Ao giro copernicano proposto por Kant, no âmbito da Filosofia, seguiu-se outro, anticopernicano e reacionário, no da política europeia. Após a derrota de Napoleão, na campanha da Rússia, em 1812, e o fim da difusão dos ideais da Revolução Francesa que aquele estadista representou, uma onda de restaurações do Antigo Regime varreu a Europa.
Esses movimentos envolveram não só o retorno de dinastias antigas ao poder, mas o restabelecimento de um tipo autoritário de sociedade empregado com relativo sucesso para “manter a ordem”, durante milênios. É inegável que o uso da autoridade, nesses casos, infligiu um sacrifício brutal de vidas e de bem-estar às populações, mas não se pode deixar de notar que, embora comprada a esse preço, a “manutenção da ordem" continuou a parecer indispensável ao menos às pessoas que assistiram aos sacrifícios sem os padecer. É que a ordem sempre foi, para as sociedades, o que a sobrevivência é para a natureza. Assim como os animais lutam e não podem senão lutar pela sobrevivência, as sociedades combatem e têm de combater para não se romperem, ou seja, para manterem sua ordem interna.
No entanto, nenhuma condição histórica é como outra natural. Nenhuma condição histórica é eterna ou está fadada a um destino único e inevitável. Cedo ou tarde, soa sua hora final, e a vida tem de ser reinventada, pelos homens, senão com liberdade plena, ao menos sob condições históricas totalmente novas. A era moderna foi o início dessa hora, para a civilização ocidental. Nela, os povos começaram a notar a possibilidade de manterem a ordem sem o sacrifício de vidas e bem-estar oferecido durante tanto tempo. E compreenderam que valia a pena lutar por isso.
Mas como é difícil reinventar a vida humana! A cada grande avanço, seguem-se retrocessos. Foi o que se verificou na Europa, com o fim da Revolução Francesa, até que a modernização fosse retomada com os movimentos de 1848, a Comuna de 1870 e o avanço do pensamento socialista. Nesse intervalo encravado na Era das Revoluções, manifestou-se um violento movimento de reação às ideias de 1789 e à renovação da vida social. No campo da Filosofia, essa reação expressou-se de modo particularmente significativo no pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel.
Popper recorda: “O autoritarismo medieval começou a dissolver-se com o Renascimento. Mas, no continente europeu, a sua réplica política, o feudalismo medieval, não fora seriamente ameaçado antes da Revolução Francesa. (A Reforma apenas o fortalecera.) A luta pela sociedade aberta só voltou a começar com as ideias de 1789, e as monarquias feudais logo sentiram a seriedade desse perigo. Quando, em 1815, o partido reacionário começou a retomar o poder na Prússia, achou-se na extrema necessidade de uma ideologia. Hegel foi indicado para suprir essa necessidade” (POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: USP/Itatiaia, 1987. Tomo 2, p. 37).
O mesmo autor mostra que a filosofia política de Hegel foi moldada aos objetivos da dinastia no poder, na Prússia: “O coletivismo radical de Hegel depende tanto de Platão quanto depende de Frederico Guilherme II, rei da Prússia, no período crítico durante e após a Revolução Francesa. Sua doutrina é a de que o estado é tudo, e o indivíduo, nada, pois deve tudo ao estado, tanto sua existência física como espiritual” (idem. pp. 37-38). É algo evidente que essa doutrina foi forjada, por Hegel, para prestigiar as ambições de poder de Frederico.
Tal gênese política não é exclusiva da filosofia de Hegel. Pelo contrário, perpassa toda a Filosofia Moderna. Onde a separação entre Igreja e Estado implantou-se, a Filosofia deixou de derivar da fé para derivar do poder. A particularidade de Hegel foi a sua ligação com o soberano. Outros pensadores modernos associaram-se mais a instituições e partidos do que a líderes. Mas o comum a todos é que, ao se desconectarem da fé, aliaram-se ao poder. Não é demasiado cogitar que, sob essas novas condições, ao se emancipar da Teologia, a Filosofia não adquiriu o almejável status libertatis: antes, tornou-se escrava da política. E poucas vezes esse seu novo modo de ser foi visto em estado tão puro quanto em Hegel.
Cabe indagar, nesse caso: e o mérito interno da filosofia hegeliana? E o gênio desse pensador? Não foram determinantes para o enorme sucesso alcançado por ele? As opiniões variam muito a esse respeito. Schopenhauer, que o conheceu pessoalmente, declarou: “Hegel foi imposto de cima pelos poderes vigentes como o Grande Filósofo oficializado”. Notem bem as maiúsculas.
