Se o Antigo Testamento é atravessado por um tema negativo, que sempre retorna, é sem dúvida a idolatria. De Gênesis a Malaquias, uma luta sem quartel contra os ídolos se desenrola, durante a qual a figura de Iahweh, o Deus único, assoma gradativamente ao primeiro plano da vida de Israel.
Porém, ao chegarmos no Novo Testamento, o pano cai, descerra-se novamente, e outro cenário se apresenta. Quando o mundo gentio é abordado, não é atribuída a mesma importância à idolatria, que passa a ser tratada quase como uma realidade desvanecente. A exceção que confirma a regra é o capítulo 1 de Romanos.
O motivo do desvanecimento da idolatria se encontra em passagens como o capítulo 6 de Baruc: “Como uma moça apaixonada por enfeites, eles tomam ouro e fabricam coroas para as cabeças de seus deuses. Acontece, porém, que os sacerdotes roubam de seus deuses o ouro e a prata para suas despesas particulares, e com essas riquezas presenteiam até as prostitutas do terraço. Eles ataviam com vestidos, como se fossem seres humanos, esses deuses de prata, ouro e madeira, os quais não se salvam a si próprios nem da ferrugem nem dos vermes. Tendo-os revestido de um manto de púrpura, devem espanar seus rostos por causa do pó do recinto, que se acumula sobre eles [...] Por isso é manifesto que não são deuses” (Br 6:8-11,14).
Nessa passagem, o culto aos ídolos é desmoralizado como mentira e fruto da ignorância. A ela se seguem um trecho tão trovejante quanto o primeiro e a mesma conclusão revestida de necessidade lógica: “De tudo isso concluireis que não são deuses: portanto, não os temais” (Br 6:22). E o texto prossegue, martelando argumentos contrários à idolatria pela terceira, a quarta até a nona vez. A cada novo argumento, segue-se a conclusão em estilo lógico de que os ídolos não devem ser temidos.
Essa insistência argumentativa nos lembra de que, em determinado momento histórico, a inexistência dos deuses de ouro, prata, madeira etc. tornou-se uma verdade lógica cristalina. Pode-se dizer até mesmo uma verdade científica equivalente ao que o heliocentrismo de Galileu, as leis de Newton e outras descobertas vieram a ser mais tarde. De Israel, a verdade a respeito dos ídolos se disseminou pelo mundo romano.
O progresso da fé cristã, entre os séculos I e IV, foi o resultado lógico do impressionante eclipse dos deuses ocorrido sob influência da Diáspora hebraica. Foi o lado positivo dele: os deuses foram desmascarados como mentiras e imposturas, o Deus cristão foi crido como verdade. Pode-se, pois, concluir que a evangelização do mundo romano foi a afirmação da verdade sobre Deus.
Tudo isso se deu, enquanto a igreja cristã se firmava no mundo. No contexto desse amplo movimento, práticas hoje ligadas à idolatria, como a oração aos santos, o uso de imagens no culto e a veneração de relíquias, não foram consideradas reaparições daquele pecado. É possível entender por quê. Seu sentido era outro. Era impensável que a igreja, instrumento do triunfo de Deus sobre os ídolos, recaísse na idolatria após a ter combatido com tanto denodo. De sorte que a veneração de relíquias e outras práticas tiveram mais o sentido de superstições que o de idolatria.
Parte importante da decadência da igreja, nos séculos seguintes, deveu-se à substituição da palavra de Deus não exatamente por ídolos, mas por superstições. Calvino expôs muito bem o resultado a que essa situação conduziu: “No dia atual, a dissimulação dos [católicos] romanistas é a mesma que foi utilizada pelos judeus, quando os profetas do Senhor os acusaram de cegueira, impiedade e idolatria. Pois, assim como os judeus se vangloriavam do templo, das cerimônias e do sacerdócio, por meio dos quais pensavam que a Igreja era reconhecida, os romanistas [...] fazem de conta que Deus está tão associado a pessoas, lugares e observâncias exteriores [superstições] que permanece com aqueles que apenas trazem o seu nome e a aparência de Igreja” (CALVINO, Jean. Institutes of the Christian religion. In Great books of the western world. Vol. 20, Book Fourth, Chapter II, 3. p. 342).
