Os escritos Um sonho de comunhão e A unidade da igreja receberam severas críticas de líderes das Igrejas Locais, no Brasil, que dele tomaram conhecimento em 1991. Três anos depois, quando me desliguei do movimento, sem que eu tivesse participado de qualquer discussão acalorada do escrito anterior, uma carta foi enviada às Igrejas do país inteiro, advertindo seus membros contra o perigo de manterem contato comigo. Conhecia muitos dos destinatários dela, mas a maior parte não.
Canção de protesto é a resposta que publiquei, na ocasião (1994), às acusações formuladas na carta. Por conter ideias e pontos de fé que ainda hoje interessam ao público cristão, dou-o ao conhecimento geral. Ao texto original foram acrescentados os trechos assinalados em itálico. As reticências entre colchetes, no início, marcam o ponto do texto original em que o excerto ora publicado principia.
[...] Devo explicar que me afastei das reuniões da Igreja por não poder adotar posição dúplice, sendo um interiormente e testemunhando outra coisa pelo meu comportamento. Por dentro, de fato, sou contra diversos ensinos e práticas das Igrejas Locais. Senti-me cobrado, diante de Deus, a dar testemunho disso com a minha conduta, por entender que a vida há de ser semelhante à fé.
Há um perigo evidente demais nos ensinos e práticas desviados a que me referi para que, pela combinação fatal da minha presença com o meu silêncio, viesse eu a apoiá-los e recomendá-los aos irmãos. O Senhor me levou a ver, de modo forte demais, que a igreja não se edifica com o fermento da duplicidade. Mais do que isso: trata-se de não me acomodar onde meus conceitos religiosos me dizem que estou para sempre seguro, mas de dar testemunho de minha fé fora de todo clima doentio e hostil à livre comunhão.
Afinal, se entre nós se achou coragem para negar algo tão básico quanto a coerência entre fé e vida, não terá sido por medo da verdade? E o medo, não é adversário do amor? Não há outro motivo por que não amamos, a não ser nosso medo. “Aquele que teme não está aperfeiçoado no amor” (1 Jo 4:18). O caminho do amor não é o do medo; a cidade que o amor edifica não é a que o medo constroi. Dessa cidade, pela enumeração da palavra santa, os primeiros a ficarem fora serão os covardes. “Vi novo céu e nova terra [...] Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém [...] Quanto, porém, aos covardes, aos abomináveis [...] a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre” (Ap 21:1-2, 7-8).
Alguns querem fazer crer que pôr em xeque pelas Escrituras o fundamento do que praticamos é perigoso. Querem que creiamos a terrível rebelião existente em alguém ser convencido pela Bíblia da não adequação de um ensino ou de uma prática. Tal atitude, porém, só inspira um sentimento de medo, que é o oposto do amor de Deus. Nada é edificado com medo. Só o amor pode erguer a cidade de Deus. É preciso crê-lo. É preciso buscá-lo. Não ter medo de buscar o Senhor, enquanto se pode achar (Is 55:5).
O amor não se cansa. Não diz a palavra que ele tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (1 Co 13:7)? Quando somos levados pelo amor, portanto, não permitimos que o medo dite secretamente o nosso comportamento. Não permitimos que ele se torne nosso senhor.
O medo constroi para si uma cidade rodeada de confortos e promessas de segurança. Mas esse não é o interesse do Senhor. Não é a glória de Deus. Não passa do medo do homem. Se erguermos a cabeça, veremos que Deus está do outro lado do mundo. Lá do outro lado, a cruz está erguida. Lá está o crucificado e ressurreto, bem como o Espírito, que, maravilhosamente e de modo incompreensível, sopra onde quer. Lá, no lugar onde não sabem de onde ele vem ou para onde vai (Jo 3:8). E nós tão certinhos! E nós tão estabelecidos! E nós aprisionados e aprisionando!
Irmãos, quando passei a considerar essas coisas, entendi que os nossos caminhos não são os caminhos de Deus, nem os nossos pensamentos, os seus pensamentos (Is 55:8). Nós queremos erguer uma prisão para Deus; Deus quer soprar como o vento e voar como a pomba. Sem que absolutamente saibamos de onde vem ou para onde vai.
Sabemos só que essa pomba é o mais dócil de todos os seres. Ela é amiga dos homens e quer achegar-se a eles. A pomba é o único pássaro que come na mão de uma pessoa que não conhece e cisca a centímetros dos pés de estranhos em movimento. Esse é o Espírito de Deus. Embora sem rumo previsível, a sua meiguice o conduz até onde moram esses oprimidos de coração que são os filhos dos homens. Por isso também, o Espírito é chamado Consolador. Ele existe para a tristeza, a opressão e para nada mais.