O contemporâneo de Hegel continua a descrevê-lo um tanto impiedosamente: “Era um charlatão de cérebro estreito, insípido, nauseante, ignorante, que alcançou o pináculo da audácia por garatujar e forjicar as mais malucas e mistificantes tolices” (SCHOPENHAUER, Arthur. Obras. Vol. II, p. 17).
O pior é que um filósofo como Popper, em vez de discordar desse parecer, ratificou-o. Para Popper, a mediocridade de Hegel como filósofo levou-o a lançar mão de uma linguagem às vezes impenetrável e propositadamente ininteligível. Motivada por mediocridade ou grandeza (não é o que mais importa), a ininteligibilidade permanece um fato. Popper deu dela o seguinte exemplo: “Escreve [Hegel]: O som é a mudança verificada na condição específica de segregação das partes materiais e na negação dessa condição; é meramente uma idealidade abstrata ou ideal, por assim dizer, dessa especificação. Mas essa mudança, em consequência, é imediatamente em si mesma a negação da subsistência específica material; o que é, portanto, a idealidade real da gravidade específica e da coesão, isto é, o calor. O aquecimento de corpos sonoros, assim como dos percutidos ou atritados, é a aparência de calor que se origina conceitualmente juntamente com o som” (POPPER, Karl. Ob. cit. p. 43). Uma verdadeira conversa de Caetano e Gil, nos bons tempos de Chico Anysio...
Mas é preciso pôr freio à muita radicalização. Às atribuições de mediocridade filosófica e às acusações congêneres, em que Schopenhauer e Popper incidem. Autor prolífico, dono de erudição incontestável e genuinamente interessado em questões metafísicas, Hegel foi grande a ponto de merecer sua inclusão na História da Filosofia, independentemente das relações que manteve com o poder em sua época. É preciso, porém, diferenciar grandeza de espírito do que se pode talvez denominar retidão filosófica. Não faltou grandeza intelectual a Hegel, mas lhe faltaram retidão e lisura. Hegel abusou conscientemente do hermetismo, do esoterismo, do solipsismo linguístico. Empregou toda sorte de artifícios para dobrar os espíritos. Teve lapsos de megalomania. E exerceu um poder brutal por meio do conhecimento.
Enfim, a proximidade do poder absoluto não caiu bem a Hegel. A frase de Lord Acton ressoa, nesse caso, como o grito abafado de um fantasma: “O poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. O poder absoluto parece ter corrompido absolutamente a filosofia do grande Hegel.
Examinemos, porém, mais de perto, as linhas mestras do pensar desse filósofo e sofista. O ponto de partida de Hegel, sua verdade inicial e inamovível são as ideias platônicas. Ele percebe que, concebidas à maneira de Platão, as ideias se tornam inconciliáveis com o materialismo que impregna tanto o senso comum quanto a ciência. Parte, pois, do velho pressuposto de que, se as ideias existem, a matéria não pode ser considerada a realidade fundamental. E, para combater os vícios materialistas arraigados em toda cultura, recomenda o remédio da dialética.
Que originalidade há nesse ponto de partida da filosofia de Hegel? Nenhuma. É platonismo puro. Que mérito há nele, além da inventividade palpável? Bem pouco, pois vimos que a atribuição de realidade às ideias não é mais que um vício do pensamento. E o método dialético: introduz algo novo? Sim, a contradição. Para Hegel, a contradição pode parecer ausente do mundo, somente quando o imobilizamos. No seu fluir, o real é pura e simples contradição, pois as coisas sempre fluem para o oposto: o que é quente esfria-se, o que se move, desacelera-se e tende ao repouso, o que vive caminha para a morte. Fluir é mover-se em direção ao oposto. Portanto, se a imobilidade é substancial, o movimento é dialético. Claro: esquecia-me de mencionar que Platão já dera essa descrição do movimento, na passagem do Fédon em que mencionou "o princípio geral da geração, segundo o qual das coisas contrárias é que nascem as coisas que lhes são opostas [...] O mesmo acontece com aquilo que se chama misturar-se, separar-se, aquecer, esfriar, e todas as outras coisas" (PLATÃO. Fédon. In Diálogos. São Paulo: Hemus. p. 118).
O problema é que o senso comum e a ciência baseiam-se no princípio de não contradição, que não pode ser aplicado ao que é precisamente contraditório. Isso não implica menos que a falsidade de todo o senso comum e de toda a ciência. De sorte que é preciso forjar outra lógica dos movimentos reais, que Hegel chama dialética.
Em que consiste essa lógica? Que procedimentos assinalam o pensar dialético? Hegel ensina que a dialética é o movimento em que as ideias (que ele denomina Absoluto) refletem-se em si mesmas. O primeiro momento dessa reflexão é a configuração das ideias em si. O segundo é o seu movimento para fora de si, que envolve a sua negação (contradição). Por fim, o terceiro momento é o retorno das ideias a si.
