Tantas são as realizações da ciência, na explicação do real e na aplicação do conhecimento à técnica, que se torna enfadonho enumerá-las. Mas o inventário encolhe, repentinamente, quando ingressamos no terreno metafísico. Não que a ciência não tenha realizado contribuições, nesse campo, mas, a julgar pelos problemas descritos nos capítulos anteriores, elas se fizeram acompanhar por dificuldades lógicas tão formidáveis que tornam necessário um juízo ponderado, ao tentarmos medir os prós e os contras do emprego do método científico em questões metafísicas.
Os fatos recomendam desinflarmos o entusiasmo pela ciência, no campo da Filosofia. Nenhum imperativo racional se vislumbra, que nos obrigue a aderir ao neopositivismo ou a outra filosofia recente ou clássica. Porém, tudo parece aconselhar o direcionamento de atenção abundante às descobertas científicas, no fatigante trabalho de girar em torno das questões metafísicas.
Se a Teoria da Evolução é o ramo da ciência que mais afetou a Teologia, a Física Quântica é o que mais pesa sobre a Metafísica. Esse ramo do saber dedica-se à realidade do nível do átomo para baixo. Porém, por ser tão revolucionária e contrária ao senso comum, a Física Quântica tem sido interpretada de dezenas de modos diferentes. Felizmente para nós, com o tempo, a maioria dos físicos convergiu para a interpretação de Niels Bohr, chamada positivista, por definir a realidade do objeto quântico com base na observação empírica.
Tanto a Física Clássica como a Quântica descrevem sistemas físicos considerados como “fragmentos concretos da realidade que foram separados para estudo” (www.wikipedia.org/mecanicaquantica). Uma das características principais dos “sistemas físicos é não serem estáticos, mas evoluírem". Um sistema evoluir significa “dar origem a resultados experimentais diferentes” (idem).
Uma partícula quântica (um elétron, um próton, um nêutron, um bóson, um lépton etc.) é considerado sistema, por apresentar resultados experimentais diferentes, chamados estados, em momentos distintos. E por estado, entendemos a “quantidade matemática que determina completamente os valores das propriedades físicas do sistema [...] ou as probabilidades de cada um de seus valores possíveis serem medidos, quando se trata de uma teoria probabilística” (idem).
O que torna a Física Quântica peculiar são duas características das observações a que os seus sistemas se sujeitam. A primeira são as configurações de partícula e onda. A Física Clássica (newtoniana) trata os corpúsculos ou partículas como entidades distintas das ondas. O que apresenta características corpusculares não se pode comportar como onda e vice-versa. No nível quântico da realidade, porém, os átomos, as partículas e as ondas que eles emitem têm tanto propriedades corpusculares quanto ondulatórias. Desde Max Born, estas últimas têm sido interpretadas como o arco de probabilidades que a partícula tem de ocupar diferentes posições em momentos diversos.
A segunda peculiaridade dos objetos quânticos é o fato de as propriedades corpusculares e ondulatórias não serem observáveis ao mesmo tempo. Quando uma onda é percebida, sua partícula desaparece; quando a partícula é detectada, a onda se esvai.
Duas explicações principais foram propostas para esse fenômeno bizarro. A primeira afirma que as ondas associadas à partícula entram em colapso, quando ela é observada. Os adeptos da segunda interpretação, por sua vez, consideram arbitrária a ideia de colapso e explicam a impossibilidade de observação simultânea com base na limitação da mente humana.
A primeira explicação é muito mais subjetiva que a outra, pois coloca o real na dependência do observador. A segunda interpretação é objetiva, pois se sustenta na premissa de que o real é o que é, independentemente da observação humana.
A interpretação majoritária tende a admitir que só é possível afirmar a existência do que é efetivamente observado. Isso é positivismo extremado. Podemos podar os excessos da interpretação, sem a abandonarmos, livrando-nos do excesso positivista, isto é, cortando o prepúcio filosófico da teoria, pela admissão de que o arco de probabilidades quântico não descreve somente “futuros possíveis” da partícula, entendidos como o estar aqui ou ali, mas as suas interações presentes e efetivas com os pontos do espaço que designamos como aqui e ali. As ondas só indicam algo realmente futuro, por descreverem o presente, pois são as interações atuais que determinam as futuras.
Assim entendidas, as diferenças da Física Quântica em relação à Clássica inscrevem-se numa base comum a ambas. Tanto numa como na outra, as interações presentes de um sistema determinam as futuras. A diferença surge, quando percebemos que a determinação do futuro, pela medição, é certa na Física Clássica e incerta na Física Quântica.
