajamentos comunitários, que se seguem a experiências religiosas intensas. Aí pode estar uma segunda causa da atrofia apontada no artigo de Scientific American. Como a primeira (o stress), essa causa tampouco se centra na experiência religiosa em si mesma, mas nos desdobramentos comunitários dela. Porém, diferentemente do que ocorre com a primeira causa, a contenção da paralisação racional depende mais do indivíduo do que do meio. É possível à pessoa de fé manter-se racionalmente ativa em múltiplas direções, e não numa só, a despeito do meio em que está inserida. Infelizmente, as pessoas que passam por experiências místicas muito fortes não costumam desenvolver essa prática.
Se a hipótese da paralisação de processos racionais for verdadeira, os indivíduos religiosos fazem bem em não diminuir o exercício intelectual e em não descurar explicação alguma de um fato, a não ser por razões mais robustas. O exercício racional amplo é indispensável para a higidez da mente religiosa. Se as informações disponíveis não associam a atrofia cerebral às experiências religiosas propriamente ditas, é certo que elas desnudam uma relação perigosa entre a paralisação da atividade racional e a atrofia do cérebro.
Não seria honesto encerrar este breve comentário sem mencionar que muitas outras pesquisas atestaram os benefícios da fé para o cérebro. Porém, em geral, elas se debruçaram sobre os desdobramentos de curto e de médio prazos das experiências religiosas. O estudo de Duke foi o primeiro a abrir a janela para uma nova paisagem. E, aberta a janela, faremos bem em não cerrar nossos olhos.

CREIO PARA ENTENDER

A frase Credo ut intelligam (Creio para entender) é um dos mais profundos enunciados da História do Pensamento. Do ponto de vista cristão, é o ponto nodal, a declaração mais reveladora do papel histórico de sua fé. Isso porque, ao contrário das outras frases, cujos autores são conhecidos, o Credo não tem emissor determinado. Sua autoria é atribuída, com razão, a Santo Anselmo, mas a frase é tão essencial ao cristianismo que os teólogos que prepararam o caminho para Anselmo a formular devem ser considerados precursores, quando não coautores dela.
Se o Credo é um dito de muitas pessoas, o que torna complexo o seu estatuto linguístico, seu sentido é mais simples de determinar. Crer para entender não significa acreditar de qualquer maneira para compreender um pouco. Significa crer com intensidade para compreender amplamente. Para dizê-lo de modo claro: significa um ato vigoroso de fé, ao qual se segue outro igualmente vigoroso da razão.
O Credo ut intelligam pode não se ajustar à experiência deste ou daquele cristão, mas corresponde com precisão à História do cristianismo. Por exemplo, o místico de convicções extremadas pensa que a fé deve redundar em comunicações diretas com Deus, em milagres, infusões espirituais pela administração de sacramentos, pela oração e por outras práticas. O racionalista, por sua vez, drena da fé a emoção e assim compromete a essência do crer. De modo que nem ele, nem o místico se ajustam ao Credo ut intelligam.
Porém, esses são mais desvios da fé cristã do que afirmações dela. Só na História, podemos apreender a natureza da fé, pois é ali que ela existe. Ser-na-História é algo próprio da fé. O místico e o racionalista extremados negam esse fato, quando tentam viver uma fé idealizada: o primeiro, uma fé que não depende do conhecimento; o outro, um conhecimento que não depende da fé. Nenhum desses objetos idealizados existe na História. O que a História revela é a fé e o conhecimento, lado a lado e integrados, tanto na sociedade civil como na igreja.
Não é difícil entender por quê. Desde o primeiro século, os cristãos cuidaram de aproximar, progressivamente, a tradição dos apóstolos e profetas do conhecimento mais elaborado que as civilizações clássicas tinham produzido, a saber: da Filosofia, da Literatura, da Gramática e da História. Conforme o fizeram, duas consequências de importância transcendental foram observadas: a cultura clássica se desintegrou, e o Império Romano se cristianizou.
A aproximação da fé em relação a elementos da Antiguidade Clássica, iniciada no período helenístico, não desapareceu na Idade Média. Pelo contrário, as combinações de obras cristãs e clássicas intensificaram-se nesse período, com dois resultados principais: uma parte da cultura grecorromana foi segregada em mosteiros e catedrais, onde sua combinação com o cristianismo prosseguiu; outra parte permaneceu em circulação, fora das instituições religiosas, até desintegrar-se.
Assim, no interior dos mosteiros e das catedrais e nas obras que circulavam sem impedimento, as disciplinas clássicas do Trivium (Gramática Lógica e Retórica) e do Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia), que haviam sido ensinadas pelos gregos e pelos romanos como fins em si mesmas, continuaram a ser transmitidas, na Idade Média, banhadas pela luz da Teologia. Por exemplo, as lições de Ptolomeu sobre Astronomia continuaram a ser ministradas, após terem sido adaptadas à visão de mundo de Gênesis.
Contudo, ainda mais importante do que a adaptação das artes à fé foi a verificação pormenorizada dos pontos em que a cultura clássica deveria ceder ao cristianismo. Ela foi realizada por quatro escritores, que exprimem, de modo particularmente luminoso, a confluência do cristianismo com a cultura clássica. Na primeira metade do século III, o Tratado sobre os princípios e o Contra Celso, de Orígenes, depois a Preparação evangélica e a Demonstração evangélica, de Eusébio de Cesareia, a tradução latina da Bíblia e os outros textos de São Jerônimo e, ainda, os Comentários de Gênesis, as Confissões e A cidade de Deus, de Agostinho, realizaram tal façanha.
Desse modo e sob esses princípios, ocorreu a absorção da cultura clássica pelo cristianismo, nos cinco primeiros séculos. Sobre a base constituída por essa absorção, a conjugação dos dois saberes prosseguiu, na Idade Média. Pontos culminantes dela foram João Escoto Erígena, Anselmo de Aosta, Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham. Os Lugares comuns, de Philip Melanchton, e as Institutas, de Calvino, embora situados no âmbito da Reforma Protestante, também constituem sínteses teológicas formalmente semelhantes às medievais.
Todavia, mencionar alguns nomes é perder de vista o diferencial específico dos Períodos Medievo e Moderno, que foi a proliferação de ordens religiosas para a preservação da fé e também do conhecimento. A produção de textos cristãos com elementos clássicos intensificou-se, do século XV em diante, no meio católico, e decresceu, no protestante, a partir do fim do século XVI, até a Teologia Liberal e as obras publicadas por Karl Barth, no século XX.
Infelizmente, a crise do liberalismo e as dificuldades enfrentadas pela escola de Barth para renovar, profundamente, a Teologia Protestante formam o contexto em que esta até hoje se insere. Contexto que pode ser descrito, sucintamente, como o da necessidade de uma Reforma tão vasta quanto a que o Protestantismo pregou, no século XVI.
Em síntese, como doutrina da salvação, desde o princípio, o cristianismo fez jus à palavra salvação, mas também à doutrina. Nele, o crer vem antes do entender, mas a precedência não é uma simples questão de antes ou depois. É um princípio epistemológico radicalmente novo, pelo qual um conhecimento robusto do Universo, do homem e de Deus se torna possível a partir da fé. Esse princípio foi posto em prática durante séculos, e só uma cegueira muito grande impede perceber com que grandiosos resultados.
Os místicos exaltados veem, nesse desenvolvimento intelectual, um princípio de desvio. Entendem que a fé deve ser mantida à parte, separada do saber profano, posto que o entretecimento delas viola a loucura da pregação, o caráter místico e irracional do evangelho.
No entanto, essa é uma interpretação equivocada das palavras de Paulo. Tanto em 1ª aos Coríntios 1:17-25, onde vemos a loucura da pregação mencionada, quanto nos escritos de Paulo como um todo, a sabedoria que os gregos buscavam era um composto de Filosofia e das disciplinas mais tarde reunidas no Trivium e no Quadrivium. Não é crível que o apóstolo, que disse que todas as coisas são lícitas e puras (1 Co 6:12;10:23), considerasse impuros saberes racionais ou até mesmo técnicos como esses.
O que Paulo ressalta, em 1ª aos Coríntios, não é isso. É antes que o evangelho é uma doutrina da salvação, que perde sentido e se converte em loucura, quando tomada como algo meramente racional. “A sabedoria de palavra” (1 Co 1:17), diz Paulo, anula a cruz de Cristo. No contexto da época, essa sabedoria era algo muito próximo do Trivium, que ensinava o manejo de palavras escritas (Gramática), pensadas (Lógica) e faladas (Retórica). Paulo não quis propor que essas disciplinas invalidam o evangelho, mas que moldá-lo às regras delas o anula. A Retórica, por exemplo, visava à persuasão: apresentar o evangelho para persuadir, a qualquer custo, era o mesmo que anulá-lo.
