A Bíblia contém paradoxos não resolvidos. Um deles é o fato de Deus ser três e um. Outro é a oposição entre a reconciliação universal, afirmada em Colossenses 1:20 e 1ª de João 2:2, e a redenção limitada, que se encontra em João 8:47, 10:26, Romanos 9:22, Atos 13:48 e Hebreus 2:16.
Uma das maneiras corretas de tratar paradoxos bíblicos é sustentar ambos os lados da contradição, sem pretender resolvê-la. É o que fazemos no tocante à doutrina revelada da Trindade. Outra maneira consiste em reduzir de algum modo o paradoxo, sem o porém o resolver. No caso da reconciliação universal e da redenção limitada, essa parece ser uma alternativa viável.
Em Colossenses 1:19-20, lemos: “Aprouve a Deus que nele residisse toda a plenitude, e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as cousas, quer sobre a terra, quer nos céus”. Estamos aqui diante de uma reconciliação, sem dúvida, universal. Porém, ela não é somente de pessoas, mas de pessoas e coisas, até mesmo de todas as coisas (ta pánta).
A palavra apokatallázai (reconciliasse) não tem, nesse verso, outro significado que o de passar da inimizade ou do aborrecimento à paz. Mas nem por isso devemos supor que os seres pacificados sejam racionais, pois uma “coisa” não é o mesmo que uma “pessoa”. Pode ser que "todas as coisas" signifique todos os seres irracionais, em oposição aos que não o são.
Os autores do Novo Testamento pertenciam a comunidades judaicas helenizadas. É verdade que o grau de helenização variava, de comunidade para comunidade. Era maior na Diáspora do que na Palestina. Na Terra Santa, era mais acentuado nos arredores de Jerusalém do que na Galileia. Porém, sobretudo os judeus letrados e cultos, como os autores do Novo Testamento, eram helenizados. E uma consequência da helenização parece ter sido certa adesão à doutrina platônica da dualidade entre espírito e matéria. De acordo com essa doutrina, o homem possui uma alma imaterial e um corpo material, como o Novo Testamento afirma em várias passagens. É notável que, neste, não se vislumbram traços muito nítidos da doutrina judaica disseminada por todo o Antigo Testamento, segundo a qual a alma morre juntamente com o corpo. Por isso, é possível que, em Colossenses 1:20, ta pánta signifique todas as coisas materiais, o que inclui (ou é o mesmo que) todas as irracionais, pois a razão reside na alma.
Com efeito, numa mente helenizada e influenciada por ideias platônicas, ta pánta, "todas as coisas", diferenciava-se implicitamente de todas as pessoas. Pessoas são almas, inteligências incorpóreas. Coisas são objetos materiais ou imateriais, portanto inclui os irracionais. Nesse sentido, as coisas reconciliadas com Deus, no céu e na terra, incluem o corpo físico dos homens, que como tal pode ser considerado objeto da reconciliação unilateral de Deus com a sua criação.
Chamo unilateral, porque nem todos os seres abrangidos por ela tinham contraído inimizade com Deus. Mesmo assim, em razão do pecado de Lúcifer, Deus aborrecera-se da sua criação. Esse aborrecimento pode ser comparado ao que o Criador sentiu, na época do Dilúvio, quando percebeu que “a terra estava corrompida à vista de Deus” (Gn 6:11). Pela mesma razão, os céus não eram e ainda "não são puros aos seus olhos” (Jó 15:15). A inundação catastrófica, que então ocorreu, de modo nenhum solucionou o problema, que prosseguiu e até se agravou. De sorte que o aborrecimento permaneceu até a reconciliação operada por Cristo na cruz.
A reconciliação universal é mencionada também em 1ª de João 2:2, que declara: “Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro”. Propiciação é o ato ou o sacrifício que se oferece para tornar alguém propício. Cristo se ofereceu em sacrifício para tornar Deus propício não apenas a alguns, mas a todos os homens, isto é, ao mundo inteiro.
É importante lembrar que a reconciliação unilateral não é meia reconciliação, mas uma reconciliação que se completa e aperfeiçoa por iniciativa apenas de Deus. Como já apontei, essa é um tratamento possível para o paradoxo da reconciliação universal e da reconciliação limitada.
Além da reconciliação unilateral, há outra, que podemos chamar bilateral. Romanos 1:30 também se refere ao aborrecimento do homem com Deus. Porém, não se trata da mesma relação de Colossenses 1:20. Este último verso trata do aborrecimento de Deus com a sua criação. O outro, do aborrecimento dos pecadores com Deus. Deus, aliás, não só se aborrece como se ira com os pecadores: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens” (Rm 1:18).
