É comum se afirmar que, na primeira parte da Idade Média, a Filosofia foi dominada pelo pensamento de Platão. O que nem sempre se explicita são as ver-tentes em que o platonismo medieval se dividiu, o conteúdo específico delas e em que medida elas refletiram as concepções originais de Platão.
As principais vertentes filosóficas da Alta Idade Média foram o platonismo patrístico, inspirado em Orígenes e Santo Agostinho, e o neoplatonismo cristão, baseado no Pseudo-Dionísio Areopagita. Embora tenham vigorado até a Idade Média, essas correntes desenvolveram-se ainda na Antiguidade. A primeira, entre os séculos II e V; a outra, no quarto e no quinto séculos. O principal representante medieval da primeira corrente foi Anselmo de Aosta, que viveu no século XI. Os nomes mais destacados da última foram Escoto Erígena (século IX) e Mestre Eckhart (século XIV).
Embora fossem platônicas, essas escolas diferenciavam-se pelo modo de conceber as ideias e pela espécie de realidade que lhes reconheciam. O platonismo patrístico atribuía às ideias o caráter de pensamentos de Deus. Calcava-se, pois, na opinião de Orígenes, Santo Agostinho e outros filósofos dos primeiros séculos. A segunda corrente, por sua vez, sem se apartar daquela afirmação, acrescentava-lhe colorações provenientes da filosofia de Plotino e seus seguidores, que afirmaram as múltiplas emanações do Uno (Deus). Para esses últimos pensadores, as ideias como pensamentos divinos eram uma e somente uma das nume-rosas dimensões suprassensíveis em que o Universo se divide.
De fato, desde o início, o neoplatonismo primou pela descrição do processo, pelo qual Deus se difunde no Universo, dando origem à multidão de seres que o compõem. Essa processão a partir do Uno equivale a um relançamento do mundo das ideias de Platão em es-feras que se abrem e desenvolvem até o nível do Uni-verso físico.
Por metáforas como a da luz, que se apaga quanto mais se difunde, o Uno é apresentado por Plotino como uma hipóstase (substância), que gera um primeiro círculo (sua segunda hipóstase), o Nous ou Espírito. Ao se difundir um pouco mais, o primeiro círculo gera um segundo, constituído pela terceira hipóstase, a Psique ou Alma. Mas, assim como a luz se apaga ao atingir determinada distância da fonte emis-sora, após o segundo círculo, a processão começa a decair qualitativamente. Surge o terceiro círculo, constituído pela matéria. E, se de um círculo mais elevado é possível chegar a outro mais baixo, também é possível trilhar o caminho contrário. É possível retornar da condição inferior da matéria às esferas inteligíveis da Alma, do Espírito e, por fim, ao Uno.
No século V, sob o pseudônimo de Dionísio, o Areopagita, um autor neoplatônico cristianizou essa concepção de Plotino. E o fez de modo tão fascinante que a influência do livro que nos legou, no mundo de língua grega e, mais tarde, no ocidental, tornou-se de-terminante, por toda a Idade Média.
Para o Areopagita (assim como para Plotino), Deus é totalmente transcendente. Transcende tanto o mundo sensível quanto o inteligível. Por isso, “não temos de Deus um conhecimento fundado sobre sua natureza própria (porque esta é incognoscível e ultrapassa toda razão e toda inteligência)” (AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio. Obra completa. São Paulo: Paulus, 2004. p. 94). O conhecimento possível de Deus se dá “a partir desta ordem [do mundo material e dos inteligíveis] que descobrimos em todos os seres, uma vez que esta ordem foi instituída por Deus e contém imagens e similitudes dos modelos divinos” (idem).
Pelo conhecimento das essências criadas, podemos remontar ao Criador, que as originou “por um transbordar de sua própria essência” (idem. p. 85), segundo modelos ou “razões produtoras de essências, que preexistem sinteticamente em Deus e que a teologia chama de predefinições ou, ainda, de decretos” (idem).
Deus é, assim, a Causa universal de todas as coisas, “o princípio dos seres; é dele que procedem o próprio ser e tudo o que existe sob qualquer modo que seja [...] Dessa Causa universal procedem também as essências inteligíveis e inteligentes dos anjos que vivem em conformidade com Deus, as das alma, todas as naturezas do universo inteiro, sem dela excluir tudo o que se chama de acidentes ou seres de razão” (idem. p. 82).