Se a loucura da pregação fosse a irracionalidade da doutrina do evangelho, Paulo não teria declarado aos coríntios: “Embora seja falto no falar, não o sou no conhecimento; mas, em tudo e por todos os modos, vos temos feito conhecer isto” (2 Co 11:5). Em tudo e por todos os modos, Paulo e seus colaboradores tinham feito conhecer o quê? Tinham feito conhecer que o apóstolo não era falto no conhecimento. Pode haver maior razão do que esta para crermos que Paulo usou normalmente o conhecimento que possuía para pregar aos coríntios?
Após ouvir Paulo anunciar o evangelho de Cristo, o governador Festo declarou: “Estás louco, Paulo! As muitas letras te fazem delirar” (At 26:24). A exclamação relaciona a pregação do apóstolo ao cultivo excessivo das letras, não ao desprezo delas. Perante o governador, o mesmo Paulo, que esteve em Corinto, pareceu utilizar grande quantidade de conhecimento ao pregar. E, ao ser interpelado sobre esse procedimento, confirmou: “Digo palavras de verdade e de bom senso” (At 26:25).
A grande diferença da fé cristã, em relação ao conhecimento mundano, nas suas várias etapas, é o sabor totalmente próprio que o ato de crer comunica ao entender. O homem pagão apenas conhecia. Seu saber era, por isso, mais simples. Arrancava-o, com puro suor, da rocha bruta dos séculos. O cristão não: para ele, o entender (intelligam) nasce do crer (credo). É, por isso, um conhecimento incensado pela oração a Deus. Um conhecimento, permitam-me dizê-lo, sublime, embora não incorruptível. Por isso, introduziu na História do Pensamento o totalmente novo.
Ao cristão importam a verdade e o conhecimento dos fatos. Importa o modo de ser das coisas. Como poderia não importar, se elas foram criadas por Deus e revelam facetas do ser divino? A revelação de Deus nas coisas criadas e sua providência na História são motivos suficientes de nos dedicarmos a conhecê-las. Não faz o menor sentido extrair o contrário da declaração de Lutero: “Manda às favas o conhecimento da natureza. É bastante que saibas que o fogo é quente, a água é fria e úmida. Sabe como deves tratar teu campo, casa, gado e filho, isto é para ti suficiente no conhecimento da natureza” (LUTERO, Martinho. Apud FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1988. p. 331).
Lutero viveu numa época em que a distribuição tradicional de funções entre os conhecimentos entrara em colapso. Desde os Pais da Igreja, a metafísica tornara-se a base de compreensão da física, ou seja, da natureza. Com isso, as afirmativas abstratas daquela tinham moldado todo o conhecimento natural. Lutero se insurgiu contra isso. Afirmou que o conhecimento da natureza não cabe à metafísica, mas ao senso comum e somente a ele. Pareceu-lhe melhor agarrar o mirrado pássaro do senso comum do que soltar as águias metafísicas para que voassem. Mais tarde, com o advento das ciências naturais, as competências dos vários saberes haveriam de ser redistribuídas, e a declaração de Lutero passaria a soar absurda, mas, no seu tempo, ela foi expressão de um sadio inconformismo.
Infelizmente, nem cientistas, nem filósofos jamais souberam o que fazer com a metafísica, depois que as ciências fizeram sua aparição. A alguns pareceu melhor sacrificar a grande ave; outros resolveram prendê-la; e ainda outros trataram-na como o precário pássaro do ditado. Poucos reservaram à águia a liberdade e o azul do céu.

A Filosofia existe há tantos séculos, porém, até hoje, os filósofos se perguntam para que ela serve. Isso é lá um fato e dos mais chocantes. Um fato que não se repete, da mesma maneira, com qualquer outro saber humano. Só se passa com a Filosofia. Talvez por vislumbrarem isso, quando as belas-letras voltaram à cena, na época do Renascimento, certos espíritos jocosos chegaram a afirmar que a “Filosofia é uma ciência tal que o mundo, com ou sem a qual, continua tal e qual”. Nenhuma definição (de um estado de espírito, é claro) poderia ser mais lapidar.
Piadas à parte, porém, longe de desmoralizar a Filosofia, a repetição da pergunta sobre a sua finalidade realça a inusitada importância dessa disciplina. Sabemos que os biólogos frequentemente perguntam o que é a vida. Sabemos também que, quase com a mesma frequência, confessam não conhecer a resposta. A verdade nua é que a inteira ciência da Biologia gira em torno de tal pergunta. E que, nem por isso, a consideramos uma ciência vã. Pelo contrário, a repetição da pergunta sobre o objeto da Biologia mostra que a vida é tão profunda que uma ciência inteira se faz necessária apenas para perguntar e responder a respeito dele.
A situação da Filosofia é, porém, ainda mais dramática que a da Biologia, já que os filósofos não se perguntam apenas sobre o objeto da sua ciência, mas sobre a própria ciência. Assemelham-se, assim, ao aluno que estuda a lição e não só não a aprende como sequer desconfia do que seja estudar. Havemos de convir que esse tipo corre mais risco de ser considerado um asno do que aquele que não aprende a lição, mas compreende o que é estudá-la.
Precisamos lembrar, então, que a Filosofia não deve ser tão antiga, não deve possuir uma História de mais de 25 séculos, como possui, à toa. Algo estudado, por grandes mentes, durante 25 séculos, não há de ser mera perfumaria acadêmica. De modo que a perplexidade que a Filosofia nos causa pode ser mais devida ao mistério que a envolve do que à sua inutilidade.
Na realidade, a Filosofia é misteriosa por ser um saber negativo. É comum esperarmos que um conhecimento nos ensine a “fazer algo”. No entanto, os que criticam a Filosofia por não nos ajudar a fazer coisa alguma estão certos, pois ela, de fato, não nos ensina a fazer, mas a desfazer coisas. Ao menos, é com essa função que a observamos no corpo da História.
A Filosofia é um saber bastante determinado, com objeto e partes bem estabelecidos e uma História brilhante. É, porém, um saber que serve para desfazer coisas, isto é, ideias. Especialmente para desfazer ideias que foram tão adotadas e se impuseram ao longo de tanto tempo que se tornaram convencionais. Em outras palavras, a Filosofia serve para criticar o senso comum.
Ao menos desde Dionísio, o Areopagita, fala-se de teologia negativa. A expressão só se justifica se tomarmos a teologia no sentido por demais estrito de um conhecimento da essência de Deus. Estamos todos de acordo sobre o fato de que Deus é incompreensível. Não encontrei meio teólogo que discordasse dessa assertiva. Sabemos também que, se Deus é incompreensível, só podemos conhecer o que ele não é, jamais o que é. Essa é a afirmativa básica da teologia negativa.
No entanto, se não tem o que dizer sobre Deus, é absurdo a teologia existir para estabelecer o que ele não é, já que isso envolveria uma contradição. Se a teologia nos ensinar o que Deus não é, não estará implícito que ele é todo o resto ou parte do resto? Deus não resultará, assim, parcialmente determinado? E a teologia negativa não negará a si mesma? Essas dúvidas infirmam as propostas, de outro modo atraentes, da teologia negativa.
Se não nos fala da essência divina, a Teologia diz-nos, necessariamente, das obras de Deus. E as obras, inevitavelmente, nos falam do seu autor. Retornamos, assim, ao que Deus é ou aos reflexos do seu ser sobre o ser do mundo. Retornamos à teologia positiva e penso que nela devemos permanecer, quanto a tudo o que é fundamental.
Porém, algo muito distinto se passa com a Filosofia. Ela, sim, é um saber negativo, por nos mostrar muito mais o que não sabemos que o que o efetivamente conhecemos. Filosofia é o perguntar que serve para erodir e rebaixar as montanhas do saber humano. Na medida em que o faz, ela prepara o caminho para as ciências assertivas, tanto naturais quanto sociais.
Pode ser útil fornecer exemplos históricos do uso negativo da Filosofia em que tanto insisto. A Lógica e a Metafísica (duas partes da Filosofia) trabalham intensamente com categorias, isto é, com conceitos que fundam todos os outros conceitos. Exemplos de categoria são a substância, a quantidade, a qualidade, o tempo, o espaço, entre outras. Se olharmos para a História da Filosofia como um contínuo, perceberemos que o que umas escolas sustentaram anula o que as outras disseram, a respeito das categorias. Assim ficamos sem um mínimo de certeza sobre o que esses conceitos fundamentais realmente significam ou indicam.
