A desintegração dos mundos sociais materialistas, no fim do século XX e início do XXI, e a sua substituição por mundos erigidos sobre uma base econômica oposta (capitalista), no contexto de um movimento internacional também oposto (a globalização), têm especial significado para a História da Filosofia Cristã. Não poderia ser diferente. Se a História do Pensamento reflete a dos mundos sociais, a derrocada das sociedades materialistas contemporâneas está a nos gri-tar que há algo de errado com a sua metavisão de mundo.
O percurso das escolas filosóficas mais recentes tem algo a nos dizer sobre esse problema. Se o traçado do pensamento oitocentista é o de uma proliferação e profunda diversificação de propostas, a nos segredarem a insuficiência do materialismo, do lado metafísico, as variações não foram menores. Para abordá-las com maior facilidade, é útil dividi-las em doutrinas cristãs, numa banda do rio Lete, e não cristãs, na outra banda.
Na primeira banda do rio, observamos o contínuo desenvolvimento de filosofias históricas, como o tomismo escolástico e o nominalismo medievo. No seu reaparecimento, durante o século XIX, a primeira e a última dessas filosofias foram adotadas mais como inspiração do que como sistemas completos e acabados. A primeira foi adotada, algumas vezes, como uma espécie de philosophia universalis. Não é difícil perceber que, nesse caudal de pensamento, inserem-se Jolivet, Mercier, Maritain e outros filósofos neotomistas. O Papa Bento XVI também representa essa corrente.
Não há maior novidade, nas acomodações ocorridas, no interior desses arraiais. Exceções luminosas são as doutrinas de um Kierkegaard, de um Bergson e de uma Hannah Arendt, que inalam a inspiração cristã e tentam desenvolver algo novo. Mas, em geral, o cheiro desse amplo movimento é de monastério ou, pior, de sacristia.
No entanto, o que de maior valor metafísico se produziu, nesse período, não veio da margem cristã do rio que cruza o Hades, mas da outra banda. Refiro-me às correntes de pensamento emanadas de Nietzsche e de Heidegger. O primeiro pouco se preocupa em fundamentar o que afirma. Isso é próprio do seu pensamento. Não é muito diferente em Heidegger, apesar das longas apresentações históricas que fornece de suas teses. Mas o raro da demonstração e da fundamentação, nos dois casos, decorre consequentemente das premissas do pensamento deles.
Tanto Nietzsche como Heidegger esforçam-se para se emancipar da Metafísica Antiga. O primeiro encontra motivo para fazê-lo no momento histórico único, que o décimo-nono século descortina. Para descrevê-lo e anunciar o futuro que se fará, Nietzsche cria uma ilustre personagem, Zaratustra, mestre e profeta da sociedade por vir.
Heidegger é um dos mais autorizados intérpretes desse ponto da filosofia de Nietzsche. Vale a pena escutá-lo: “Com o nome super-homem [cujo advento Zaratustra anuncia], Nietzsche não se refere à superdimensionalização do homem até hoje vigente. Ele também não pensa uma espécie de homem que descarta o humano e que faz da arbitrariedade nua e crua a lei e da fúria titânica, a regra. Tomando, antes, a palavra em sentido literal, o super-homem (Über-mensch) é o homem que vai para além do homem até hoje vigente [...] Mas de onde vem o clamor pela necessidade do super-homem? Por que o homem não é mais suficiente? Porque Nietzsche reconhece o instante histórico em que o homem se prepara para entrar na total dominação da Terra [devido ao amplo desenvolvimento da ciência e da técnica]. Nietzsche é o primeiro pensador que, considerando a história do mundo tal como esta pela primeira vez nos chega, coloca a pergunta decisiva e a pensa através de toda sua amplitude metafísica. A pergunta é: o homem enquanto homem, em sua constituição de essência até hoje vigente, está preparado para assumir a dominação da terra?” (HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 91).