A reconciliação daqueles que, à diferença dos seres brutos, dos animais e dos seres humanos que fazem uso muito reduzido da razão, envolve os dois lados da relação com Deus e, por isso, é bilateral. Tanto os homens são “aborrecidos de Deus” (Rm 1:30) como Deus está aborrecido e irado com eles. Essa é uma situação gravíssima, que foi resolvida pela obra do Filho de Deus, posto que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões” (2 Co 5:19). A bilateralidade dessa reconciliação está expressa no verso seguinte, que conclama os coríntios a se reconciliarem com Deus: "Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus" (2 CO 5:20).
A reconciliação bilateral é limitada a alguns homens, de acordo com o plano que Deus concebeu. Ele predestinou alguns à vida eterna. Por isso, quando Paulo pregou em Antioquia da Pisídia, “creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13:48). Certos vasos de ira foram mesmo preparados para a perdição (Rm 9:22). De sorte que só os predestinados reconciliam-se com Deus de modo bilateral.
Temos, pois, duas reconciliações opostas, que produzem resultados também opostos. Cada partícula da criação irracional (ta pánta) é reconciliada com Deus. Isso não inclui só os corpos de certos homens, mas os de todos os homens. Já a reconciliação bilateral é limitada, assim como a redenção de Cristo.
Num dos lados do paradoxo, temos o universal, no outro, o que é limitado. De um lado, permanece o unilateral, de outro, o bilateral. E devemos deixar que assim seja. Devemos permitir que esse tanto de contradição se mantenha, relativamente à redenção limitada.
O calvinismo introduziu forte ênfase no caráter limitado da redenção e se pode afirmar que o fez por bons motivos. Nem todos os homens têm seus pecados redimidos, pois a redenção pressupõe a intervenção racional de dois lados, dos quais um opera o pecado, e o outro, o ato meritório. Isso e (permitam-me afirmar) só isso é redenção. E, embora o pecado esteja presente em todos os homens, o mérito de Jesus Cristo se estende somente a alguns. Porém, há uma reconciliação que é limitada.
Sempre me pareceu significativo que, ao escrever Romanos, Paulo tenha dedicado três capítulos para delinear a culpabilidade universal. Essa culpabilidade de fato existe, porque todos pecaram e isso conta diante de Deus. Todo o tempo, a Bíblia nos mostra que Deus não é um ser inerme, alguém que assiste ao desenrolar da História com indiferença e distanciamento olímpico.
Porém, o mesmo Paulo que demonstrou a culpabilidade universal, com a perícia com que um advogado defende a sua causa, recuou um passo, ao cotejar a recompensa dos justos com o castigo dos ímpios. Ele escreveu: “Deus dará a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, procuram glória, honra e incorruptibilidade; mas ira e indignação aos facciosos” (Rm 2:7-8). A recompensa será eterna, mas o apóstolo não afirmou que a punição também o será.
A Bíblia não o define. E não nos cabe criar a definição que ela omite. O que não foi revelado pertence ao território tremendo do mistério. Por isso, aos que se aprazem em citar todo momento o fogo eterno, é preciso lembrar o passo atrás de Paulo, sempre tão meticuloso ao definir seus ensinamentos em Romanos, porém omisso quanto à duração do castigo dos ímpios.
A culpa é universal. Portanto, o castigo recairá sobre todos os impenitentes. Mas é o castigo eterno? Alguns afirmarão que o é não por causa de Romanos, mas de outras passagens, como a dos cabritos e ovelhas (Mt 25:31-46). Porém, essa é uma parábola e, em tais textos, cada elemento é simbólico. Não pode ser diferente com o suplício eterno ali mencionado. Portanto, o suplício eterno é encontrável em textos simbólicos. Muito mais difícil é encontrá-lo em passagens com significado literal.
Alguém perguntará se o juízo final de Apocalipse não é uma dessas passagens. Nele, “se alguém não foi achado inscrito no livro da vida, foi lançado para dentro do lago do fogo” (Ap 20:15). “Esta é a segunda morte, o lago do fogo” (Ap 20:14). E quanto “aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos assassinos, aos idólatras e a todos os mentirosos, a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte” (Ap 21:8). Porém, tudo isso é tão simbólico quanto as parábolas ou o é ainda mais. E, mesmo assim, o aspecto eterno da punição não é mencionado, em relação aos homens, só em relação à besta, ao falso profeta e ao Diabo (Ap 20:10).