Não há nisso, propriamente, uma autoaniquilação da Filosofia. O saber filosófico não é autofágico, até porque não foram os filósofos que construíram ou inventaram as categorias. Mas eles demonstraram tão bem as impropriedades no uso desses conceitos que terminamos sem eles.
É absolutamente normal e benéfico a Filosofia ser assim usada para desconstruir o saber humano. Ao fazê-lo, ela mostra, mais do que todas as outras disciplinas, que o saber tem limites essenciais e não apenas acidentais. Essa é a função primordial da Filosofia, até porque, se não for, não restará outra para atribuirmos a esse saber como a História o apresenta.
Quero dizer que, ao contrário de outras ciências, como a Física e a Biologia, que tantas contribuições deram para o conhecimento humano, a Filosofia só fez o conhecimento avançar, positivamente, ao expor, de uma nova maneira, o que antes já se conhecia. No Organon, por exemplo, Aristóteles mostrou como o conhecimento comum se processa. Na medida em que trata do conhecimento comum, porém, ele não diz algo que as pessoas daquela época e nós, hoje, não conheçamos. Só expõe de modo completo o que já sabíamos.
A oposição das escolas já foi apontada como o movimento geral mais nítido da História da Filosofia. Verdade é que as escolas se oporem nem sempre significa anularem-se, mas quase sempre se traduz em uma enfraquecer a posição da outra. Em uma escola ou corrente de pensamento mostrar mil dúvidas que a posição da outra envolve. Maimônides é fundamental por ter aquilatado isso tão bem a ponto de ter legado o Guia dos perplexos (Maimonides, Moses. The guide for the perplexed. 2nd. edition, New York: Dover, 1956) como roteiro a todos os que reconhecem as dúvidas insolúveis a que a Filosofia conduz.
Porém, a oposição das escolas não é o único motivo para negarmos que a Filosofia contribua, positivamente, para o conhecimento humano. O motivo maior é o fato de a Filosofia ser, em geral, muito mais destruidora do que confirmadora de conhecimentos. Muito mais crítica do que demonstrativa. É, enfim, o fato de ela servir para desfazer as ideias mais arraigadas de todas as que vigoram no interior das culturas, a saber: as que constituem o senso comum de cada época.
A crítica do senso comum dá-se, primordialmente, pela revisão e superação das categorias que o fundamentam. Por isso, a Filosofia não sintetiza categorias: critica-as. Não as sintetiza, antes de tudo, porque a sua finalidade não é positiva, mas negativa. É claro que não vou ao ponto de propor que os filósofos, enquanto filósofos, nunca descobriram algo ou mostraram algo novo. Podem ter descoberto e mostrado, mas por exceção, não em regra, aqui e ali, não por toda parte.
Essa vocação, a meu ver tão nítida, da Filosofia ilumina de modo especial o tempo presente, no qual se percebe não só a ausência de uma escola triunfante no campo da Filosofia, mas também nos territórios da Teologia, da Psicologia, da Antropologia, da Política e da Economia. Por que não há vencedores ou ao menos vencedores claros, no embate das doutrinas? Uma das razões talvez seja que a Filosofia realizou demasiado bem o seu trabalho. Que ela se hipertrofiou demais e gerou um arsenal tão grande, ao longo de tantos séculos, que serviu para destruir boa parte das outras ciências.
Porém, esse trabalho de limpeza do terreno, que caracteriza a Filosofia, não é um fim em si mesmo. O terreno não é limpo para permanecer vazio ou sem utilidade. Utilizá-lo é, no caso, erguer novas doutrinas, após a remoção do lixo e do entulho. Portanto, o trabalho filosófico pede o complemento de um outro saber que erga, no terreno descontaminado, o templo de um novo conhecimento.
Que saber é esse e que templo há de construir? Não há perguntas mais centrais, nem mais cruciais do que essas a serem feitas, no tempo atual. Se o trabalho crítico (que não cabe só à Filosofia, mas cabe-lhe principalmente) tem sido bem-sucedido, esse feliz resultado deve encorajar-nos a buscar o saber que sobreviveu a ele. Não um saber simplesmente técnico ou mesmo tecnológico, embora a tecnologia seja uma das consequências normais dele. O saber sobrevivente à tarefa negativa da Filosofia é, antes de tudo, uma visão de mundo. A visão que o homem sempre buscou, que ele construiu e viu desabar uma, duas, talvez mil vezes. Porém, ainda uma visão de mundo, pois o conhecimento tem vocação, e vocação verdadeira não se perde para o fracasso.
Não restam muitos bons candidatos a constituir a visão de mundo remanescente à crítica das disciplinas negativas. As ciências naturais têm sido amplamente bem-sucedidas. E as ciências sociais, em que pesem as limitações do seu método, também têm alcançado sucesso. Claro que há mil correções a serem feitas numas e noutras, mas o que justifica o crédito concedido às ciências é exatamente a sua corrigibilidade.
Num dos lados do terreno que a crítica limpou, temos, portanto, as ciências. Do outro lado (entrego-me, aqui, ao apedrejamento), temos a Teologia. Não qualquer teologia, pois a maior parte dos sistemas que já foram propostos com esse nome foi refutada. Temos, porém, o que, na História da Teologia, se denomina compreensão pela fé.
Com essa expressão, não me refiro à fé que segue a compreensão (Intelligo ut credam), embora isso seja parte da experiência cristã, mas à compreensão que se segue à fé (Credo ut intelligam). A diferença entre essas experiências não é, absolutamente, desprezível. A primeira faz parte da fé cristã, mas a grandeza do cristianismo se deve à segunda. Sempre que nos limitamos ao Intelligo ut credam, terminamos com um Deus pequeno, com um Deus do tamanho da nossa capacidade intelectual. Porém, pelo Credo ut intelligam, chegamos a um Deus verdadeiramente grande, a um Deus que se revelou na fé, que se deu a conhecer e não foi descoberto. Não é demasiado dizer: chegamos ao Verbo que se fez carne, ao Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.
Claro que há mil coisas pressupostas, implícitas e subentendidas, nessa explanação sucinta do Credo ut intelligam, como a História o desvela. Na minha experiência pessoal, se de algum modo posso dizer que a tive, o cerne da revelação que se segue à fé é a criação de Deus. Deus, que criou todas as coisas, ao revelar-se ao homem, revela-se ainda nas coisas maravilhosas que criou. Claro que o faz porque, em si mesmo, é que nós não o podemos conhecer. Conhecimento negativo não é verdadeiro conhecimento. É treva. Temos, pois, de conhecer a Deus da única maneira positiva que nos é possível, vale dizer, nos limites postos pelo que somos e pelo que o mundo é.
O lado forte da experiência cristã ergue-se sobre o assombroso mundo do que somos em nós mesmos e do que o mundo é fora de nós. Esse é o mundo descortinado pela criação de Deus, pela criação que é mistério até nos ser revelada, pela criação que, na minha experiência pouca, tenho aprendido que só a Bíblia e o Deus da Bíblia podem realmente revelar.
Sei que isso soa louco. Compreendo-o, mas me compadeço de quem assim pensa, já que a loucura se evola, perde-se para as nuvens, quando bebemos do cálice em que se leem as palavras latinas, que os séculos sussurram em prece.

A CRÍTICA ÀS ESCRITURAS

No mundo protestante, é cada vez mais comum as pessoas ignorarem a Crítica desenvolvida, nos últimos 200 anos, à historicidade dos eventos centrais das Escrituras. Devido à gravidade dos temas suscitados pela Crítica, essa resolução tornou-se tão relevante, hoje, quanto a de Lutero ao rejeitar a venda de indulgências, no século XVI, embora com consequências opostas para o progresso do evangelho no mundo.
Tanto a Crítica Histórica como a Literária afirmam que muitos eventos bíblicos não ocorreram ou, ao menos, não ocorreram do modo como as Escrituras os apresentam. Por exemplo, para elas, não houve travessia do Mar Vermelho, talvez não tenha havido sequer um Êxodo ou um Moisés, Jesus não realizou milagres e assim por diante.