Não só isso. Heidegger introduz outro ponto. Embora cheio de todas as pulsões e de todos os ideais do homem antigo, grego e romano, Zaratustra anuncia o super-homem, exatamente porque as novas condições sociais tornaram o atual inadequado e até superado. Sobre esse segundo ponto, nosso autor discorre nos seguintes termos:
“Qual a ponte que permite a ultrapassagem para o super-homem e assim permite ao ultrapassante [ao próprio super-homem] ir-se embora do homem até hoje vigente, de modo tal que ele possa enfim dele livrar-se? A obra Assim falava Zaratustra, que deve mostrar a ultrapassagem do ultrapassante, está de tal modo estruturada que a resposta é dada na parte II [...] ‘Pois que o homem seja redimido da vingança: isto é para mim a ponte para a mais elevada esperança e um arco-íris após longa intempérie’ [...] Segundo a palavra de Nietzsche, o pensamento até hoje vigente é determinado pelo espírito de vingança. Como então pensa Nietzsche a essência da vingança, posto que ele a pensa metafisicamente? Na segunda parte de Assim falava Zaratustra, no discurso já mencionado ‘Da redenção’, Nietzsche deixa seu Zaratustra dizer: ‘Isto, sim, isto somente é a própria vingança: a recalcitrância da vontade contra o tempo e o seu era’ [...] Como poderá o homem assumir a dominação da Terra, como pode ele tomar a Terra como Terra sob sua guarda, se e enquanto ele subestima o que é terreno, à medida que o espírito de vingança determina sua reflexão? Se isto, a saber, salvar a Terra como Terra, procede, então, primeiro, é preciso que o espírito de vingança desapareça” (idem. pp. 95,99,101).
Heidegger não vacila em apontar o caráter destoante de tal anúncio, em relação à obra de Nietzsche. Este é o apologista da vontade de poder e da política da guerra, como os elementos primários da História, até a subversão judaico-cristã, que ele vê como o envenenamento do homem, pois cunhou os pseudovalores da humildade, da compaixão etc., para impor o reinado dos fracos (e patifes) sobre os fortes, contra tudo o que a vontade de viver instituiu, no plano da Natureza, e a vontade de poder instaurou, no da História. Porém, diz Nietzsche, a mais exata expressão da vontade de poder, o espírito de vingança que atravessa a História, deve desaparecer, para que a dominação do super-homem se implante.
Vale a pena avaliar com cuidado esse imponente edifício de ideias. Se a Filosofia e o pensamento humano se fazem significativos, na medida em que dão origem a modos de ser sociais, temos de perguntar se as de Nietzsche e Heidegger têm tal utilidade. Para não adotarmos suspeições pouco claras, como as do envolvimento propalado (e comprovado) de Heidegger com o nacional-socialismo, podemos observar que essa nova e extraordinária forma de Metafísica não contribuiu, ao menos até agora, para o advento de uma só sociedade nova. O super-homem não veio. Pelo contrário, no espaço de tempo em que devia ter-se manifestado, o homem produziu duas Guerras Mundiais.
É escusado duvidar do real advento desse novo homem, um século e duas Guerras Mundiais depois de Nietzsche. Ainda mais com a agravante de as guerras terem sido movidas num espírito nada distante do que a filosofia dele pregava. Tampouco estamos autorizados a interpretar a redenção da vingança a que Nietzsche se refere como algo mais que uma nova forma dela.
No entanto, o decisivo para renegar a filosofia de Nietzsche e de Heidegger não é a promessa sempre adiada do super-homem e do aparecimento do mundo novo, mas a desconexão entre eles. É o fato de a situação histórica propícia para a entrada do homem na dominação da Terra ter passado, sem que o super-homem tivesse vindo. Vivemos no brave new world sobrevivente daquela situação: um montão de problemas ecológicos graves e a conjugação ameaçadora de tecnologias de destruição em massa e fundamentalismos religiosos. Pouco aproveita justificar os elementos positivos dessa nova ordem, se não conseguimos, com eles, fazer recuar a ameaça representada pelos que são negativos. Sem contar a lembrança viva de duas Guerras Mundiais, da transformação que as seguiu de uma metade do mundo em socialista e do estrepitoso desmoronamento dela.
Esse meio mundo realmente desabou, e o materialismo contemporâneo com ele, como o antigo havia desabado após o aparecimento da Metafísica e sua combinação com o cristianismo. Reanimar esse novo e finado materialismo é, portanto, recalcitrar contra a História Social e a Filosofia. Daí a importância de Nietzsche e de Heidegger, que foram argutos o suficiente para perceberem que, se a Filosofia devia-se revestir de um modo de ser não cristão, era preciso encontrá-lo fora do materialismo, o que equivale a afirmar dentro da Metafísica.
Mas a tão grande distância das condições históricas que Nietzsche vislumbrou presentes e considerou favoráveis ao aparecimento do super-homem, já não é mais possível esperá-lo. Pergunto-me até se é possível uma Metafísica sem Teodiceia, uma Filosofia sem Deus, como Nietzsche e Heidegger pretenderam. Pergunto-me, enfim, se a margem não cristã do Lete continua habitável.
