Os capítulos anteriores permitem-nos suspeitar de que o “pecado original” do conhecimento filosófico do Ocidente, se a metáfora religiosa for aqui perdoável, é a Metafísica Clássica. Isso é tão verdadeiro que, se a Filosofia realizou progressos, como crítica do senso comum, ao longo dos séculos, ele consistiu, em boa medida, na contínua superação do vício da substantificação das ideias.
A superação não foi linear, na medida em que sempre se acreditou haver elementos (não facilmente discerníveis) a serem preservados naquela Metafísica. Acrescente-se o fato de muitas tentativas de superação terem-se revelado desorientadas. Para ilustrar a afirmativa com um fato, a maior revolução da Física, no século XX, ao lado da Mecânica Quântica – a Relatividade Geral de Einstein – introduziu problemas teóricos de tal envergadura que as suas resoluções, não raro, envolveram recursos ao erro platônico. O primeiro cientista acima de qualquer contestação a lançar mão desses recursos foi o próprio Einstein, ao repensar as leis físicas em termos teológicos, isto é, como idênticas ao Deus de Spinoza.
A Teoria da Relatividade Geral introduziu a possibilidade de o Universo estar em expansão, o que veio a ser confirmado, por observações empíricas. E coube à expansão reavivar, de certo modo, o antigo problema da origem do cosmos a partir do nada, já que, se sofre expansão, o Universo deve ter estado tão mais comprimido quanto mais recuarmos no tempo. O limite dessa compactação é a “bola de fogo” primordial, que reuniu toda a matéria e energia cósmicas em espaço tão exíguo que tudo o que então existia explodiu. Na concepção mais aceita, essa explosão (big bang) deu origem à expansão, ao tempo e ao próprio Universo que conhecemos.
Ao estabelecer desse modo uma origem para o mundo, a cosmologia do big bang reavivou o problema filosófico da passagem do nada ao cosmo. E o que se viu, na tentativa de solucionar o problema, foi a multiplicação de modelos físicos que tentam explicar tal passagem por métodos teóricos, já que não temos dados empíricos sobre o Universo nos seus primeiros milhares de anos.
O problema dos modelos teóricos que tentam explicar o big bang é não partirem de dados empíricos, o que os expõe, particularmente, ao erro clássico da substantificação. Com efeito, embora partam de um ou outro princípio do mundo empírico, como o movimento quântico ou a relatividade geral, os modelos os modificam com base em princípios do pensamento puro como a não-contradição. Assim, os princípios do pensamento são admitidos como diretrizes do Universo físico, ao lado das leis empíricas.
É possível agrupar os modelos teóricos sobre a grande explosão em duas categorias. De um lado, estão os que pressupõem a existência de Universos numerosos, talvez infinitos, numa vasta estrutura denominada Multiverso. De acordo com essa posição, o mundo em que habitamos teria derivado de um ou mais Universos. A segunda posição, por sua vez, consiste postula a origem do nosso Universo literalmente a partir do nada.
O primeiro tipo de modelo evita o problema do nada, varre-o do território da ciência. E, em seu lugar, introduz o conceito engenhoso do Multiverso. Porém, a despeito dos esforços dos defensores desses modelos, o Multiverso que eles propõem continua regido por leis causais, em que consequentes se seguem invariavelmente a antecedentes.
Apesar das críticas de David Hume e outros pensadores à causalidade, esse princípio permanece solidamente instalado no interior da ciência contemporânea, principalmente enquanto o tomamos como relação geral de antecedentes a consequentes. Tanto a gravitação como o eletromagnetismo e as interações nucleares comportam relações dessa espécie, que se fazem presentes e são representadas nos modelos físicos dos múltiplos Universos.
Porém, embora pemaneça lógica, a representação causal das leis físicas não está livre de vícios metafísicos. O próprio arcabouço da causalidade (a relação de antecedentes a consequentes) assemelha-se tanto à associação de premissas e consequências no plano lógico que nos perguntamos se não seria, ela também, um transplante da ordem mental à realidade. Hume afirmou que a associação de ideias, por meios lógicos, é tão arbitrária quanto a relação que chamamos causal. Pode ser que ela forneça o costume básico, do qual, por imitação, derivou o de associar causas e efeitos.