Claro que Críticas que reduzem de tal forma a grandeza da Bíblia devem ser tomadas com cuidados, mas isso não significa que se deva simplesmente desconsiderá-las.O silêncio acrítico das Igrejas só seria aceitável, se a identidade histórica do Protestantismo não estivesse tão relacionada às Sagradas Escrituras. Mas a consciência protestante, como se sabe, está enraizada no sola Scriptura e no sola fide como em seu duplo solo natural. Por isso, somos levados a indagar se a atitude de ignorar a Crítica às Escrituras não é, antes de tudo, alienada.
Duas justificativas costumam ser apresentadas para o silêncio das Igrejas a respeito dessa questão. A primeira é a justificativa da fé. As Igrejas creem na inspiração divina da Bíblia, não em descobertas científicas sobre a sua historicidade e autenticidade. A explicação seria aceitável, se a fé importasse a paralisação da razão. Mas não é esse o caso. Portanto, a explicação baseada na fé não convence.
A segunda justificativa consiste em sustentar que bons teólogos evangélicos já ofereceram respostas à Crítica, com o que o problema foi encerrado, do ponto de vista das Igrejas. Mas será que as respostas foram tão superiores às críticas que o tema pode ser desproblematizado ao ponto do silêncio? Não é o que pensam os maiores especialistas no assunto. Considero, portanto, escusado desconfiar também da segunda justificativa do silêncio protestante.
A suspensão da razão em questões cuja importância, no mundo atual, assemelha-se à do heliocentrismo, nos séculos XVI e XVII, é tão perigosa para a causa cristã quanto a abolição da própria fé. Faz tanto sentido ser cristão sem a razão quanto sem a fé. Sobretudo, quando um tópico racional se reveste de importância central, em certo momento histórico. É o caso da interpretação crítica das Escrituras. Se a Bíblia não fosse tão fundamental para a História, a Religião, a Teologia e a Filosofia, o hábito de ignorar a Crítica não seria tão grave. Porém, a importância da Bíblia faz com que modificações profundas na interpretação dela repercutam em áreas tão diversas quanto política, economia, costumes, arte e entretenimento. Consintamos ou não, sintamo-nos ou não confortáveis com isso, o mundo secularizado em que vivemos não deixa de ser consequência de certas releituras bíblicas.
Porém, é espantoso que, em culturas tão profundamente alteradas pela Crítica às Escrituras como as de hoje, pregadores subam ao púlpito para bradar com a veia saltada: “Sola fide!” E para dizer com o autor de Hebreus: “Pela fé, pela fé!”, num contexto em que a fé não tem mais o significado do século I. No entanto, tal estranha situação parece dever-se ainda mais ao povo do que ao púlpito, pois a alienação do trabalho crítico concentra-se no primeiro. Não que a decisão sobre essa primazia importe tanto, já que o povo e o púlpito se reforçam e confirmam mutuamente. O que realmente importa é perguntar se há fé nesse estranho sacrifício da verdade, nessa pura alienação, nesse holocausto da razão protestante. Se concluirmos que há, eis uma fé que mata e não vivifica.
O que se prega dos púlpitos é o que se crê no coração. E o que se crê no coração é o que se vive, bem ou mal. O que significa que a atitude alienada tornou-se a atmosfera protestante. É o ar que respiramos, por toda parte, o firme (ou nem tão firme) pilar dos nossos atuais valores comuns.
Já é tempo de os cristãos pararem de se esconder do fato de que a Bíblia foi desafiada. E de que o duelo em que a envolveram é para vida ou morte. A fé sabe como o duelo terminará. Mas sabe também que o Deus soberano, que o profeta avistou no trono, está a perguntar: ”A quem enviarei (à refrega)?” Sabe, por fim, que o combate que se fere com a espada da alienação não é o que o autor bíblico denominou bom combate. É, antes, o combate ilícito, vedado e interditado.
Os críticos mostraram que houve três Isaías. Três profetas que proferiram cada qual uma parte dos oráculos do livro que tem o seu nome. Há 50 anos, isso era ao menos objeto de menção e contra-argumentação, nas Igrejas evangélicas. Nos seminários, então, nem se diga. Era motivo de mais do que simples menção. Hoje, porém, não há mais preocupação com essas “coisas críticas”. Cobre-se o assunto com os pares de asas dos serafins de Isaías. Sem se perceber que, naquele profeta, as asas eram usadas para cobrir os pés e o rosto dos serafins, não Deus, que está assentado no trono. É o que nos diz o texto da fé. Pergunto-me, com efeito, se cobrir uma das mais autênticas discussões que a humanidade produziu sobre a Bíblia não é cobrir, de algum modo, Deus.
Na visão de Isaías 6, Deus está assentado num alto e sublime trono. Serafins voam acima dele a exclamar: “Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória”! Quando eles falam, as bases do limiar se movem, e a fumaça enche o templo em que estão. E à cabeça de toda a visão, lê-se: “No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado” etc. (Is 6:1).
O contexto invocado pela inscrição não pode ser desprezado. Uzias foi um rei piedoso, mas que cometeu a loucura de entrar no Templo de Deus para queimar incenso, o que lhe era terminantemente vedado. Os livros históricos sugerem que Uzias arrependeu-se desse pecado. Pode parecer que isso encerrou os problemas espirituais da época, como de fato encerrou, mas apenas para ele, individualmente. Não para o povo, coletivamente considerado. Se o rei se transviara e se arrependera, “o povo continuava na prática do mal” (2 Cr 27:2).
O antídoto, o remédio, que Deus apresentou para essa dupla degradação foi a visão de Isaías 6. Qual é o conteúdo dela? É a exaltação de Deus e de mais ninguém. No templo em que Deus está, não há rei ou sacerdote algum. Os serafins não estão diante dele. E por que não estão? Para não o cobrir, pois a glória da cena emana de Deus e somente dele.
Deus não deve ser coberto, assim como tudo o que o expressa. Não é diferente com a interpretação das suas palavras. Ainda que ela pareça desafiar a glória de Deus, enquanto permanecer interpretação e não se tornar invenção, não haverá desafio algum. Quando muito, se houver, será um desafio benigno e consentido, pois o Deus verdadeiro não se importa em ser julgado por um reles homem. Se alguém se arvorar em juiz das palavras divinas, que problema causará a quem não é homem? A quem é a própria verdade? Por isso, “está escrito: Para seres justificado nas tuas palavras, e venhas a vencer quando fores julgado” (Rm 3:4).
O verso não diz: para não seres julgado, mas “para que venhas a vencer quando fores julgado”. É devido o homem julgar a Deus. Indevido é ele se apartar da verdade sobre o seu Criador. É erguer fortalezas contra o conhecimento de Deus. Como se erguem tais fortalezas? Pela incredulidade, dirão. Sem sombra de dúvida. Mas a incredulidade não é o único modo de se erguer fortalezas contra o conhecimento de Deus. A alienação é às vezes mais eficaz do que ela para esse fim. Especialmente a alienação sistemática para com interpretações bíblicas relevantes.
A verdade sobre Deus está na interpretação da Escritura. Se não fosse assim, Abraão não teria dito a Lázaro: “Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos” (Lc 16:29). Porém, esse ouvir não é só interpretar. É também não aborrecer o que se descobre no texto interpretado. A desgraça do tempo de Jesus era os intérpretes da lei deterem a chave da ciência e não a usarem (Lc 11:52). Se eram intérpretes, como Jesus os denominou, é certo que interpretavam. Isso era deter a chave. Não abrir a porta com ela era outra coisa. Era alienar-se do que encontravam ao interpretar.
Alienar-se não é apenas se isolar de uma realidade. É ao mesmo tempo perder-se em outra realidade. A blindagem das mentes contra a Crítica Histórica e Literária não é só a perda do que esta descortina, mas a inserção da mente num mundo fantasioso que o sujeito acredita real. Esse desacerto, esse desencontro, entre a consciência e o real, é a alienação. Não vejo outro resultado da prática protestante corrente de se proteger obsessivamente contra a Crítica.
Faríamos melhor se aceitássemos toda luz que a verdade divina reflete, de todas as formas, como na cena de Isaías 6. Esse capítulo é o meio-dia do Antigo Testamento. É a glória divina, shekiná, sem ofuscamentos. Deixar essa glória brilhar em toda a terra não é entregar o templo de Deus a forças estranhas. Só precisamos entender que há uma glória crítica, se a razão humana é a imagem de Deus.
A Bíblia é a palavra de Deus por si só. Não precisou da nossa razão para vir a ser, nem precisará dela para continuar a ser tal palavra. Mas, precisamente por isso, devemos ter o destemor de exercitar a razão para interpretá-la. Se acharmos nela um erro, teremos achado um erro na palavra de Deus, não naquilo que não é a palavra divina. Erro nenhum tem o poder de cancelar essa palavra. Nada tem. É o que João 10:35 afirma. Ou não é? Portanto, independentemente do que façamos ou deixemos de fazer, do que critiquemos ou deixemos de criticar, passarão os céus e a terra, mas essa palavra não passará.