Se a filosofia de Nietzsche proclama o super-homem numa situação histórica, o término dessa situação não pode deixar de lhe ser debitado. A menos que acreditemos que o eterno retorno em que aquele filósofo erigiu o seu pensamento trará a situação de volta... Mas rezar para Nietzsche e Heidegger e esperar essa volta são práticas pouco consistentes com a cena atual do mundo.
Se filósofos são como pedreiros e carpinteiros, se eles ajudam a erguer mundos sociais, onde estão os da margem esquerda do Lete anunciados no século XIX? Não estão em parte alguma, nem podem estar. Mundos não se erguem sobre sonhos, mas sobre fés, religiosas ou não. Pergunto-me se Nietzsche e Heidegger não inviabilizaram o seu próprio projeto, ao reduzirem o papel da fé. Pergunto-me, enfim, se a desagradável sensação que deixaram, ao seccionar o cristianismo da História da Filosofia como carne pútrida, não foi o seu erro fatal.
Voltemo-nos, porém, um instante, à acusação de falta de fundamentação formulada em face de Nietzsche, pois merece maior atenção. A acusação pode ser estendida, também, às teses centrais de Heidegger. A Metafísica antiga era um método de fundamentação, na medida em que era conduzida pela razão. Na terminologia própria de Aristóteles, ela era um método de estabelecimento das causas das coisas, ou seja, da sua explicação. A nova Metafísica, ao superar a antiga, livra-se daquelas causas, mas também do império da razão. Heidegger mostra que a nova Metafísica é atravessada pela vontade, como a antiga o era pela razão. Daí a dívida da filosofia de Nietzsche e da de Heidegger para com a arte e a força indômita da existência humana.
Mas explicar pelas causas não é só afirmar o encadeamento delas. É ao mesmo tempo manter consciência do princípio da razão suficiente. Em casos extremos, o que existe empiricamente pode não ser efeito de causa alguma. Nem por isso está livre de ter uma razão suficiente para existir, o que nos mantém nos domínios da Lógica. Portanto, embora a vontade tenha um papel relevante na Metafísica, o ser não pode ser pensado fora dos limites lógicos.
A força dessa verdade manifesta-se na afirmação nuclear de que a Metafísica Antiga é um método de fundamentação, e a nova Metafísica, sua negação, não o é. O silogismo em que essa assertiva se funda (A é diferente de B; se A é C, logo B não pode ser C) cheira a Aristóteles. A dependência da nova Metafísica para com esse silogismo de modo nenhum confirma sua independência da antiga forma de razão. De fato, há em Heidegger mais do que a Metafísica destilada da vontade. A antiga Metafísica, vertida do alambique da razão, também está presente nele e no próprio alicerce. De modo que a separação das duas não é de maneira alguma clara.
Perguntamos como Nietzsche e Heidegger podem voar para longe da antiga razão metafísica, se tanto dependem dela? Como podem construir de modo tão consequente sobre aquela razão, e a despedir, num instante e sem carta de divórcio? Não será, a nova Metafísica, no fundo, a antiga transfigurada? Enfim, onde estamos, ao ler Nietzsche e Heidegger: na Metafísica antiga ou na nova?
Curvemo-nos aos imperativos existenciais que Heidegger tanto encarece. Admitamos que eles justifiquem o seu pensamento. Consideremos ainda, em toda a extensão, esse misterioso dom que a arte possui de apascentar o coração humano. Embora a questão existencial, no mundo de hoje, seja mais complexa do que tudo isso, aquiesçamos e admitamos apresentá-la dessa maneira. Ainda assim, a Filosofia é mais do que o existencialismo heideggeriano parece sugerir. E tanto mais do que Nietzsche pretende fazê-la.
A Filosofia é uma corda de três dobras. Uma das dobras é a função existencial que desempenha. As outras são a razão e a base empírica do pensamento. É preciso não enfraquecer a razão para afirmar a existência e atualizá-las em relação à base de conhecimento empírico de cada época. Só assim a Filosofia é capaz de exercer o seu magistério no campo da Teodiceia. Só assim ela pode pensar o homem como ser genérico.
Estão essas tarefas além das possibilidades de qualquer filósofo? Sem dúvida, porém não além do que a própria Filosofia sempre guiou o homem a buscar e do que o esforço coordenado dos filósofos pode talvez, um dia, alcançar.