O primeiro momento dialético tem como resultado líquido o que Hegel denomina Ideia; o segundo gera a Natureza, em que as ideias adquirem um corpo, portanto se encarnam; por fim, o terceiro momento resulta no Espírito. Embora constitua um retorno da ideia a si mesma, o Espírito não se realiza numa sobrenatureza, mas na História (isto é, na Prússia!).
Hegel vai além. Enuncia três leis, que presidem os movimentos do real nos vários momentos dialéticos. A primeira lei é a da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa. O aumento da quantidade de qualquer elemento de um ser, além de determinado limite, produz uma transformação qualitativa. Friedrich Engels deu o seguinte exemplo da atuação dessa lei: “Se três átomos [de oxigênio] se agruparem em uma molécula, em vez dos dois átomos habituais [que formam o oxigênio], teremos o ozônio, corpo muito diferente do oxigênio ordinário, quer por sua cor, quer por sua ação” (ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. 6ª ed., São Paulo Paz e Terra, 2000. p. 37).
A segunda lei, por sua vez, enuncia a interpenetração e a conversibilidade dos opostos. Isso porque, para passar de uma coisa ao seu oposto, é preciso que a primeira contenha o último e vice-versa. A segunda lei explica os movimentos atrativos dos opostos, assim como os das cargas que se atraem, por tenderem ao estado uma da outra.
Por fim, a terceira lei dialética assevera que a toda negação corresponde outra de sentido contrário. Não se pode deixar de ver, nessa lei, uma generalização da ação e reação enunciadas por Newton: a toda ação corresponde uma reação de mesma intensidade e sentido contrário. Com a única ressalva de que Hegel vê a ação como uma primeira negação destinada a ser, ela própria, negada. Devido à terceira lei, tudo tende a retornar à sua forma originária.
Não convém passarmos sem um exemplo da terceira lei: "Se [um grão de cevada] cai em solo adequado e sofre as transformações certas por influência da umidade e do calor, o grão em questão germina. Isso significa que o grão deixa de existir. Ele é negado. No seu lugar, surge uma planta, que é a negação do grão. Qual é, entretanto, o processo normal de vida dessa planta? Ela cresce, floresce, é fertilizada e, ao final, produz outros grãos de cevada. Tão-logo amadurecem, estes últimos grãos, por sua vez, também morrem. Também eles são negados. Em consequência desta negação da negação, temos de novo um grão de cevada, não mais, aliás, um grão individual, mas dez, vinte, trinta deles" (ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Chapter 13. Disponível em: http://www.marxists.org). O exemplo é tão eloquente quanto claro. E tem a indefectível vantagem do ar de parábola materialista...
Não há distância intransponível entre a realização dialética das ideias, em Hegel, e a processão de todas as coisas a partir do Uno, em Plotino. Pelo contrário, há imitação desta doutrina naquela. A Ideia resultante do primeiro momento dialético não é muito diferente do Espírito e da Alma plotinianos. A Natureza de Hegel é a matéria plotiniana. E o Espírito é o retorno das coisas ao Uno.
Verdade é que os esquemas também apresentam certas diferenças. Além dos nomes variantes que atribuem aos momentos do devir geral, para Hegel, todas as etapas do movimento dialético são positivas. Ou, para dizê-lo melhor, cada etapa representa uma autorrealização mais plena do ser. Já para Plotino, a processão é um movimento decadente, até o abismo da matéria. Só o retorno ao Uno é ascendente.
Mas essas diferenças perfunctórias escondem a similitude profunda dos dois esquemas. A criatividade da dialética de Hegel é a de Plotino, retocada aqui e ali. O único problema é que elas padecem de um mal idêntico ao de todos os grandes sonhos: não são reais. Pior: tomam a ilusão por verdade, o vulto por corpo, a sombra por luz. Se isso é admissível na arte, na ciência é fatal.
Verdade é que Plotino e Hegel têm a favor de si uma atividade criadora de mundos sem paralelo na História do Pensamento, uma vocação demiúrgica que lhes escorre dos poros. Enfim, um método de realização que parece assimilado da encarnação do Logos no cristianismo. Mas que haveremos de replicar a um velho marxista rebelde que, parodiando, sugerir que Cristo trouxe à luz a tragédia, Plotino, a farsa, e a Hegel restou matar-nos de rir com a comédia?
Em Hegel, a Filosofia faz-se comédia. Platão fornece a matéria da mais pura objetivação das ideias; como um novo Plauto, Hegel lhes sopra a forma que, na História, não lhes tinha sido antes atribuída.