Por esses motivos, a genealogia da Crítica (quero dizer sua origem) não se reporta aos que perderam a fé ao desenvolvê-la, mas aos que ganharam mais fé por a terem desenvolvido. É um erro pensar que a Crítica começou com o Iluminismo. Ela principiou com Orígenes (sugestivo nome!), o mestre cristão do século III, que escreveu: “Uma vez que a finalidade [das Escrituras] é apresentar a coerência das realidades espirituais por meio dos acontecimentos que se produziram [isto é, da História], [...] onde a ação de tal ou qual [personagem], antes descrita, não concordava com ela por causa dos significados mais místicos, a Escritura teceu no relato aquilo que não se passou” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012. 4º Livro, Cap. 2. p. 300).
Ao afirmar que a Escritura teceu no relato o que não se passou, Orígenes atestou que a Bíblia contém aquilo que os homens denominam erros históricos. E isso “não somente nos livros anteriores à vinda de Cristo [nos quais] o Espírito assim dispôs as coisas, mas, como ele é o mesmo Espírito e provém do mesmo Deus, agiu com os Evangelhos da mesma maneira, e com os [livros dos] apóstolos, pois também neles o relato é por vezes misturado com adendos que foram tecidos segundo o sentido corporal [literal], mas que não correspondem a acontecimentos reais” (idem. pp. 300-301).
Com toda razão, portanto, se deve pensar que o maior precursor e talvez o inventor do método crítico tenha sido Orígenes de Alexandria. Com base nesse método, ele concluiu que apenas um “tolo pensa que, como se fosse um homem agricultor, Deus plantou um paraíso no Éden do lado do Oriente, e nele fez uma árvore da vida visível e sensível, de tal modo que aquele que provasse da sua fruta com dentes corporais receberia a vida” (idem. p. 301). Descobriu ainda que, “se Deus é representado passeando à tarde no jardim, e Adão escondendo-se debaixo da árvore [...] não se pode duvidar de que tudo isso, exposto numa estória que parece que aconteceu, mas não aconteceu corporalmente [literalmente], indica certos mistérios” (idem).
Não se diga que os hereges gnósticos desenvolveram a Crítica antes de Orígenes. Os gnósticos eram ignorantes das Escrituras. Conheciam-nas muito mal. Estavam mais preocupados em devanear e inventar mundos espirituais do que em estudar a Bíblia. É verdade que eles escreveram uma multidão de Evangelhos alternativos, mas isso foi parte dos seus devaneios, não resultado de estudos sérios. Claro que, se confrontaram tanto as Escrituras, desenvolveram também uma crítica, porém não douta.
A Crítica em sentido elevado, profunda, bem informada e erudita, surgiu no contexto de um dos maiores e mais proficientes esforços de investigação da Bíblia de toda a História. Para se ter noção desse esforço, basta lembrar que Orígenes mandou copiar à mão seis versões diferentes do Antigo Testamento, alinhando verso a verso cada tradução, para melhor compará-las. Esse amor à Escritura está na genealogia da Crítica. É o título de propriedade original da fé sobre ela.
Eis, porém, que, nos dias atuais, estranhamente, retiramo-nos da arena onde ruge o combate. Entregamos a arca da Crítica nas mãos do primeiro filisteu que se disponha a levá-la aos seus templos. Alienamos a nossa propriedade e nos alienamos com ela. Que nos falta? Falta-nos a visão de Isaías. A visão de que devemos cobrir-nos, não cobrir a glória de Deus. E de que essa glória não se encontra apenas no templo, não é estreita ou particular, mas enche todo o globo terrestre.

DEUS E A MATÉRIA

Este é um tempo estranho, em que se requer do homem que viva no mundo sem uma visão de mundo. Continuamos, de fato, a ter um mundo para viver e decifrar, e olhem que ele nunca foi tão complexo. Mas, ao contrário de todas as outras épocas, hoje não possuímos visões de mundo que nos ajudem a entender e a viver neste mundo complexo. Visões de conjunto da realidade ou mesmo das realidades parciais tornaram-se tão raras, na ciência e na vida prática, que parecem um luxo, um capricho, quando não são tratadas como coisas inalcançáveis.
Mas, se a impossibilidade de visões de mundo fosse verdadeira, tanto a Filosofia como a Teologia estariam, de chofre, inviabilizadas. Não seriam possíveis, pois nada mais são que instrumentos de construção de visões de conjunto das coisas. Dediquei minha vida a essas duas disciplinas. E dos grandes teólogos e filósofos que pude estudar, dois me atraíram mais a atenção: Santo Agostinho e Karl Marx.
Curioso é que são pensadores em tudo opostos. Agostinho teve uma formação romana clássica. Estudou letras e retórica. Na tenra idade, assimilou o modo grego de pensar mais do que o cristianismo de sua mãe, Mônica, em relação ao qual cultivou admiração e ressalvas. E não o fez sem motivos. As doutrinas de que Agostinho se enamorou, nesse tempo, mostram que ele se inclinou com ímpeto para as visões de mundo materialistas (no caso, o maniqueísmo) e céticas (academicismo) que circulavam no Império. Só a partir de sua conversão, aos 33 anos, Santo Agostinho trocou o materialismo típico da cultura grega pela fé cristã, da qual se tornou o pensador exemplar e o maior referencial doutrinário, por quase toda a Idade Média.
Marx realizou o percurso contrário. Nasceu numa família de rabinos e se criou numa sociedade (a da Prússia) em que a filosofia reinante, promovida pelo próprio Estado, era o idealismo teológico de Hegel. Durante sua vida Marx transitou dessas influências para o materialismo histórico que ele próprio criou, com ajuda de Friedrich Engels. Apesar de todas as dificuldades de interpretação do mundo social em que se envolveu, o materialismo de Marx pode ser considerado o mais bem-sucedido exemplar dessa orientação filosófica em toda a História.
O motivo primeiro de meu igual interesse por pensadores tão opostos foi o propósito de empreender o exame mais honesto possível das filosofias que pudesse percorrer. Nada faculta análise mais escorreita e completa de uma doutrina do que o exame igualmente acurado da doutrina oposta. Como, desde o início de minha trajetória filosófica, eu me inclinara para o pensamento cristão, o aprofundamento na obra de Marx permitiu-me inverter esse pensamento, estudá-lo ao avesso e indagar seriamente se um modo contrário de ver o mundo, porventura, não seria mais fecundo do que o cristão.
Mas há um motivo tão fundamental quanto esse para o meu interesse por Agostinho e Marx. É que, embora as teologias e as filosofias nos facultem construir distintas visões de mundo, a História parece apontar a existência de duas e somente duas metavisões. Refiro-me ao materialismo, que Marx tão bem representa, e à metafísica, da qual Agostinho está entre os mais destacados cultores.
Se a visão de mundo é uma interpretação global da realidade ou de parte significativa dela, a metavisão é mais do que isso. É um agregado de visões distintas, mas convergentes. Pode-se propor que uma metavisão é uma visão de visões do mundo. Talvez, na História do Pensamento, não haja mais do que duas metavisões capazes de agregar todas as concepções filosóficas propostas. São elas o materialismo e a metafísica.
Isso se torna claro, quando lançamos à História do Pensamento um olhar a partir do alto. Ao fazê-lo, divisamos um período inicial de formação em que a Filosofia grega foi, antes de tudo, materialista. Logo em seguida, as obras de Platão e Aristóteles desafiaram e chegaram a abalar os pressupostos dos materialismos pré-socráticos e da cultura grega como um todo. Isso ocorreu desde que Platão ousou propor a existência de um nível da realidade subsistente à parte da matéria: aquele que hoje denominamos espírito e que ele chamou mundo inteligível ou das ideias.
Porém, o condicionamento exercido pelo modo grego de pensar, o peso total da cultura grega, fez com que, após o desaparecimento de Platão e Aristóteles, os filósofos tornassem progressivamente às visões de mundo materialistas. Os seguidores de Platão foram a exceção a esse movimento, pois continuaram a defender concepções metafísicas.