Resta a afirmativa de Daniel de que “muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno” (Dn 12:2). Os textos escatológicos de Daniel e Apocalipse são, dentre todos os que compõem as Escrituras, os que suscitaram maior perplexidade e dissenso ao longo da História da Igreja. Podemos até afirmar que foram os textos cuja interpretação permaneceu mais em aberto, em termos de conclusões convincentes, do primeiro século até hoje. As seguintes palavras da Prefácio de Lutero ao Apocalipse ajudam a compreender a extensão das dúvidas que envolvem esses textos:
"[A profecia sobre] as coisas futuras [...] procede de três maneiras diferentes. A primeira o faz em termos explícitos, sem imagens e figuras, como Moisés, Davi e outros profetas quando profetizam a respeito de Cristo e quando Cristo e os apóstolos se referem ao anticristo, a falsos mestres, etc. A segunda maneira utiliza imagens, mas acrescenta a interpretação explícita, assim como José interpreta sonhos e imagens. A terceira [maneira] não utiliza palavras ou interpretação, mas [usa] apenas imagens e figuras, como o presente livro do Apocalipse, assim como os sonhos, visões e imagens que muitas pessoas santas receberam do Espírito Santo, de acordo com a pregação de Pedro, baseada em Joel, em At 2[.17]: 'Vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões e sonharão vossos velhos'" (LUTERO, Martinho. Prefácio ao Apocalipse de S. João. In Martinho Lutero - Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2003. Vol. 8, p. 155).
Daniel 12:2 é uma interpretação profética ou uma profecia adicional fornecida por anjo para aclarar outras. Poderia, por isso, encaixar-se na segunda categoria de oráculos mencionada por Lutero. Porém, nem todas as profecias da segunda categoria são claras. É preciso ter a paciência de deixar as que não o são sem interpretação definitiva, exatamente como devemos permitir que os oráculos da terceira categoria permaneçam duvidosos. O que significa que não devemos extrair conclusões teológicas, muito menos interpretações teológicas fundamentais, dos textos escatológicos de Daniel ou de Apocalipse.
Por outro lado, não devemos ficar inertes diante dos oráculos enigmáticos dos apocalipses do Antigo e do Novo Testamentos. Pelo contrário, a tarefa de interpretá-lo continua dada à igreja, e a negligência não é a melhor resposta a ela. Proporei, pois, um princípio interpretativo que, a meu ver, ajuda a aclarar parcialmente as profecias Daniel e Apocalipse. Refiro-me ao princípio de que, quando esses livros descrevem visões, seu sentido é figurado. Porém, quando as visões são interpretadas por anjos ou vozes, o sentido do texto é o comum.
A vida eterna, a vergonha e o horror eterno, em Daniel 12:2, compõem a explicação transmitida por um anjo ao profeta. Porém, constituem apenas a primeira menção de uma recompensa e um castigo eterno, na Bíblia. Por isso, ainda não se formara um sentido comum para servir de referência à interpretação. Não podemos aplicar o sentido comum de hoje à época de Daniel. Mais do que isso, em Daniel e Apocalipse, as falas dos anjos são literais, mas isso não quer dizer que a atribuição de palavras simbólicas a anjos fosse proibida. Apenas não era comum. Aliás, com certa frequência, Daniel afirma ter ficado confuso, após ouvir a explicação de um anjo. Portanto, é precipitado considerar que a vergonha e o horror eterno tenham sentido óbvio.
Se tudo, no verso de Daniel, fosse óbvio e literal, certamente, o profeta teria concluído que só algumas pessoas ressuscitariam para a vida, a vergonha e o horror eternos, pois a declaração do anjo foi de que “muitos”, não "todos" o fariam. Portanto, muitos chega a excluir que se trate de todos. Por fim, devemos considerar que Daniel foi escrito sobre os judeus, quando a igreja cristã ainda não existia, nem estava em perspectiva. De sorte que o sentido óbvio das passagens do livro, quando existia, geralmente relacionava-se àquele povo e outros com ele relacionados, nunca a toda a humanidade, em todos os tempos. Daniel 12:2, em particular, parece referir-se a muitos judeus.
Vê-se que a doutrina da eternidade ou não do castigo dos ímpios, simplesmente, não se fecha. À diferença da reconciliação universal, o castigo eterno sequer é uma afirmação bíblica. Portanto, a reconciliação parcial que compõe o paradoxo com a de âmbito universal não é necessariamente eterna. Nas Escrituras, a extensão temporal do castigo dos ímpios é regida pelo silêncio. Silêncio profundo, eterno, infinito, para infundir infinito temor. “Não há medo que enlouqueça tanto/ Como a indizível contorção de espanto/ O extraordinário Medo do Infinito!” (PERNETA, Emiliano. “Medo do infinito”).