Embora Calvino tenha usado a palavra idolatria para definir o problema que descreveu, se reconhecermos a diferença existente entre idolatria e superstição, verificaremos que ele se referiu à última. Com o desaparecimento da palavra de Deus do cotidiano das pessoas e do culto da Igreja, na Idade Média, Deus foi de fato substituído por superstições. A advertência de Jeremias cumpriu-se: “Não confieis em palavras falsas, dizendo: Templo do Senhor, templo do Senhor, templo do Senhor é este” (Jr 7:4). Com essas palavras, o profeta não deplorou o culto a ídolos, mas o apego supersticioso a coisas divinas, como o Templo de Jerusalém. Não é preciso acrescentar que a superstição da Igreja medieval cumpriu suas palavras.
Essa crise sem precedentes, na História da Igreja, encontrou na Reforma do décimo-sexto século uma reação contundente. E porque a crise foi sem precedentes, a Reforma então iniciada veio a constituir o momento áureo, a maior revolução da História da Igreja, comparada à qual o Cisma do século XI parece quase sem consequências. Não é exagero afirmar que a Reforma, enquanto movimento protestante e também católico, sobrepujou em glória a própria igreja dos primeiros quatro séculos, como o profeta Ageu sugeriu ao dizer que “a glória desta última casa será maior do que a da primeira, diz o Senhor dos Exércitos” (Ag 2:9).
Calvino chegou ao ponto de considerar que a Igreja medieval foi destituída de Cristo, e o Papa se tornou Anticristo. A julgar pela época em que isso foi afirmado, ele não estava longe da verdade, pois a Igreja realmente se havia corrompido. Muitos católicos não pactuavam com os erros então vicejantes e se esforçavam para manter-se à parte deles, mas não podemos julgar a Igreja pelas pessoas que pertenciam a ela. Só a podemos julgar pelo que ela era: uma instituição em estado deplorável.
A verdade sobre Deus é o reverso da idolatria e da superstição que produziram a corrupção de Israel e da igreja. É o lado esplendoroso da revelação, ao qual se opõe a face sombria daqueles pecados. Nos tempos do Antigo Testamento, a idolatria prevaleceu no mundo. Entre os séculos IX e XVI, a superstição campeou. A Reforma da igreja existe para fazer triunfar a verdade.
Porém, assim como a luta contra a idolatria e a superstição teve os seus desafios, a propagação da verdade de Deus apresenta os seus próprios. E não são pouco formidáveis. O principal parece ser o estreitamento da verdade. Hoje, a idolatria e a superstição recuaram. Porém, a verdade de Deus estreitou-se em razão do purismo e do literalismo bíblico, principalmente no meio protestante.
Jesus disse: “A tua palavra é a verdade” (Jo 17:17). Com o passar do tempo, entendi que a verdade que ele mencionou não resulta de uma redução, como a que o Protestantismo produziu. A verdade se expande na História. Por isso, para obtê-la, é preciso estar aberto à sua expansão.
A igreja é depositária da expansão da verdade, pela multiplicação das linguagens que a exprimem. Por linguagem, não quero dizer somente idiomas, mas modos de pensamento e expressão. Uma das linguagens mais importantes em que a revelação se traduziu, ao longo da História, foi a da Filosofia. A tal ponto adiantou-se a tradução das verdades cristãs nessa particular linguagem que algumas se tornaram quase inseparáveis das categorias filosóficas utilizadas para exprimi-las. É o caso da doutrina bíblica da Trindade, segundo a qual o Pai, o Filho e o Espírito são três pessoas com uma só substância.
A tradução filosófica da verdade de Deus começa a se descortinar nas Epístolas de Paulo, que pressupõem fortemente as evidências da existência de Deus defendidas por filósofos como os platônicos. De fato, a convicção com que Paulo escreve não indica que possuísse uma fé cega em Deus, mas uma compreensão racional senão de todas as coisas divinas, ao menos da sua existência. A essa compreensão a fé do apóstolo estava indissoluvelmente associada.
É verdade que Paulo não se aprofunda nas evidências da existência de Deus, ao mencionar o conhecimento que os gentios tinham dele, em Romanos 1, mas não o faz exatamente por considerá-las assentadas e inquestionáveis. Para que gastar tempo com algo tão bem estabelecido? Mesmo assim, o apóstolo usa e supõe, todo o tempo, aquelas evidências. Quando diz, por exemplo, que as coisas invisíveis de Deus são “vistas no entendimento” (nóumena katorátai), recorre a uma ideia filosófica muito conhecida. Portanto, ou inventa aquela ideia ou a toma emprestada da Filosofia. Parece-me que a toma, sim, emprestada.