Quando agitamos os punhos em direção a ela, esbravejamos e vociferamos, a pomba se vai. Especialmente essa, cuja doçura e meiguice não compreendemos. Eis o mistério: o Espírito não faz o mal. Voa com a sua ternura para longe dos que o fazem. A sua terra não é a da violência dos homens. Tampouco o vento se fixa. Quando nos fixamos, ele se move. Assim também é todo o que é nascido do Espírito. O Espírito ama e busca, pois é livre do miserável grilhão do medo.
Se a família de Noé desembarcou no lugar do espanto, em que o corvo pousou, no Novo Testamento, a casa de Deus é edificada onde a pomba pode pousar, não na terra do medo. Em Hebreus 12, há dois montes: num, há um fogo palpável e ardente, trevas, tempestade, clangor de trombeta e palavras que ninguém pode ouvir e viver. O espetáculo do Novo Testamento, porém, se desenvolve no muito aprazível Monte Sião. Ali onde estão incontáveis hostes de anjos, os primogênitos cujos nomes se acham arrolados no céu e os espíritos dos justos aperfeiçoados. Ali onde também está Deus e onde se acha o Cordeiro, mediador da aliança de amor e de paz. Em uma palavra, ali onde se encontra o sangue que diz coisas mais elevadas que o de Abel, pois diz a absolvição de homicidas e deicidas.
Esse é o espetáculo do Novo Testamento. Suas páginas se abrem com uma cena inconcebível no velho Sinai: magos vindos do Oriente visitam o nascido rei dos judeus (Mt 2:1-12). No Sinai, era indiscutível que essa laia devia ser lapidada até a morte. Eram astrólogos, cultores de artes proibidas. Mas a nova aliança começa com eles, pois importa a Deus revelar seu caráter, insuspeitado dos séculos e das gerações. O Velho Testamento revelara que Deus é justiça; o Novo nos mostra que o Deus que é justiça também é amor! Mostra-nos que a justiça é a palavra intermediária de Deus; o amor, sua palavra final.
Será concebível um Deus em cuja genealogia estão mulheres de “reputação duvidosa” (Mt 1:1-17)? Será concebível um Deus que se faz seguir por homens armados de ferro e prontos a ferir com a espada (Lc 22:38,50)? Um Deus que, depois que todos haviam bebido até o vinho acabar, deu-lhes um vinho melhor para continuarem a beber (Jo 2:1-11)? Pensemos a sério nisso. Esse não é o Deus do terror, do juízo e da condenação. É o criador da amizade e do congraçamento, não um Baco, criador do vinho!
Infelizmente, alguns enfiaram na própria cabeça que os cristãos são grandes personalidades que, como tais, tratam de graves assuntos. Decidem a eternidade, jogam o destino do mundo, minuto após minuto. Por isso, as palavras que eles dizem assemelham-se a decretos infalíveis, e os seus atos carregam o peso da verdade ou do erro, da vida ou da morte do mundo inteiro.
Mas o Senhor da nova aliança não nos assemelha a tais. Pelo contrário, compara-nos a crianças e nos chama pequeninos. Sim, aos olhos da graça, o homem é um mimo, uma flor pequenina nos jardins do Senhor. Alguém que respira o amor e que não é capaz de grandes coisas, mas precisa de grandes coisas.
Lembro-me da oração de Agostinho: “Tu, Bem onipotente, que cuidas de cada um como se cuidasses apenas dele”! Esse é de fato Jesus. Esse é o Filho encarnado. A palavra agápe, amor em grego, vem de um radical que significa eleição. Com ela, o Novo Testamento refere-se ao indescritível. Deus é amor-eleição (1 Jo 4:8,16). Não eleição que deixa de lado alguém. Amar, para o homem, é cuidar. Para Deus, é cuidar de cada um “como se” ninguém mais existisse. Esse e só esse é o amor-eleição.
Deus não é capaz de abandonar uma pessoa ao amar outra. Tampouco nós devemos ser. Ele é grande demais para essa baixeza. Nós, por demais pequeninos para coisas tão grandes. De acordo com as palavras de Agostinho, o amor de Deus, sendo para todos, é para cada um como se fosse só para ele! Nada e ninguém é amado de qualquer maneira por ele. Cada qual é amado com a força de uma particular eleição. Deve também amar com a devoção inspirada por um predileto entre mil.
Fomos imersos em coisas tais: como não dizer que Deus nos arrebatou do velho Sinai, com as trevas e o fogo palpável? Não nos deixemos, então, reconduzir a eles. Somos filhos amados, crianças à luz da manhã, desprecavidas, mas protegidas.