As razões produtoras não se confundem com as essências produzidas. A Pequenez é uma razão produtora. Dionísio diz dela: “Jamais encontrarás nada que não participe da ideia do pequeno. É por isso que convém atribuir a Deus a Pequenez porque ele está pre-sente de maneira imediata em toda parte [...] Esta mesma Pequenez é supraessencialmente eterna, impassível: ela permanece em si e se comporta sempre de maneira idêntica” (idem. pp. 105-106). Permanecer em si significa possuir existência própria.
Além da Pequenez, são razões produtoras “a Essencialidade em si, a Vitalidade em si, a Deificação em si”. E “é participando destas potências que cada ser, segundo sua natureza própria, recebe [...] existência, vida, deificação etc.” (idem. p. 120). Note-se que, em Dionísio, a Vitalidade em si corresponde ao dom da vida, a Deificação em si, ao dom da deificação, e a Essencialidade em si, à existência. Isso mostra que, pa-ra ele, a essência é o princípio da existência. Ser uma essência é já existir. Por isso, ao longo de todo o seu livro, Dionísio denomina essências os seres sensíveis e inteligíveis que existem. Para ele, a essência ou conteúdo da ideia é objetivamente existente.
Vê-se quão longe estamos da simples concepção das ideias como pensamentos de Deus, que caracteriza a outra escola. Sem deixarem de ser pensamentos do Uno, para o Areopagita, as ideias são também realidades autônomas. Sob essa condição, é que elas produzem as essências criadas. Só algo real pode produzir outra coisa real. E na medida em que são reais, as ideias não são simples planos ou modelos das coisas na mente de Deus. Este “possui por antecipação a noção, o conhecimento e a essência de todas as coisas” (idem. p. 93). Porém, quando diz “noção” e “conhecimento”, nosso autor se refere a pensamentos, ao passo que, ao acrescentar “a essência de todas as coisas”, ele indica algo real e autônomo em Deus, a saber: as ideias produtoras de essências.
Se já são reais e autônomas em Deus, ao se projetarem fora dele e formarem o primeiro círculo da processão [o Espírito ou Nous], as ideias passam a existir de maneira ainda mais autônoma. Por isso, o Espírito é a “totalidade das coisas”: o mesmo que Platão denomina mundo das ideias.
Escoto Erígena foi o principal expositor da dou-trina do Pseudo-Dionísio, na Idade Média. De tal forma aderiu a ela que pouco a modificou. Acrescentou, porém, novos aspectos à processão a partir do Uno. Por exemplo, afirmou que os modelos existentes em Deus são transformados em causas eficientes (agentes) da criação das coisas, pela ação do Espírito Santo. Desse modo, Erígena cristianizou ainda mais Plotino.
Numa época em que o grego era praticamente desconhecido no Ocidente, Erígena traduziu a obra de Dionísio para o latim e expôs amplamente o seu conteúdo, assim como o de outras obras patrísticas. Com isso, o peso e a amplitude do seu pensamento somaram-se aos de Dionísio para consolidar o neoplatonismo cristão como uma das principais correntes filosóficas da Idade Média. Corrente tão bem-sucedida que teve representantes notáveis por longo tempo, assim como Mestre Eckhart no século XIV.
O caráter bifronte da Filosofia, nesse período, ajuda a explicar a gênese e a importância assumida pelo debate dos universais, que se iniciou no século IX e se intensificou a partir do XI. Sabemos que o debate teve por foco a natureza mental ou extramental das ideias denominadas universais. Duas correntes de opinião se formaram a respeito do tema: a primeira foi o realismo inicialmente defendido por Guilherme de Champeaux; a outra foi o nominalismo, que teve em Roscelin de Compiègne seu primeiro representante célebre. Para a escola realista, os universais têm existência objetiva. Portanto, são res ou coisa. Para a outra escola, são simples nomes ou vocis (voz).
O debate dos universais foi preparado pela formação das escolas neoplatônica e patrística. A primeira foi precursora da concepção segundo a qual os universais possuem existência real. Dionísio, por exemplo, afirmou claramente a existência de “seres de razão”, ou seja, de ideias que não correspondem a qualquer objeto material conhecido. Não é possível afirmação mais clara da posição realista sobre os universais.