Por terem permanecido praticamente os únicos a defenderem a novidade metafísica, é que os platônicos se tornaram tão importantes na Filosofia Antiga. Por isso também, foram tão associados ao cristianismo. Só ao nos darmos conta da oposição persistente entre materialismo e metafísica, compreendemos por que, desde o século II, o cristianismo juntou suas águas às do platonismo em escala tão magna. Não é exagero afirmar que eles se fundiram quase totalmente, devido às afinidades que os associavam no plano da metavisão. No entanto, a fusão nunca resultou em confusão. Sempre se soube razoavelmente bem o que, no pensamento cristão medieval, era platonismo, e o que era fruto do cristianismo primitivo.
Essa fusão de platonismo e cristianismo foi responsável pelo verdadeiro funeral dos materialismos, ocorrido entre os séculos IV e V. Não se tratou de um enterro individual, mas coletivo, do sepultamento de toda uma civilização, da cultura pagã inteira, que feneceu nesses séculos e arrastou para a cova os materialismos filosóficos penosamente construídos. Até os pressupostos vulgares, entranhados na maneira grecorromana de ver o real como matéria, foram então abandonados. O materialismo exauriu-se até a última gota e desapareceu do mundo cristão.
Os motivos desse espantoso acontecimento constituem um dos mais empolgantes capítulos da História, pois poucos movimentos nos levam mais diretamente ao significado da Idade Média e da Modernidade como antítese dela. A era medieval foi fruto do desmoronamento da cultura pagã, cujas sementes não se perderam, mas cuja forma foi varrida da face da Terra. E, se a Modernidade pode ser definida de várias maneiras, do ponto de vista das visões de mundo, o elemento central dela deve ser identificado como o reaparecimento do materialismo no mundo.
Continuemos, porém, a olhar os acontecimentos a partir do ponto elevado a que me referi. Ao fazê-lo, descobriremos que os materialismos ressurgidos na Idade Moderna destruíram veneráveis sistemas metafísicos apenas para serem, eles próprios, refutados em seguida. De fato, nenhum dos materialismos filosóficos propostos, na Modernidade, manteve-se íntegro. Nem o marxista que, a meu ver, é o melhor. Todos foram reduzidos a pó. Arrastaram também consigo as metafísicas, mas por outro motivo, a saber: porque demonstraram que estas eram irrefutáveis, estavam fora do campo da ciência e, portanto, eram inúteis para fazer avançar o conhecimento.
Não descrevo esse traçado da Filosofia e mais amplamente das Ideias como resposta a questões formuladas na busca do conhecimento, mas como recolocação das próprias questões. O reconhecimento das metavisões materialista e metafísica é um modo de interrogar os fatos da História do Pensamento. É um modo de perguntar aonde esse incrível traçado de reflexões nos conduz.
Nesse ponto, precisamente, a consideração das obras de Santo Agostinho e de Marx se torna fundamental. Se a refutação do materialismo antigo, na época de Agostinho, teve bons fundamentos, e dificilmente se pode duvidar desse fato, a compreensão do estado atual das metavisões passa pela indagação do grau em que a metafísica agostiniana foi abalada pelos materialismos modernos e pelo de Marx, em particular. Verdade é que esses materialismos se preocuparam com as metafísicas clássicas, com Platão e Aristóteles, mais do que com Agostinho e com o próprio Tomás, mas o corpus agostiniano foi o que mais as revitalizou e proveu as condições indispensáveis para a metafísica se perpetuar. Não foi sem motivos que a Alta Idade Média se fez agostiniana e que a Reforma afundou suas raízes no teólogo de Hipona.
Por isso, a pergunta preliminar decisiva para a determinação do estado atual das visões de mundo é a do impacto dos materialismos modernos na metafísica agostiniana. Se Marx tem um papel destacado entre os materialismos, é particularmente útil indagar se os pressupostos da sua doutrina se fundam em razões suficientes para remover aquela metafísica.
Na realidade, como as metafísicas são todas irrefutáveis, é claro que a agostiniana não foi refutada pelos materialismos modernos. A incompatibilidade dos pontos, digamos, corretos da doutrina de Marx com Santo Agostinho não importou a refutação desta, porém o desvelar da irrefutabilidade das metafísicas tornou a visão de Universo de Santo Agostinho tão inaceitável quanto as metafísicas anteriores e mais imperfeitas e os próprios materialismos.
A obra de Marx, em particular, está ancorada no valor da igualdade. Promove-o muito mais do que a liberdade. A agostiniana, ao contrário, é uma doutrina da liberdade de Deus e do homem. Para o Santo de Hipona, Deus é a verdade, e a verdade é libérrima. Por isso o Universo é como é, vale dizer, porque Deus o quis. Por isso também, quando conhecida pelo homem, a verdade rompe todos os seus grilhões. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32). A verdade libérrima promove a libertação do homem. Isso é Santo Agostinho.
O materialismo moderno desenvolveu-se numa direção muito diferente. Michel Foucault foi historiador e filósofo materialista. Para ele, “à diferença do mundo cristão, universalmente tecido pela aranha divina [...] o mundo da história efetiva conhece apenas um único reino, onde não há nem providência, nem causa final, mas somente as mãos de ferro da necessidade que sacode o copo de dados do acaso” (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p. 28).
Mas em Foucault, como em Marx, o que importa não são os pressupostos materialistas. A contribuição por excelência dele consistiu na tradução do pensamento de Marx em linguagem política, na extração de toda uma série de consequências políticas que estavam à sombra do corpus marxista e careciam de elucidação. Foucault mostrou que o poder não se encarna num sujeito particular, por mais privilegiado que seja (por exemplo, o Estado ou uma classe social), mas se difunde no tecido social. Por isso, o poder é impessoal. Sempre que se apresenta personificado ou concentrado, ele não é mais que a miragem de um fato complexo que não foi discernido ou a cristalização provisória de uma potência prestes a se desagregar.
Nada melhor do que recordar as palavras do próprio Foucault sobre o tema: “O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede” (idem. p. 183).
Embora vacile bastante ao descrever natureza do poder, Foucault tende afinal a considerá-lo expressão de uma luta. O contorno dos fatos, do real histórico, “não obedece a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta” (idem. p. 28). Essa concepção é tributária da noção de igualdade de Marx. Ambas afirmam a igualdade em prejuízo da liberdade. Por maior que tenha sido a boa vontade de Foucault, não é possível concluir que a luta constante produza outro resultado. Ela não liberta, mas acorrenta.
Marx falou da revolução permanente. Que é tal revolução, a não ser a luta contínua? Na imensa rede de conflitos que ela envolve, o homem não pode ser livre. Permanece cativo. De quem? De ninguém. Apenas da própria luta. Lutar, lutar e lutar, sem solução e sem fim, torna-se o destino dele.
É essa uma doutrina da liberdade? Não aparenta. Tanto Marx como Foucault criaram doutrinas da igualdade, mas que conduzem à ampliação demasiada e à perpetuação dos conflitos, não à pacificação. A não ser que creiamos que o “acaso da luta” trará paz à Terra. Por isso, os sistemas que nos legaram não são doutrinas da liberdade.
A partir do século XVIII, em muitas sociedades, a fé em Deus foi parcialmente substituída por utopias políticas como a de Marx. Quase todas as vezes em que isso ocorreu, uma versão de materialismo, teórico ou prático, operou a transição entre as duas. Mas Deus e a política são incomensuráveis. Deus é o transcendente, a política, o imanente. Deus é invisível, a política, visível. Deus é o atemporal; a política, o temporal. Deus, o incompreensível, a política é o que comprendemos sobre a sociedade. Não há elemento comum entre eles. Por isso, não podem ser aproximados e comparados. E, se não o podem, como é possível opô-los ou substituir um pelo outro? Toda e qualquer substituição operada, por esse meio, padecerá de falha lógica, que terá de ser cobrada.
No entanto, que fazem os materialismos modernos quase sem exceção? Comparam Deus e a política. Não contente, Marx ainda compara a libertação promovida por Deus com a igualdade alcançável por meio da política. À primeira chama ópio do povo, por desviar da outra. Como pode chamá-la ópio, a não ser comparando a libertação transcendente com a luta imanente, isto é, comparando o incomparável?
Em todos esses passos e a todo o tempo, o materialismo moderno incorre em inconsistências lógicas. Compara o incomparável.Troca objetos incomensuráveis. Mesmo assim, avançou grandemente no mundo. Por meio do marxismo, imposto à força em tantos lugares, o materialismo chegou a imperar na metade do globo, talvez. Porém, o quanto avançou retrocedeu. Não se pode afirmar que as coisas terminaram bem para ele, na medida em que os fatos o refutaram.