Tenho um filhinho de dois anos. Cena sem par é vê-lo brincar com alegria. Nós, adultos, somos tão tristes! Mas as crianças, como guardam a alegria que a idade adulta perdeu! O modo como elas brincam está além de toda descrição. E, se crer é descansar, e descansar é brincar, nessas três coisas consiste o papel dos que temem a Deus.
As crianças não foram feitas só para mandarmos nelas. Nelas está incutido o mistério do reino de Deus. Wordsworth disse que o menino é o pai do homem. Mas, se o é, que fazemos a representar o papel de grandes? Por que nos fazemos passar por teólogos? Esbravejamos, vociferamos e eis-nos na esquina, a clamar por socorro.
Lutero escreveu sobre a primeira linha do Credo: “Coloco a minha confiança tão-somente no Deus invisível, incompreensível e único que criou o céu e a terra e que sozinho está acima de todas as criaturas. Por outro lado, não me apavoro com toda a maldade do diabo e de seus comparsas, porque o meu Deus está acima de todos eles. Creio em Deus, mesmo que eu seja abandonado ou perseguido por todas as pessoas”. Não é essa uma confiança infantil? Não é ela própria de crianças acompanhadas dos pais?
Ah, a esfuziante alegria da criança a brincar, sob os olhos de um pai! Pergunto ao meu coração o que nele se passa, quando medito na filiação de Deus. Não obtenho resposta. Só estremeço e me calo, ao pensar na linguagem nova do Evangelho, que nos ensina a chamar Deus Pai (Mt 6:9). Joachim Jeremias disse que Abba é a única palavra de oração utilizada por Jesus que não se encontra nas preces judaico-aramaicas. É, pois, o segredo de alcova do coração que se volta a Deus, sob a graça.
Nós, porém, por nossa conta e risco, fizemos da fé uma coisa de adultos. Até mesmo de adultos raros, de herois e gigantes. Julgamentos para cá, fardos pesados para lá. Quantos ainda mataremos para afirmar a fé pervertida de adultos? Quantos ainda faremos tombar por um zelo, que puxa da espada e cerra a Bíblia? Deus nunca ordenou tal coisa. Não o Deus da nova aliança.
Que somos, diante do Deus onipotente? Um bando de guris vadios, brincando à luz da misericórdia apenas recém renovada. Está bem: recebemos de Deus um ensino celeste, uma revelação elevada, mas nem por isso nos tornamos mais que crianças. Quando falamos de ensinos celestes e coisas elevadas, não conhecemos deles mais que um menino conhece da vida. O menino não sabe, somente ama. Ama seus pais, os outros meninos, os cachorros, os pássaros. Ama os brinquedos, e o que ganhou no dia de ontem ainda mais que os antigos. Seu mundo é de todo inofensivo. É um mundo de sonhos. Mas façamos caso sério de tudo isso, pois a Bíblia nos diz que os sonhos dos pequeninos, um dia, serão verdades. Um dia, a espada dará lugar ao brinquedo, as lidas, à diversão, a contenda, à amizade e ao desinteresse.
Pergunto mais ao meu coração que diferença há entre a fé e a meninice? No Evangelho se lê: “Da boca de pequeninos e crianças de peito tiraste perfeito louvor” (Mt 21:16). Que homem sábio, após cinquenta anos de prática, ousará afirmar que ergueu a Deus um só louvor perfeito? No entanto, Deus não receia pronunciar tal juízo dos pequeninos e até de crianças de peito. Essa é, pois, a adoração verdadeira, a que Jesus se referiu no diálogo com a samaritana. Esse é o culto dos pequeninos, não os conselhos de barões, que julgam tudo com base em nada.
Lembro-me da personagem de O pequeno príncipe. Pergunto-me se ela não é o fundo de todas as personagens da literatura: um garotinho que faz amizade com uma flor. A estória narra sua constante preocupação com que certo carneiro não faça mal à flor. De passagem por nosso planeta, o principezinho dialoga com um adulto imerso nas graves preocupações deste mundo louco. Todo o tempo, seu coração está posto em voltar ao planeta de origem para, também todo o tempo, vigiar o carneiro, a fim de que não maltrate a flor. O pensar todo o tempo em voltar antecipa o vigiar todo o tempo a sua flor. Ao fim do diálogo, o adulto compreende que o mais importante não são os seus aviões, as suas pontes ou as matemáticas em que se fundam, mas cuidar da flor contra as maquinações do carneiro.
Encontro melhor teologia nessas coisas que em tantos compêndios. Quanta letra e poeira e, ainda assim, quanto peso, quanto massacre espiritual! Dois mil anos levaram-nos para longe do menino e da flor. Da simplicidade e pureza devidas a Cristo(2 Co 11:3). “Deixai vir a mim os pequeninos e não os embaraceis” (Lc 18:16). “Se não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino de Deus” (Mt 18:3).