Por sua vez, ao confinarem as ideias na mente de Deus, os platônicos patrísticos tornaram-nas subjetivas. Essa posição preparou o caminho para o nominalismo, que levou a afirmação daqueles autores às últimas consequências. Nem a inerência das razões seminais nas coisas, afirmada pela escola patrística, modificou a situação, pois, embora correspondessem às formas dos objetos, aquelas sementes estavam localiza-das no interior da matéria, portanto desligadas do inteligível. A gênese estoica das razões seminais mostra que, desde o início, o significado delas foi o de virtualidades da matéria, não o de algo inteligível no interior do real. Portanto, o platonismo patrístico pavimentou o caminho para o nominalismo posterior.
Essa preparação fica ainda mais cristalina em Orígenes, que se referiu ao que haveria de tornar-se o objeto nuclear da querela dos universais como “questão profunda e misteriosa da natureza dos nomes” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004, p. 62). E, ao expor em seguida as posições das escolas sobre o tema, continuou a tratar os universais como nomes, embora os integrantes das escolas, em geral, os entendessem diferentemente.
Ouçamos o nosso filósofo: “Serão [os nomes] acaso convencionais, como acredita Aristóteles? Ou, conforme a opinião dos estoicos, são tirados da natureza, em que os primeiros vocábulos imitam os objetos que estão na origem dos nomes [...] Ou então, conforme a doutrina de Epicuro, divergindo da opinião do Pórtico, os nomes existem naturalmente, e os primeiros homens emitem vocábulos adequados às coisas?” (idem. pp. 62-63).
Que Orígenes afirma serem convencionais, na opinião de Aristóteles? Os nomes. Que declara serem tirados da natureza, para os estoicos? Também os nomes. E que existe na natureza, segundo Epicuro? Nova-mente os nomes. Portanto, a despeito da opinião de outros a respeito deles, Orígenes denomina os universais sempre nomes.
A posição patrística, que distingue o universal até dos aspectos que lhes são mais semelhantes no mundo físico, é afirmada também por Gregório de Nissa, segundo o qual “nada daquilo que se vê nos corpos é de per si um corpo: não é a forma, nem a cor, nem o peso, nem a extensão, nem a quantidade, nem tampou-co aquilo que se pode pensar pertencente às várias qualidades; ao contrário, cada uma dessas coisas é um conceito (logos)” (NISSA, Gregório de. A alma e a ressurreição. São Paulo: Paulus, 2011. p. 254). Fica claro, por essa afirmação, que para Gregório os conceitos eram inerentes aos corpos, o que se aproxima bas-tante da posição mais tarde identificada como realismo moderado.
Esse ponto de vista não se confunde com o de Aristóteles, para quem, embora fossem também nomes, os universais tinham existência própria como formas que, como tais, passavam das coisas à mente. Boécio parece prestigiar a posição de Aristóteles na seguinte passagem: “É pela aquisição da justiça [preexistente] que as pessoas ficam justas, e pela aquisição da sabedoria [também preexistente], sábias” (BOÉCIO. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 79).
A posição de Boécio e a sua diferença em re-lação à patrística torna-se ainda mais explícita, na seguinte passagem: “Tudo o que é tido por imperfeito o é por uma degradação da perfeição. Segue-se que se, em qualquer campo que seja, algo parece imperfeito, é porque existe também nesse campo algo que seja per-feito [a agilidade e a beleza supremas]” (idem.p. 76). Por ter assumido essa posição, Boécio se tornou o elo entre Aristóteles e os representantes medievais do realismo moderado, como Abelardo e Tomás de Aqui-no. Porém, a sua posição nunca coincidiu da dos autores patrísticos.
À luz das intensas discussões que se travaram sobre os universais, não é possível deixar de atribuir o devido destaque às posições de Orígenes, Gregório e Agostinho, na questão dos universais. Quanto já se exaltou a importância do nominalismo e de Ockham para a emancipação do pensamento humano de vícios inveterados! No entanto, os filósofos patrísticos não só prepararam o terreno para o nominalismo como desenvolveram uma posição superior à dele, na questão dos universais.
É verdade que Agostinho referiu-se a Deus como sumo bem, perfeito amor etc. Com isso, indicou que a semelhança das ideias a Deus é ainda maior que às coisas. É verdade que o Areopagita não se cansou de ensinar que Deus é infinitamente mais do que as ideias. Porém, Agostinho não chegou a esse ponto. Ele se limitou a descrever Deus como a realização mais per-feita das ideias. Vale dizer: como cada uma das ideias elevada ao mais alto grau.