E, se o melhor dos materialismos teve esse fim, que dizer dos demais? E dos piores? Por outro lado, o valor científico nulo das metafísicas ficou ao mesmo tempo demonstrado. Assim se chegou à falência atual do conhecimento, àquela que sentimos e pressentimos na indisponibilidade de visões de mundo que nos ajudem a viver. Resta indagar se a falência permite propor novos tratamentos para a disjunção fundamental entre Deus e a matéria.

NOVISSIMUS DECALOGUS

Em fevereiro, Richard Dawkins resumiu o sentido da fé cristã nos seguintes Dez Arrazoados:
 "1) 'Se as mulheres quiserem aprender alguma coisa, interroguem em casa os seus maridos, pois é vergonhoso que as mulheres falem na igreja' [1 Co 14:35]. Faz sentido...
2) Isaías profetizou que uma jovem daria à luz um messias. A profecia foi mal traduzida para o grego, e a palavra jovem se tonrou virgem. Então, Jesus teve de nascer de uma virgem. Faz sentido...
3) Todo o mal do mundo decorre de uma serpente falante. Faz sentido...
4) Os 12 apóstolos de Jesus tinham pênis. Portanto, quem não tem pênis não pode ser sacerdote. Faz sentido...
5) A substância do vinho realmente se torna o sangue de um judeu do primeiro século. Só os acidentes são suco de uva fermentado. Faz sentido...
6) Adão nunca existiu, mas seu pecado foi tão imenso que o Criador do Universo em expansão precisou de um sacrifício de sangue para expiá-lo. Faz sentido...
7) Deus não encontrou um modo melhor de perdoar o pecado de Adão (que jamais existiu) do que executar o seu filho (ele próprio). Faz sentido...
8) Deus é simultaneamente ele próprio e seu filho (e um espírito). Faz sentido...
9) Uma bolacha, se abençoada por um sacerdote (cujos testículos devem estar intactos), se torna literalmente o corpo de Cristo. Faz sentido...
10) Joseph Ratzinger tornou-se infalível quando a fumaça subiu em 19/4/2005. Tornou-se de novo falível em 28/2/2013. Faz sentido..."

Esse o sentido que Dawkins encontra na fé cristã. Numa entrevista publicada 2ª feira, 01/04/2013, num grande jornal brasileiro, talvez em comemoração do "dia da mentira", ele reafirmou que, se não adoramos Thor, tampouco devemos adorar Deus. Vê-se por que as tábuas dos Dez Arrazoados substituem as da nova aliança, que o grande Moisés de Oxford partiu. Faz muito sentido...
Impressiona-me como Dawkins entende de sociedade. Num só capítulo de Deus, um delírio (São Paulo: Cia. das Letras, 2007), ele nos mostrou como a religião se originou. O resto de sua obra mostra como ela terminará. Ambas as explicações, a do alfa e a do ômega, a do princípio e a escatológica, dependem da ideia de evolução, que para Dawkins exclui a de criação. O inglês benemérito só se esquece de duas coisas: que todos os grupos humanos que sobreviveram, ao longo da evolução, descartaram a vida sem Deus e que os laços sociais dos grupos que reconheceram Deus, da família neolítica ao Estado pós-medieval, foram criados por meio da fé. Deus não é, por isso, um copinho plástico usado, que possa ser descartado sem mais. Ele integra o próprio sentido da sociedade.
Com o Novissimus Decalogus, o novo Darwin ergueu a taça de escárnio, no banquete do conhecimento. Claro que com toda a autoridade requerida para encerrá-lo. "Um anjo como tu quando se brinda/ Tem-se a missão cumprida e a festa finda/ Quebra-se a taça e não se bebe mais"!

O FIM DA ALMA

Na Idade Média, os europeus esperavam o fim repentino do mundo. Previram-no e se prepararam para ele, durante séculos, mas sempre encerraram o mundo uma só vez. Nunca liquidaram em parcelas o imenso empreendimento do braço humano.
Quanta coisa mudou, de lá para cá! O mundo se transfigurou, mas a consciência do grande destino, que nos atrai com a precisão de um relógio, permanece misteriosamente aninhada na alma do homem. Drummond descreve a expectativa do fim do mundo, numa metrópole contemporânea:

"Últimos pensamentos! últimos telegramas!
José, que colocava pronomes
Helena, que amava os homens
Sebastião, que se arruinava
Artur, que não dizia nada
embarcam para a eternidade
Tudo era irreparável
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada)
que o mundo ia acabar às 7 e 45"
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião - 10 Livros de Poesia. São Paulo: José Olympio. p. 30)

Porém, a criação mais recente, em matéria de fim do mundo, é o método Jack, o estripador. Na Idade Média, os homens esperavam o fim repentino do mundo todo; hoje, acabam com ele em partes. Tornou-se moda decretar o fim de partes da realidade conhecida há séculos. Deus, a fé, a religião, a metafísica, a ideologia, a utopia, a história, o Estado, foram todos liquidados, por este ou aquele pensador, em diferentes momentos históricos. Para não mencionar as classes sociais, o direito, o capitalismo, que são destinados à desgraça eterna de tempos em tempos, mas principalmente quando a crise atraca no cais ou se condensa nas nuvens de possibilidades dos pregões das bolsas.
Estamos realmente diante de um modo nunca antes visto de pôr termo ao mundo, de uma escatologia secular e por partes. Curioso: na Idade Média, era o mundo a acabar de uma vez; hoje, o mundo é só parte do que chega a termo. Antes dele, acabam com Deus e a sua maior criatura: a alma humana. Soou a trombeta: o homem não tem, nunca teve, alma. Forjou essa invenção para fundamentar a esperança ilusória de que continuará a existir depois da morte. "Tirem do homem a ilusão, e tirarão a sua esperança!” É o que proclamam.
Tal é a mistura de doutrinas céticas, no nosso tempo, que é preciso cuidado para discernir o que cada uma realmente propõe. No caso da alma humana, é preciso critério para entender que entidade espiritual cada doutrina aniquila com convicção que diríamos crédula se seus autores não a proclamassem ateia. Há dois modos principais, ambos clássicos, de entender a alma. O mais antigo a concebe como princípio dos movimentos do corpo. Nesse sentido amplo, a alma não é concebida como imortal, nem como oposta à matéria. É simplesmente o que explica o fato de um ser possuir a capacidade de mover-se ou de mudar independentemente de causas exteriores. Porém, no segundo sentido, a alma se opõe não só ao corpo que habita, mas a todos os corpos. É o que se opõe à matéria e que é considerado imortal, por se opor a ela. A obsessão moderna dirige-se contra essa segunda concepção. Dirige-se à alma imortal, já que a outra nunca foi concebida como indestrutível.
A defesa racional mais arguta da primeira concepção foi-nos legada por Aristóteles, no seu livro De anima. A da segunda talvez seja a de Santo Agostinho, no diálogo A grandeza da alma, que sustenta que esta é destituída de grandeza espacial, portanto é inextensa. Nas palavras do próprio Santo, "a alma não é nem extensa, nem larga, nem forte, nem possui alguma dessas propriedades que se costuma encontrar nas medidas dos corpos" (HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. In Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2008. p. 263).  O segundo modo de pensar a alma dominou amplamente as discussões até a época de Descartes.
No presente texto, cuidarei da última concepção, pois é a mais controvertida. De todos os argumentos apresentados em favor da existência da alma imortal, o mais inexpugnável talvez seja o que reconhece que "as faculdades superiores [do homem] podem compreender as subalternas, enquanto estas não podem jamais elevar-se ao nível das que lhes são superiores" (BOÉCIO. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 144). "Os sentidos não podem perceber nada além da matéria" (idem), porque o inferior não compreende o superior, nem o mais simples, o mais complexo.
O argumento assim apresentado por Boécio decorre da doutrina dos graus de atividade da alma, que Santo Agostinho desenvolveu (HIPONA, Agostinho de. Ob. cit. pp. 339-344). Os dois primeiros graus são aqueles pelos quais conhecemos os corpos. É em parte possível explicá-los com base no movimento dos próprios corpos. Porém, por ser mais simples, a atividade dos dois primeiros graus não explica a dos outros cinco, que tem de ser produzida por um espírito imaterial.