Eis a primeira reforma de que a igreja, há muito, tem necessidade. Não nos é possível ser muito, se nos falta o pouco. Por isso, os que se preocupam tanto com minhas prováveis ou improváveis manifestações deviam relaxar e divertir-se à luz da misericórdia apenas renovada. Deviam cuidar do dia enigmático que se chama hoje.
Este Lobão não quer devorar ovelha alguma. Para nada aproveita mistificar, à moda daqueles que, em nome de Deus, ataviavam os condenados por heresia com chifres, tridentes, roupas púrpuras e insígnias escabrosas. Não fizeram isso o bastante os autos de fé de séculos idos? Enfeites como esses emporcalham-nos a imagem: o reino de Deus está dentro nós (Lc 17:21).
Quantos querem que sirvamos a nossa geração com o nosso corpo, não com a nossa consciência! Querem que mantenhamos o nosso corpo em certo lugar, para que outros também mantenham os seus. Não lhes importa a consciência: ela é só um atavio. A imagem é o que importa: por isso a execram. Porém, a Bíblia nos ensina a lutar pelo jorro que brota da consciência. Esse é o seu testemunho a todos os tempos e contra todos os tempos.
É estreito o caminho da luta pela boa consciência. Largo e cômodo é o de servir a nossa geração com o nosso corpo. Fiquemos aqui ou ali, como dizem. Como Jesus na cruz, eles bradam diante desse ficar: é quanto basta, está consumado. Para eles, a revelação se abrange nessa mecânica. “Sigamos os outros”, é a regra de ouro. É Moisés, os profetas e os complementos. Confesso ter tentado muitas vezes obedecer-lhes. Em todas, senti-me mal. Tive náuseas. Lá pelas tantas, aprendi a pedir a Deus que nos salve desses arremedos.
Mesmo amando os que me acusam, não posso ceder ao que me propõem. Não os posso amar e fazer-lhes o mal. Não lhes posso dizer que a mentira é verdade, para que se enredem. Só posso continuar a ser aprendiz das coisas do Espírito e a clamar a Deus que meu corpo seja escravo da minha consciência, não o contrário.
Mas admitamos que, se for lá possível, eu tenha ainda mais vileza que meus detratores me atribuem. Nos abismos em que essas acusações me colocam, na tristeza que me inspiram, só posso encontrar o que fui, não o que sou. Só posso me recordar da exortação: “Para que te lembres, e te envergonhes, e nunca mais fale a tua boca soberbamente, por causa do teu opróbrio”. Mas, se então me lembro desse passado negro, ainda mais pesam no meu coração as palavras que esboçam minha condição atual: “quando eu te houver perdoado tudo quanto fizeste, diz o Senhor Deus” (Ez 16:62-63).
O fato de me lembrar dos extravios anteriores ao perdão de Deus não me torna culpado dos males posteriores que me atribuem. Desses males não me defendo, já que não há condenação para os que estão em Cristo Jesus (Rm 8:1). Por que me defenderia tão inutilmente? Não o farei, mesmo reconhecendo a dívida de amor que pesa contra mim em favor de todos vocês. É que o amor não se alegra com a injustiça, só se regozija com a verdade (1 Co 13:6). E não encontro justiça na causa de meus acusadores.
Prezados amigos: a obra de separar irmãos, por acusações apressadas, não vem de Deus. Deus nos vincula uns aos outros em Cristo (2 Co 1:21): como pode separar-nos? A desunião que afeta a nossa comunhão não pode proceder de Deus, que “seis coisas aborrece, e a sétima a sua alma abomina: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que trama projetos iníquos, pés que se apressam a correr para o mal, testemunha falsa que profere mentiras, e o que semeia contendas entre irmãos” (Pv 6:16-19).
Em suma, minha intenção com esta carta, que não teria sido escrita, não fosse a que a antecedeu, é demonstrar a necessidade de que a questão que surgiu seja tratada sem engrandecimento, mas de maneira responsável. Não basta abafar o assunto e dizer que está resolvido para sempre. Trata-se de consciências, não de interesses; de pessoas, não de obras. Que é a consciência, a não ser o coração diante de Deus e de mais ninguém? E, se ela é isso, abafar, distorcer, esmagar ou reprimir manifestações sinceras de consciência não é coisa de Deus, nem encerra legitimamente a questão levantada na carta que antecedeu a esta. Em assuntos de irmãos, é preciso ter comunhão. Não ameaçar, mas sentar e conversar.Proponho que o façamos logo, sem medo e em público, agora que trataram de tornar pública a questão entre nós.
"Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças"
(Carlos Drummond de Andrade)