As tentativas de explicação da origem do cosmo a partir do nada não se saem melhor que as teorias de um Multiverso regido por leis causais.Lawrence Krauss é um expoente desse ponto de vista. Ele demonstra a possibilidade de derivarmos a singularidade quântica de algo muito semelhante ao nada, ou seja, de nenhum espaço, nenhum tempo, energia e matéria nulas. Porém, as ideias de Krauss têm sido questionadas, por partirem das leis do movimento quântico e não exatamente do nada.
Ao defender seu modelo contra essas objeções, Krauss insiste na coincidência entre as leis quânticas e o nada. Porém, do ponto de vista filosófico, a insistência é infundada. O nada não é só um vazio. É também o oposto de um conceito. Todo conceito é formado pela associação de outras idéias, que o compõem. Às vezes, uma das ideias exprime a finalidade da combinação que integra. Por exemplo, o conceito de mesa é constituído pelo de um tampo, um pé e a função de manter objetos ao alcance de um usuário.
O nada é o oposto exato disso. Para concebê-lo, é preciso não associar quaisquer conceitos, já que ele não tem conteúdo. Em outras palavras, o nada é um falso conceito. Mas as leis quânticas não se confundem com uma ausência qualquer de conceitos. Em outras palavras, o modelo de Krauss substantifica não apenas ideias, mas o anticonceito do nada. É o cúmulo do vício da substantificação.
Em dezembro de 2015, físicos e filósofos da ciência
reuniram-se na Universidade Ludwig Maximilian, em Munique, a fim de discutir a
acusação de que alguns ramos da Física teórica estão a se desgarrar da ciência experimental (CATELVECCHI, Davide. “Is string theory science?”. Nature, 23/12/2015). O encontro,
em grande parte ins-pirado por críticas como as do artigo pulicado por George Ellis
e Joseph Silk na revista Nature, em 2014 (ELLIS, George e SILK, J. Nature, 2014. nº 516, p. 321-323), o encontro
não chegou a qualquer consenso, porém serviu para demonstrar que as acusações se
centram mais incisivamente nas teorias do Multiverso e das supercordas.
Não me refiro a outra coisa, quando afirmo que
o erro da substantificação penetrou na ciência contemporânea. Trata-se substancialmente
da mesma acusação. Claro que o erro é mais comum na Filosofia, mas pode penetrar,
e tem feito isso de maneira substancial, em outros ramos do conhecimento, como as
ciências sociais e na própria ciência da natureza.
Da divinização da natureza à substantificação do nada, implícita no modelo de Krauss, a ciência permanece permeada pelo vício metafísico de Parmênides e Platão. Como constituiu o pesadelo da Filosofia, ao longo dos séculos, aquele vício continua ser o problema mais básico da ciência hoje. E é, no mínimo, de questionar se um saber que incide em tais falhas, ao lidar com problemas menores da Metafísica, é capaz de resolver problemas maiores relacionados à existência de Deus.
Se a Filosofia puder ser representada como um tribunal presidido por Parmênides, ao qual pessoas de todos os séculos são intimadas a comparecerem, o conteúdo dos depoimentos colhidos permanece variado e contraditório. Porém, alguns pontos comuns podem ser detectados neles. Talvez o ponto de maior convergência seja a confissão de não poucos depoentes do seu envolvimento com o senso comum e os vícios de que está impregnado.
Entre os últimos a deporem, no tribunal de Parmênides, contam-se Einstein e os físicos que o sucederam. Saíram de lá há tão pouco que as suas declarações ainda não foram sequer analisadas. Ainda não se imprimiram no espírito dos juízes. Tudo que se conhece são rumores e comentários sobre o que nelas realmente se encontra.
Com a analogia do tribunal, desejo mostrar que a ciência
contemporânea está tão envolvida com o problema da substantificação
quanto a Filosofia. Embora tenha surgido muito mais recentemente e
pareça não incidir em antigos vícios do pensamento, a ciência não está
livre de ranços substancialistas, tanto quanto a Filosofia. Em que pese o
espanto que isso provoca, é inútil perguntar: “Até tu, Brutus?”