Ao afirmarmos que Deus é amor, não declaramos algo semelhante à frase “Pedro é homem”. A primeira proposição diz algo sobre o modo como Deus se relaciona com outros seres, isto é, que Deus se relaciona com eles com amor. A segunda frase nos diz o que Pedro é, não o que faz, pois conhecemos a sua essência, não a de Deus. Por isso, quando afirmarmos o que Pedro é, referimo-nos à sua essência ou qualidades. Mas, quando dizemos o que Deus é, queremos mais comumente indicar o que faz, não o que é.
Há nisso uma substantificação do amor? Tanto quanto há, ao afirmarmos que Pedro está na sua casa. Ele pode estar ou não estar em casa. A afirmativa abre-se à verificação. Nem por isso, há nela substantificação. O vício da substantificação corresponde à atribuição de substancialidade (a algo ou alguém), cujo equívoco é evidente a priori, isto é, antes de toda verificação. O que só pode ser considerado verdadeiro ou falso, após a verificação, não é vício lógico. É hipótese.
Pode-se indagar se o platonismo medieval não foi todo de uma só espécie. A pergunta não é difícil de responder. A afirmação da existência de seres de razão, para nos atermos a esse exemplo, é impensável em Agostinho, pois leva a uma transmutação no conceito de Deus. Se há seres de razão, a cada ideia corresponde algo real e abstrato. A soma desses objetos (o mundo das ideias, que Plotino chamou Espírito ou Nous) é maior do que o Deus cristão, que é uma pessoa, por-tanto um ser entre outros. É difícil acreditar que, concebendo Deus como pessoal, Orígenes e Agostinho pu-dessem concordar com essa consequência.
Com que perseverança os filósofos de múltiplos séculos desenvolveram a Metafísica como alternativa ao materialismo arraigado na paideia grega! Apesar de todos os retornos do modo de pensar materialista, a Metafísica ganhou sempre novas expressões, na Idade Média. Mas ela também enfrentou dificuldades demasiadas para realizar o que se pode denominar verdadeiras descobertas nessa direção. E teve facilidade demasiada para se desequilibrar em direção ao fantástico.
Mesmo assim, ao olharmos os desenvolvimentos da Filosofia mencionados neste livro, não parece sensato considerar que uma insistência tão grande quanto a dos filósofos em pensar metafisicamente seja infundada. Por que dois platonismos na Idade Média? Por que não um materialismo entre eles? Se o mate-rialismo antigo, segundo o qual tudo é matéria ou está ligado a ela, foi tão natural, por que o esforço filosófico de superá-lo? Não é tal esforço estarrecedor? Por que ele foi levado tão longe? A resposta a essas perguntas revela algo sobre o conteúdo heurístico da Metafísica. Ao desenvolverem esse ramo da Filosofia, os pensadores da Idade Média tinham o íntimo convencimento de realizar uma descoberta ou, pelo menos, de desbravar uma região desconhecida do real. Somente por isso levaram tão longe o seu empreendimento.
Porém, apesar de toda a sua busca metafísica, muitos pensadores medievais contribuíram para a disseminação desordenada do erro da substantificação. As doutrinas neoplatônicas, em particular, seduziram as mentes, com sua promessa de revelar mais de Deus do que de fato é possível conhecer por essa via. Nisso, elas se assemelham à tentação da serpente, que ao primeiro casal sugeriu conhecerem o bem e o mal por meio do fruto proibido. Que é conhecer o bem, senão conhecer Deus?
Que é conhecer a processão de todas as coisas a partir do Bem, senão conhecer o próprio Bem? Que é descobrir que Deus gera o Espírito, e este, a Alma, a não ser entender, pelo poder inerente à razão, um pro-cesso semelhante àquele pelo qual o Pai gerou o Filho na eternidade? Que é descobrir que a Alma engendrou a matéria, a não ser penetrar num inacessível mistério? E a doutrina de que tudo retornará ao Uno: não supõe que a mente é capaz de descobrir, por antecipação, o que ocorrerá após todos os séculos?
O neoplatonismo é a perda de toda medida sobre o que é dado à razão descobrir por si mesma. É a conversão da razão humana em razão divina, a fabricação da pior espécie de ídolo: o ídolo humano. E o neoplatonismo cristão não é mais que a afirmação de que Jesus veio à Terra ordenar que nos prostrássemos ante esse ídolo.