Esse é um exemplo de ideia filosófica no Novo Testamento. Há tantos outros que a tarefa de separar a doutrina cristã de uma orientação filosófica se afigura impossível. Embora uma parte dos primeiros teólogos cristãos aceitasse a Filosofia grega e outra parte não, os que a rejeitavam de maneira mais radical também empregavam ideias filosóficas. É o caso de Tertuliano, que combateu ferozmente a recepção da Filosofia grega pelo cristianismo, mas adotou e defendeu ideias estoicas como a materialidade da alma (TERTULIANO. La penitencia. III, 3. Madrid, Ciudad Nueva, 2011. p. 99).
Não há como entender posturas quais a de Tertuliano, sem admitir a influência grega que refletem. Por isso, o combate que aquele autor ofereceu à Filosofia não era, de maneira alguma, uma forma de obscurantismo ou de antirracionalismo, pois, para ele, “Deus, Criador de tudo, não previu, dispôs ou ordenou coisa alguma sem a razão. Quis, ao contrário, que nada fosse tratado e entendido sem ela. Por conseguinte, é inevitável que os que ignoram a Deus ignorem também a razão” (idem. I, 3, p. 83).
Assim, a Teologia cristã se delineou e continuou a delinear-se, nos séculos posteriores a Tertuliano. Em todas as suas etapas, ela manteve estreita relação com o pensamento filosófico, que lhe serviu de linguagem. Em certo momento, a própria divisão dos teólogos e doutores da igreja num partido que aceitava a Filosofia e outro que não a aceitava deixou de existir. Um consenso universal a substituiu pela aliança da Teologia com a Filosofia.
A doutrina católica, como a conhecemos hoje, formou-se sob essa aliança. Depende, pois, claramente, da Filosofia. E, embora não se refira a uma aliança com ela, a encíclica de João Paulo II, Fides et ratio, adota essa ideia implicitamente,ao afirmar a existência de “conhecimentos filosóficos cuja presença é constante na história do pensamento. Pense-se, só como exemplo, nos princípios de não-contradição, finalidade, causalidade, e ainda na concepção da pessoa como sujeito livre e inteligente” (JOÃO PAULO II. Fides et ratio. 7ª ed., São Paulo: Loyola, 1999. nº 4. p. 7).
Esse modo de fazer Teologia prende-se ao significado original da palavra. Nos primeiros séculos, “a designação mesma de teologia e a sua concepção como discurso racional sobre Deus ainda estavam ligadas à sua origem grega. Na filosofia aristotélica, por exemplo, o termo designava a parte mais nobre e o verdadeiro apogeu do discurso filosófico” (idem. nº 39, p. 31). Era impossível usar a palavra Teologia nesse sentido e não desenvolver a disciplina que ela designava em conexão com a Filosofia.
Só o Protestantismo apartou-se desse modo de fazer Teologia. Só ele abandonou a Filosofia, quase sempre com a desculpa de que é impura ou inútil. Como soa revolucionária e atraente essa acusação! Como soa inteligente e sobranceira! Mas como é fácil e vazia! Na verdade, a Filosofia é tão impura quanto a língua portuguesa ou o inglês. Portanto, a posição protestante a respeito dela, o desprezo que lhe votou, não passa de lamentável exagero, engano, falsificação doutrinária e pretensão.
Ao separar a Teologia da Filosofia e de todos os outros saberes, o Protestantismo acabou por perder-se na ideia de que a revelação é um processo de redução à Bíblia interpretada de modo cada vez mais literal. A trajetória das Igrejas Protestantes, na História, o mostram de modo inequívoco. Da Bíblia como fonte única da verdade (sola Scriptura), os protestantes passaram rapidamente à interpretação literal dela. A verdade não poderia ser mais contrária a essa particular trajetória, já que a revelação, como a Bíblia nos apresenta, é o oposto de uma redução: é a expansão da palavra de Deus ao longo dos séculos.
Portanto, se a missão da igreja é proclamar a revelação ao mundo, necessário se torna corrigirmos o erro consistente no estreitamento da verdade. Embora os reformadores interpretassem a Bíblia, com base nela própria, o desenvolvimento da Teologia sem intercâmbio com outros saberes lhes é estranho. Nem Lutero, nem Melanchton, nem Calvino, nem qualquer outro grande teólogo da Reforma, no século XVI, entenderam o sola Scriptura da maneira absurda e reducionista de hoje. Por que insistiremos nela? Por que continuaremos a recolher os frutos mortíferos desse estreitamento?