segunda-feira, 6 de maio de 2013

O Sacerdócio Integral

Por muitos séculos, a questão sobre quem é consagrado sacerdote tem suscitado contendas. Quando se leva em conta que, em Êxodo 19, Deus afirmou que cada israelita devia ser um sacerdote, o problema se agrava, pois a diferença tradicional entre clérigo e leigo parece perder todo sentido. Porém, como o estado de solteiro se define em oposição ao de casado, o de sacerdote deve-se opor a outro. E, se o povo de Deus inteiro é formado por sacerdotes, quem hão de ser os leigos? A resposta a esse intrigante questionamento parece ser as pessoas situadas fora do povo de Deus.
Se for assim, o propósito de Deus revelado em Êxodo 19 não incluía apenas os israelitas, mas outras nações, em favor das quais eles deviam ministrar como sacerdotes. É um erro pensar que Deus separou os israelitas, de modo a cortar todo vínculo entre eles e as nações. O chamamento de Israel foi, sim, uma separação. Porém, apenas na medida em que Deus o investiu num estado que o restante dos povos não possuía, a saber: o sacerdotal. A investidura, contudo, não envolveu uma separação total, pois o estado de sacerdote devia ser exercido em prol das nações.
Tudo isso está implícito em Êxodo 19. Se Deus fez de Israel um reino de sacerdotes, outros povos deviam receber o seu ministério. Isso corresponde muito de perto à evangelização mundial e à implantação da igreja no mundo. Pode-se até afirmar que, reveladas em Êxodo, a evangelização e a implantação se materializaram no Novo Testamento, pelo amplo desenvolvimento do sacerdócio universal.
O estado sacerdotal e o laico podem ser, pois, entendidos como regimes de vida. As pessoas inseridas no primeiro têm obrigações práticas muito bem definidas em relação a Deus. Vivem para ele, tanto por lhe terem sido consagradas como por força das atividades cotidianas que desempenham. Já o estado laico também se define em relação a Deus, pois os leigos recebem as dispensações divinas que os sacerdotes lhes administram. No entanto, o regime de vida e o cotidiano deles são totalmente outros, pois se desenvolvem em contextos seculares, por meio de tarefas comuns.
O mesmo livro bíblico (Êxodo) que introduz o sacerdócio universal institui, porém, outro denominado levítico. Nesse segundo sacerdócio, somente a tribo de Levi toma parte. Ele tampouco se exerce em favor das nações, mas do restante das tribos de Israel. Por esses motivos, podemos denominá-lo ministério particular.
E, assim como observamos o sacerdócio universal realizado nas páginas do Novo Testamento, vemos também o ministério particular. O estado espiritual de uma minoria que ministra pela maior parte do povo de Deus também está no Novo Testamento. Quem vive nesse estado? Principalmente os presbíteros e os diáconos. Da maneira como os levitas receberam a incumbência de cuidar do culto a Deus, em Jerusalém, aos presbíteros e diáconos cabe o cuidado do culto, onde quer que uma igreja se reúna continuamente. E tal qual os levitas tiravam seu sustento das doações do restante do povo, os presbíteros que presidem bem são dignos de receber honorários. É o que nos diz 1ª a Timóteo 5:17: “Devem ser considerados merecedores de dobrados honorários os presbíteros que presidem bem, com especialidade os que se afadigam na palavra e no ensino”.
O termo traduzido honorários também significa honra. Porém, o verso seguinte mostra que o sentido correto do texto é o de remuneração material. 1ª a Timóteo 5:18 afirma: “Pois a Escritura declara: Não amordaces o boi, quando pisa o grão. E ainda: O trabalhador é digno do seu salário”. A palavra pois indica que o que se segue está relacionado ao que antes foi dito. É a justificativa e o fundamento do versículo anterior. Portanto, em conjunto, os dois versos nos comunicam que os presbíteros devem receber honorários, como o boi recebe alimento, e o trabalhador, salário.