O estabelecimento do que há de certo e determinado, bem como do incerto e probabilístico, em cada tipo de sistema (clássico e quântico) é fundamental para entendermos onde se encontra o novo, o inusitado, no último. Guilherme de Ockham enunciou o princípio lógico, segundo o qual, entre duas teorias igualmente possíveis e demonstradas, deve-se aderir à que envolve o menor número de premissas.
Esse princípio, conhecido como “navalha de Ockham”, foi adotado como um cânone das ciências naturais, principalmente da Física. Ele mostra que, se a realidade total pode ser explicada sob a premissa de que o presente determina o futuro, não se deve apelar para teorias que adotem essa premissa para o mundo clássico e outra muito diversa para o mundo quântico.
Entre o clássico e o quântico há similaridades, que não podem ser apagadas. Eles não são estanques, estranhos, impermeáveis um ao outro. As diferenças entre os dois níveis da realidade surgem, quando consideramos o modo como a determinação do futuro acontece. Num sistema de tipo clássico, a determinação do futuro a partir do presente é causal; num sistema quântico, ela é probabilística. Mas, em ambos os casos, a um prius (estado anterior) segue-se um post (estado posterior), com maior ou menor grau de necessidade.
De acordo com esse princípio, deve-se julgar que, quando a partícula quântica é detectada, o feixe de ondas desaparece, não por obra e graça do observador, mas porque a partícula e suas ondas formam um sistema. Para uma interação aumentar a ponto de ser percebida, é preciso que as outras decresçam proporcionalmente. Esse decréscimo está associado ao desaparecimento do feixe ou pacote de ondas. Pode-se supor que a interação predominante torna-se perceptível, ao atingir probabilidade próxima de um, mas para isso as probabilidades das outra interações do sistema têm de cair a níveis próximos de zero.
A energia total do sistema formado pela partícula e seu feixe de ondas concentra-se ou se dispersa, no tempo. Quando a concentração aproxima-se do ponto máximo, a partícula se torna detectável. Quando ela diminui, a energia do sistema se dispersa, a partícula desaparece, e os estados quânticos assumem diferentes probabilidades. Sob essa última configuração, o sistema não se torna irreal, mas indetectável, o que sugere que a existência não se define pelo ato de observação.
Werner Heisenberg mostrou que, quanto maior a amplitude de uma onda do feixe ou pacote associado à partícula, maior a probabilidade de esta vir a ocupar aquele lugar, e quanto menor uma onda, menor essa probabilidade. Mostrou ainda que, se confinarmos a partícula numa região menor, sua posição variará menos, mas seu momentum (amplitude das forças que nela se manifestam) ficará mais variável. A diminuição do número de posições fará aumentar os valores possíveis do momentum. No limite, a detecção da posição tornará impossível a do momento, e vice-versa.
Por que é assim? Porque a dualidade posição-momento segue o feitio probabilístico da dualidade partícula-onda. Assim como a cada partícula corresponde um feixe de ondas ou nuvem de probabilidades, a cada posição correspondem múltiplos momentos.
Quero sugerir que, sem abandonarmos a interpretação majoritária da Física Quântica, é possível abrandarmos o positivismo implícito em só reconhecer realidade ao que é medido. Esse positivismo parece um exagero da posição majoritária. Um exagero que encobre a relação entre as ondas de probabilidades e o real, ao tornar aquelas virtuais e relacioná-las ao futuro, quando as ondas são sempre reais e representam o presente da partícula.
Os estados que a partícula pode assumir também têm realidade própria, independentemente de serem ocupados ou não por ela. Eles são objetos reais, embora indetectáveis. De sorte que a concepção predominante, segundo a qual a observação define a existência quântica tem as características de uma antiguidade positivista no interior da Física. Um vício que ainda a inquina.
Essas observações não distorcem o que se conhece de Física Quântica. Valem-se do desnível entre a existência dos fenômenos quânticos, reconhecida por todos os cientistas, e as incertezas sobre as interpretações deles. Estas aumentam ao se concentrarem nas relações entre o real e as nossas representações dele. O feixe de ondas de uma partícula é a representação mais importante dela. Por isso, a sua relação com o real é o que há de mais controverso na Física. Questionar os significados do feixe não é negar a teoria quântica. É mover-se na gama de interpretações possíveis dela.