Essa fundamentação da existência de uma alma independente do corpo foi cada vez mais desafiada, nos tempos modernos, até que, em 2004, onze neurocientistas alemães publicaram um Manifesto sobre a realidade presente e futura da pesquisa do cérebro com "um sóbrio e diferenciado balanço de sua ciência [...] Foram conseguidos importantes avanços", nessa ciência, escreveram eles, "por um lado, ao nível mais elevado – foram pesquisadas as funções e interações das áreas cerebrais mais extensas [...] por outro lado, ao nível menos elevado, entendemos hoje amplamente os processos em nível das células e moléculas individuais [...] mas não em nível intermediário – onde sabemos pouquíssimo o que acontece [...] Atualmente, a pesquisa do cérebro não tem a oferecer sobre a ligação entre cérebro e espírito, entre consciência e sistema nervoso, nenhuma teoria que possa ser empiricamente verificada.” (KUNG, Hans. O princípio de todas as coisas – ciências naturais e religião. Petrópolis: Vozes, 2007. pp. 245-247).
Essa citação deveria bastar para exibir as dificuldades do dilema mente-corpo. No entanto, o consenso que se delineia, não só na Alemanha, mas em muitos outros países, no sentido de que não é possível se refutar ou provar a existência da alma, tem servido de estímulo para os esquartejadores do mundo se erguerem, tomarem a trombeta dourada e anunciarem, do eirado, a consumação da alma. De fato, é impossível mencionar uma a uma as invectivas que têm sido dirigidas aos defensores da ideia de que o dilema alma-corpo não está resolvido. Uma avalanche de artigos e manifestações com tal teor tem inundado a mídia, tornando difícil entender a própria questão controvertida.
E o pior é que a barafunda das opiniões não convence o leitor atento e informado de que o estado real da questão seja bem expresso pelos autores céticos. Para se ter noção dos progressos realmente efetuados, nesse campo, em 2012, o neurocientista Giulio Tononi, da Universidade Wisconsin-Madison, propôs uma teoria que tem sido saudada como "um passo gigantesco para a resolução final do problema mente-corpo” (KOCH, Christof. "Is conscience universal?" In Scientifc American. dez/2013). De acordo com ele, a consciência é idêntica ao que costumamos denominar informação integrada (TONONI, Giulio. “Integrated information theory of consciousness: na updated account”. In Archives italiennes de Biologie. Dez/2012, nº 4, pp. 293-329).
Podemos perguntar por que tem de ser assim. Tononi responde que a integração é uma característica de certos sistemas físicos e não de outros. Ela não pode ser quebrada, sem que a consciência desvaneça ao mesmo tempo. Não podemos nos forçar, por exemplo, a ver um objeto azul em preto e branco, pois a consciência é a integração da cor com a forma e muitas outras informações. Eliminar um aspecto da experiência integrada implica extinguir juntamente a consciência.
A integração não decorre do aumento da informação. Ainda que a memória de um computador excedesse a do cérebro humano, nenhuma informação dentro dele seria integrada. Para que a integração se produza, é necessário que cada informação seja, desde o início, conectada a outras. A qualidade integrada tem de estar presente, entre as menores informações, para que o sistema adquira autoconsciência. Do contrário, isso jamais acontecerá.
Em outras palavras, a consciência não é um fenômeno associado à organização essencial da matéria, vale dizer, ao que diferencia o material do imaterial, já que pode não ocorrer quando todos os elementos constitutivos da matéria estão presentes. É, antes, um fenômeno associado de modo imprevisto, porque não causal, a certos corpos materiais. Ao menos é essa a conclusão a que as pesquisas de Tononi conduzem.
Talvez seja útil acrescentar duas palavras sobre a questão mente-corpo, do ponto de vista teológico. Em boa parte do Antigo Testamento, a ideia predominante a respeito da alma é a de uma entidade inseparável do corpo, enquanto o homem vive, e da sepultura, depois que ele morre (Ez 26:20; Is 14:9-10; 26:14,19; 38:18; Jó 14:10-13). Isso não implica que a alma seja, por natureza, imortal. É uma espécie de sombra, uma entidade que não se aparta da matéria enquanto existe. Porém, já no Antigo Testamento, a alma existe em duas etapas: enquanto permanece unida ao corpo e depois da morte (1 Sm 28:19; 2 Sm 12:23).
Pouco antes do tempo de Jesus, porém, a seita judaica mais numerosa (os fariseus) passou a crer numa sobrevivência mais definida da alma à morte. O próprio Jesus professou convicção semelhante ao declarar: “Não temais os que podem matar o corpo, porém não a alma” (Mt 10:28), “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23:43) e coisas semelhantes. O apóstolo Paulo adotou ideia semelhante (2 Co 5:1-8; Fp 1:23).
Mas, apesar da introdução da ideia de imortalidade da alma, não há, no Novo Testamento, sinal explícito da separação radical, platônica, cartesiana, entre a alma e o corpo. A alma neotestamentária não se molda à concepção de alma imortal que se tornou clássica. Esta é a concepção platônico-agostiniana, que Descartes reafirmou, de alma inextensa e imortal. É muito importante que se trace essa distinção, pois a alma bíblica é herdeira da doutrina judaica da inseparabilidade entre corpo e alma, que não se altera entre Gênesis e Apocalipse.
Pode-se perguntar que evidência tem a ciência nas mãos para mostrar que a alma assim concebida não existe? A resposta mais coerente é nenhuma. A concepção platônico-agostiniana e cartesiana de alma, de fato, foi refutada. Não há lugar, na ciência, para a alma inextensa, sem relação com o espaço-tempo. Não há lugar para a alma radicalmente distinta do corpo. Mas o mesmo não ocorre com a noção judaicocristã de alma, que não foi refutada pelo conhecimento moderno.
As evidências geralmente alegadas para negar a existência da alma provam apenas a relação existente entre o sistema nervoso e a mente. A alma sempre aparece em conexão com o cérebro ou com o sistema nervoso. Mas isso é o que Tononi descreve como a emergência imprevista da alma, em certos sistemas físicos.
É importante notar que a proposta desse cientista invalida a descrição causal da relação mente-corpo. Infelizmente, essa descrição sempre foi e ainda é muito comum, mas nunca foi comprovada. A própria ideia de relação é a de uma sucessão de ações e reações entre dois ou mais seres. Normalmente, não é possível predizer, numa relação, qual ser praticará a ação, e qual, a reação. Só na relação causal, essa ordem parece predeterminada, já que a causa vem antes do efeito. David Hume, porém, mostrou que ela apenas parece vir antes, sem vir realmente. A predeterminação resulta do hábito mental de simplificar excessivamente a observação e generalizar para todos os acontecimentos o que se passa em alguns.
Quando parte dos cientistas afirma que o dilema mente-corpo não foi resolvido, portanto, um dos motivos é não sabermos o que vem antes e o que vem depois, no nosso pensar: o cérebro ou a alma. A afirmação de que o cérebro vem antes não é mais que ingênua, na medida em que considera causal uma relação mais complexa.
Consideremos o fenômeno da possessão demoníaca, que os céticos costumam reduzir à esquizofrenia ou a outras psicoses. Nessas doenças descritas pela Medicina, o indivíduo não perde a noção de si. O esquizofrênico ouve vozes, vê vultos e interage com eles, mas sabe que ele é quem ouve as vozes e vê os vultos. Isso é completamente claro tanto na observação como na literatura especializada.
O mesmo parece ocorrer nos outros transtornos e doenças psíquicas. Em todos eles, persiste o senso que o indivíduo doente possui de si. Não é diferente nos estados inconscientes não patológicos, como o sono e as alucinações causadas por drogas. Na possessão, porém, impera a sensação de ser outro ente. Temos, pois, evidências empíricas importantes de transtornos que não seguem o figurino das doenças psíquicas e parecem ter raízes muito mais profundas. Claro que a diferença pode perfeitamente corresponder à que existe entre o mental e o cerebral.
Posso afirmar tudo isso com a autoridade do neurologista ou do psicanalista? Não. Posso fazê-lo apenas como investigador atento da religião e do mundo. Mas essas duas investigações, que juntas moem a alma, também a afirmam. E o fazem empiricamente, na medida em que mostram que certos eventos psíquicos possuem uma natureza exclusiva e inteiramente diversa de tudo o que tem causa cerebral aparente.
A verdade das mortes que o homem contemporâneo anunciou e das ezéquias que celebrou tem sido a ressurreição. Os fins revelaram-se novos começos, e as realidades aniquiladas retornaram. Eis o mundo de novo povoado delas. A alma, porém, vai adiante do séquito dos ressurretos. E é impossível esconder o seu antigo sentido bíblico, já que no seu estandarte se lê: “Pecca fortiter, sed fortius fide et gaude in Christo” (“Peca com ardor, mas com mais ardor confia e regozija-te em Cristo”).