O boi não se alimenta de honra, e o trabalhador não é pago com palavras. Do mesmo modo, o presbítero recebe honorários, além de honra.Verdade é que o boi não deve receber comida a ponto de engordar, pois isso diminuirá sua capacidade de trabalho. O obreiro tampouco necessita de um salário que o enriqueça ou o presbítero, de honorários muito elevados. Nos três casos, os proventos devem bastar para o sustento digno.
Já dos diáconos não se diz o mesmo. A impressão que se tem é de que não eram ou, ao menos, não eram sempre remunerados. Mas não há uma proibição de que isso aconteça. Tudo deve depender da quantidade de trabalho envolvida e, é claro, da livre vontade da igreja ede seus trabalhadores.
Não nos podemos esquecer de que, embora constituídas por gentios e judeus, as igrejas do primeiro século haviam saído da sinagoga judaica. Por isso, não raro, imitavam-lhe as práticas. O ensino mencionado no versículo 17, por exemplo, é comparável ao que era ministrado sobre as Escrituras, aos sábados, nas sinagogas (Mc 6:2). E a “palavra” era o equivalente das pregações (discursos) com objetivo de exortação que se faziam no mesmo local (At 13:15). Portanto, os presbíteros podem bem equivaler aos presidentes, e os diáconos, aos assistentes das sinagogas.
Os presbíteros e diáconos são líderes e autoridades na igreja? Sim, mas estritamente nas tarefas que exercem. O presbítero preside, com autoridade, as reuniões públicas da igreja, e os diáconos possuem autoridade para auxiliá-los em tudo o que for necessário a esse mister. Porém, não devem exercer ascendência em outros assuntos. Eles não possuem autoridade judiciária, administrativa ou mesmo espiritual sobre as famílias cristãs. Sua ascendência sobre as finanças e assuntos administrativos da igreja também depende de delegação dela. É o que se depreende do Novo Testamento. Quando repreendeu os coríntios por litigarem nas cortes romanas, por exemplo, Paulo lhes disse: “Não há, porventura, nem ao menos um sábio entre vós, que possa julgar no meio da irmandade?” (1 Co 6:5). Não disse “um presbítero”, mas “um sábio”. E, quando julgou o praticante de incesto da mesma cidade, o apóstolo decidiu “que o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás para a destruição da carne” (1 Co 5:3-5). Não disse “reunidos os presbíteros e o meu espírito”, mas “vós [a igreja] e o meu espírito”. Jesus tampouco ordenou que, após termos advertido o pecador impenitente, o disséssemos a um ou dois presbíteros, mas a “uma ou duas pessoas” e depois “à igreja” (Mt 18:16-17). Tudo indica que a autoridade de julgar e a de exercer autoridade em outros assuntos não estava investida nos presbíteros, mas apenas a de presidir o culto (no sentido amplo do termo).
Graças ao cuidado de Lucas, somos capazes de entender, com certa precisão, as relações entre a sinagoga e a igreja cristã. Aquela possuía seus chefes ou principais, que presidiam as atividades ali desenvolvidas. É o que Lucas 8:41 nos informa: “Veio [a Jesus] um homem chamado Jairo, que era chefe da sinagoga” (Lc 8:41). Atos 13:15 confirma: “Depois da leitura da lei e dos profetas, os chefes da sinagoga mandaram dizer-lhes: Irmãos, se tendes alguma palavra de exortação para o povo, dizei-a”. Esses chefes, por sua vez, possuíam assistentes, como se vê na passagem em que Jesus ministra em Nazaré: “Tendo fechado o livro, devolveu-o ao assistente e sentou-se; e todos na sinagoga tinham os olhos fitos nele” (Lc 4:20).