Mas as interpretações quânticas também têm pontos de convergência. O mais importante deles é o caráter probabilístico dos eventos. Sobre esse ponto, as possibilidades interpretativas são mais restritas. Pouca dúvida há de que a probabilidade quântica importa uma radical transformação do princípio clássico da causalidade e da fomulação filosófica dele por Kant.
Sabemos que toda relação envolve ações e reações, muito mais do que ações e paixões. Mas, normalmente, não é possível predizer qual dos entes relacionados praticará a ação, e qual, a reação. Só na relação causal, essa ordem é predeterminada, já que a causa deve vir antes do efeito. Ao menos foi o que se entendeu por causalidade até as críticas de David Hume à concepção convencional desse conceito. Porém, o que Hume desafiou não foi a existência da relação causal como conjunção entre a causa e o efeito. Foi, antes, a nossa interpretação mental desse fato, que inclui a precedência da causa. Hume considerava real a conjunção regular que chamamos causal, mas concluiu que a determinação do efeito pela causa era uma construção da mente.
Verdade é que essa é apenas uma interpretação da crítica da causalidade desenvolvida por Hume, contudo ela tem emergido da releitura atenta de sua obra por vários especialistas. Galen Strawson, por exemplo, mostrou que Hume nunca negou a existência da relação causal, mas apenas a nossa possibilidade de conhecer a sua natureza. O que sabemos daquela relação é a conjunção entre a causa e o efeito. O mais, assim como a determinação de um pelo outro, é pura construção mental (STRAWSON, Galen. The hidden connexion. Londres: Oxford Press, 2012).
Para os que, como eu, consideram exagerado o subjetivismo de Kant, a posição de Hume tem grande atrativo, pois fornece a inspiração necessária para o retorno a um realismo básico provido de categorias, sem abrir mão das conquistas críticas. De Descartes a Hume e Kant, a Filosofia desenvolveu-se com engenho e persistência, numa direção eminentemente crítica. Uma consequência inevitável, porém nefasta disso foi a desintegração das categorias, já que, sem elas, é difícil conceber qualquer pensamento humano. Hume e a Física Quântica ajudam-nos a superar tal dilema.
Com efeito, um exercício sedutor de Filosofia, que salva o que é possível da doutrina das categorias sem abrir mão da postura crítica, consiste em reconhecer que Kant excedeu-se ao tornar o tempo, o espaço e as 12 categorias irremediavelmente subjetivos e que Hume pode ser relido de modo a minimizar a herança subjetivista daquele filósofo e ampliar o espaço para um realismo tão básico quanto baseado na ciência.
Que consequência têm essas descobertas para a filosofia do ser? Para tentar responder essa angustiante pergunta, é útil lembrar que, embora tenha levado seu subjetivismo tão longe, Kant manteve um espaço para a Metafísica, no interior do seu sistema. Fundamentou-a, porém, de maneira nova: não mais na essência ou na existência do ser, como as escolas anteriores haviam feito, mas no conhecimento. Para Kant, os conceitos metafísicos permanecem invulneráveis como formas ou pressupostos do conhecimento humano, não como essências existentes ou não. Sem aqueles conceitos, o conhecimento simplesmente não se desenvolve. Permanece mirrado, raquítico. Isso vale não só para Deus, a alma e a liberdade, mas também para as categorias, o tempo e o espaço. Por isso, Kant nos oferece a primeira posição possível em matéria metafísica, na era contemporânea.
A outra posição é a da maioria dos pensadores que tentam superar Kant. Esses filósofos sustentam que, se os conceitos metafísicos não correspondem a objetos reais, não se pode discorrer sobre eles. E aquilo de que não se pode falar deve ser calado. Essa é a outra solução mais comum do mistério do ser.
Hume fornece a inspiração para uma terceira posição, ao obviar o salto no precipício da questão metafísica, na medida em que não chega ao subjetivismo de Kant, porém abandona as posturas dogmáticas a respeito do espaço, do tempo e da causalidade. Permite, assim, considerar relevantes esses conceitos por uma conexão com o real que pode ser denominada realismo básico.
Trata-se de uma posição filosófica bastante fecunda. De uma verdadeira janela que se abre, na casa fechada da Filosofia atual, para o realismo básico e para a Metafísica. As consequências dessa posição para a Teodiceia são espetaculares. Por ela, ao Deus morto de Nietzsche sucede algo inteiramente imprevisto.