Ou os presbíteros e os diáconos da igreja primitiva assumiram funções semelhantes às dos chefes e seus auxiliares, na sinagoga, por pura coincidência, ou a sua constituição inspirou-se no que ocorria entre os judeus. Claro que as funções judaicas foram modificadas, ao serem utilizadas pelos cristãos. O nome presbítero já o demonstra. Ao adotá-lo, os cristãos evitaram reforçar a proeminência exterior que os chefes das sinagogas possuíam. Preferiram assentar a liderança dos presbíteros na experiência de vida. Por isso os denominaram anciãos. Como anciãos, os presbíteros presidiam o culto da igreja, com base na sua capacidade de aconselhar e orientar os mais novos. No entanto, os paralelos entre a sinagoga e a igreja permanecem inegáveis.
Em resumo, os primeiros cristãos não se limitaram a atribuir o ministério particular aos presbíteros e diáconos. Com ênfase ainda maior, atribuíram também o universal a todos os membros da igreja. E, como no Antigo Testamento, os profetas tinham sido os representantes principais desse último sacerdócio, na igreja primitiva vemos um Pedro, um João, um Paulo, um Tiago desempenharem exatamente a mesma função. Os apóstolos foram profetas especiais, que receberam a palavra direta do Filho de Deus encarnado, por um longo tempo, e a proclamaram. Por isso, a palavra procedente deles, embora conservada por outros e apenas depois escrita, tem a mesma autoridade do restante das Sagradas Escrituras.
A própria Bíblia, aliás, é um produto do sacerdócio universal, muito mais que do ministério particular. Nela, há poucas palavras de sacerdotes levitas. Quase tudo o que foi registrado é ou decorre da palavra profética. Vale lembrar o testemunho de Flávio Josefo de que os judeus continuaram a registrar os seus acontecimentos, depois do período narrado no Antigo Testamento, isto é, “de Artaxerxes [século IV a. C.] até os nossos dias [século I d. C.], mas como não se teve, como antes, uma sequência de profetas não se lhes dá o mesmo crédito” (JOSEFO, Flávio. Resposta de Flávio Josefo a Ápio. Livro Primeiro, Cap. 2. In História dos Hebreus – obra completa. 5ª ed., Rio de Janeiro, 1999. p. 712). Faltando profetas, faltam as próprias Escrituras.
Não pode ser diferente, em princípio, no tempo atual. A presidência do culto cristão compete aos presbíteros, aos quais os diáconos prestam apoio. Assim se desempenha o ministério particular. Já o ministério da palavra, em sentido amplo, tanto no culto como fora dele, é exercido mediante o sacerdócio universal, pelos profetas e por todo o povo.
Não podemos esquecer as palavras de Moisés a Josué, quando este lhe disse para proibir que Eldade e Medade profetizassem: “Tens tu ciúme por mim? Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu Espírito!” (Nm 11:26-29). Séculos depois, Joel afirmou que isso não continuaria a ser apenas um desejo: “Acontecerá que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões” (Jl 2:28).
Tudo isso ocorreu, como bem temos conhecimento. O povo de Deus se tornou profeta, quando o Espírito de Cristo foi derramado sobre ele, no grande dia de Pentecoste. Mesmo assim, continuam a existir profetas fortes e fracos, muito experimentados e menos experientes. Os fortes devem corresponder aos filhos, e os fracos, às filhas a que Joel se referiu. Os experientes talvez sejam os velhos, e os inexperientes, os jovens da profecia. O que bem mostra que continuam a existir nuanças no ministério profético, como em todos os tempos.
Vemos que os dois sacerdócios estão tão presentes no tempo atual quanto no Antigo Testamento. E, então, que lugar resta aos leigos? Na igreja, nenhum. Nela, só há sacerdotes universais. Lutero negou, com todo direito, que os presbíteros e diáconos do Novo Testamento sejam verdadeiros sacerdotes.
Para encontrar verdadeiros leigos, portanto, será preciso transpor os limites da igreja. Verdade é que há cristãos que não receberam as ordens (clericais). Mas não os podemos denominar leigos, pois isso viola o princípio de que todos, na igreja, receberam o depósito da palavra e têm a incumbência de proclamá-la.
Jesus referiu-se a isso, na parábola dos talentos. Disse que um senhor deu cinco talentos a um servo, a outro deu dois e a outro, um. Em seguida, partiu para um lugar distante. O servo que recebeu cinco foi logo negociar e ganhou outros cinco. O que recebeu dois fez o mesmo e obteve outros dois. Porém, o que tinha só um talento escondeu-o numa cova. Quando o senhor voltou, os dois primeiros servos foram recompensados pelo seu procedimento. O que tinha um talento, então, o desenterrou e disse ao senhor: “Aqui tens o que é teu”. Mas o senhor mandou que o talento desse homem fosse dado ao que tinha dez.
Talentos são medidas da palavra de Deus, que Cristo nos concedeu. Todos somos sacerdotes, porém uns de nós multiplicam o depósito que lhes foi confiado, outros não. Todos somos sacerdotes, mas uns exercem a sua função convenientemente, outros não. O modo de ser fiel é multiplicar a palavra, é fazer avançar a revelação, por meio dela própria. É multiplicar os talentos.
Sob forte impressão desse ensino, há mais de vinte anos, apontei a importância de desenvolvermos (e não apenas possuirmos) o sacerdócio universal. Escrevi: “Sacerdócio universal é aquele em que cada cristão é um ministro, portanto exerce o seu ministério em alguma medida. Sacerdócio integral é aquele no qual cada um exerce o seu ministério sem entraves e de maneira plena” (Um sonho de comunhão. Cap. 2, item 4. www.lobaomorais.blogspot.com.br, novembro/2011). Seria o mesmo ter dito que o sacerdócio integral é aquele em que os talentos são multiplicados. A palavra de Deus não é estanque. Ela se expande incessantemente e o faz por nosso intermédio.
É um erro esperar que a parte maior da expansão da palavra virá do ministério particular dos presbíteros e dos diáconos. Não haverá de ser assim. Do modo como, no Antigo Testamento, a palavra de Deus que veio a compor as Escrituras não procedeu dos levitas, nem dos maiorais das sinagogas, mas dos profetas, no tempo atual a multiplicação dos talentos cabe a cada um de nós. Ela será levada a efeito pelos que mais a buscarem.
No entanto, aos levitas eram atribuídos os dízimos, não aos profetas. Que cabia a estes como sustento? E aos profetas de hoje? De que parte hão de extrair a sua subsistência, se ministram a palavra de Deus e não recebem dízimos? O vento a trará? O vento do Espírito, sim. Porém, Paulo acrescenta, e é significativo que o faça aos presbíteros de Éfeso: “De ninguém cobicei prata, nem ouro, nem vestes; vós mesmos sabeis que estas mãos serviram para o que me era necessário a mim e aos que estavam comigo” (At 20:33-34).
Essa é a base econômica do estado do sacerdócio universal. “Sabeis também vós, ó filipenses, que no início do evangelho, quando parti da Macedônia, nenhuma igreja se associou comigo, no tocante a dar e receber, senão unicamente vós outros; porque até para Tessalônica mandates não somente uma vez, mas duas, o bastante para as minhas necessidades. Não que eu procure o donativo, mas o que me interessa é o fruto que aumente o vosso crédito. Recebi tudo, e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte, como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus” (Fp 4:15-18).
É quase inacreditável que um homem sobre a Terra, após ter levado o mais rico tesouro ao mundo, em seu tempo, com todos os riscos pensáveis, haja pronunciado essas palavras e vivido esse desprendimento. A declaração de Paulo nos faz pensar se a Deus aprouve retirar meios materiais aos ministros que mais têm talentos, para que mourejem dobrado a fim de ganhar uns e outros. A fim de que a honra e não só o honorário seja, ao final, merecida por não sei quanto labor!