Embora a Filosofia Antiga e a Medieval pareçam oscilar como um pêndulo entre Platão e Aristóteles, seus seguidores e continuadores, um elemento presente na origem da Filosofia retorna ao primeiro plano, em muitos momentos, até o século V. Trata-se do materialismo dos antigos filósofos pré-socráticos.
Esse elemento era tão constitutivo da cultura grega que a propensão metafísica de Platão e Aristóteles não deve ser considerada um fruto característico daquela cultura, mas resultado de um esforço contrário a ela. Foi quase como uma reflexão antinatural. Por isso também, com o desaparecimento daqueles pensadores, o pendor materialista grego voltou a dar as cartas e a exercer sua hegemonia de modo inconteste na Filosofia grega. Sinais claros disso foram o recuo dos discípulos de Aristóteles a posições materialistas e o surgimento de uma série de escolas com abordagens diversas das dele e Platão.
Dentre as posições filosóficas propostas e de-fendidas, após Aristóteles, as que alcançaram maior sucesso foram quase todas materialistas. Por volta do século I, essas posições tinham-se tornado majoritárias, de novo, entre os filósofos. O epicurismo e o estoicis-mo são destacados exemplos disso. A narrativa de Atos dos Apóstolos mostra o apóstolo Paulo envolvido em discussões com filósofos, em Atenas. No entanto, entre as escolas ali existentes, aponta somente as dos estoicos e epicureus.
A menção dessas correntes, em Atos, deve refletir a notoriedade maior dos pensadores da Estoá e dos seguidores de Epicuro, no contexto de Atenas. Ela coincide com a afirmação de Cícero, um século antes, de que os estoicos, epicureus e acadêmicos eram as filosofias “mais consideráveis" da época (CÍCERO, Marco Túlio. De natura deorum. I, vi, vii).
Tanto os estoicos como os epicureus eram materialistas. Os primeiros o eram no sentido tradicional. Não deixavam de ser religiosos e de acreditar nos deuses. Os epicureus iam além dessa posição, pois consideravam toda matéria constituída por átomos irredutíveis a qualquer outra coisa, que se entrechocavam de modo a formar os objetos que conhecemos.
Santo Agostinho viveu numa época em que esse ainda era o cenário da Filosofia. Recebeu educação romana típica. Foi um retórico, admirador de Cícero e estudou as correntes filosóficas da sua época, tanto antes quanto depois de aderir ao maniqueísmo, uma mistura de religião persa, filosofia grega e cristianismo.
O gênio filosófico de Agostinho faz questionar por que abraçou doutrina tão exótica quanto o maniqueísmo, quando filosofias mais sofisticadas e bem aça-badas estavam à disposição, assim como o neoplatonismo, o ceticismo acadêmico e o neoestoicismo.
A resposta envolve vários fatores. O primeiro foi a idade (19 anos) com que Agostinho se converteu ao maniqueísmo. Em segundo lugar, nenhuma das escolas citadas acima era cristã, o que não satisfazia Agostinho, que fora conduzido por sua mãe a admirar os ensinamentos de Cristo. Embora considerado herético, por seguir uma versão gnóstica de cristianismo, o maniqueísmo ao menos propiciava o contato com o Novo Testamento.
O neoplatonismo tinha uma doutrina, em geral, mais próxima do cristianismo. Porém, para a mente romana de Agostinho, ele tinha o inconveniente de não ser materialista, como o maniqueísmo, que sustentava que tudo é constituído de matéria. É, portanto, possível que o materialismo maniqueísta tenha pesado e até desempatado o concurso das filosofias, na mente juvenil de Agostinho.
Esse contexto ajuda a entender que a consagração de Agostinho a Cristo, que se tornou definitiva com o seu desligamento do maniqueísmo, importou a rejeição do materialismo que ele professara e ao qual convertera vários de seus amigos. Esse materialismo implicava que tudo o que existe é feito de matéria, a qual é eterna.
Ao se converter, Agostinho passou a considerar a matéria criada por Deus, portanto não mais eterna. Do mesmo modo, a dimensão principal da realidade passou a ser constituída por espíritos imateriais. Em síntese, a conversão de Agostinho constituiu uma substituição não só do maniqueísmo, mas também do materialismo pela filosofia platônica.
Santo Agostinho destaca-se, na História da Filosofia, não só por ter pertencido, sucessivamente, aos polos materialista e metafísico do pensamento antigo, mas por ter sido responsável pela mais significativa superação do materialismo não apenas até a sua época, mas talvez em todos os séculos.
Esse juízo se justifica por que os grandes filósofos patrísticos, de Orígenes a Santo Agostinho, passando por Gregório de Nissa, constituem uma era de ouro encravada na Filosofia Antiga. Ao menos do ponto de vista da filosofia do ser, nem antes, nem depois desse período foram construídas soluções tão plausíveis para o impasse a que o pensamento de Platão e Aristóteles conduz.
Se Platão e Aristóteles comandam a Filosofia, eles trazem também problemas que os filósofos patrísticos que souberam superar o platonismo resolveram de maneira suprema. Agostinho é o exemplo típico e até mesmo o modelo desses pensadores, pois superou a concepção materialista de um modo que outros grandes pensadores cristãos, como Tertuliano, não conseguiram alcançar. Por exemplo, “Tertuliano acreditou que a alma é um corpo, não por outra razão senão porque não conseguiu pensá-la como incorpórea, por isso teve receio de que fosse nada, se não fosse um corpo” (HIPONA, Agostinho de. Comentário literal ao Gênesis. In Comentário ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 380).
A influência do materialismo sobre um cristão como Tertuliano causaria espanto, se não compreendêssemos que a primazia da matéria não era só uma filosofia, mas uma ideia conformadora do modo de pensar das pessoas, no mundo romano. Tão conforma-dora, aliás, que nem uma das mentes mais brilhantes dos primeiros séculos, alimentada com o ensinamento dualista do Novo Testamento, conseguiu livrar-se dele.
Agostinho não só abandonou o materialismo ao se converter ao cristianismo como veio a se tornar o mais importante coveiro dele. O ponto de partida, para essa reviravolta, Agostinho encontrou-o na ideia judaica de criação a partir do nada, como se nota na seguinte passagem: “Deus criou todas as coisas do nada, pois, embora todas as coisas dotadas de forma tenham sido feitas desta matéria [mencionada em Gênesis 1:2], contudo, esta matéria foi feita do nada absoluto” (HIPONA, Agostinho de. Sobre o Gênesis cotra os maniqueus. In Comentário ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 510).
Porém, essa mesma afirmativa permite perceber que Agostinho desmontou o materialismo antigo, sem deixar de atribuir à matéria um papel central na criação. Para ele, o que Deus criou do nada foi a matéria dos céus e da terra citados em Gênesis 1:1. Todas as outras coisas foram formadas dessa matéria primordial e informe.
Esse ponto de partida é importante não só para a teologia, mas também para as definições filosóficas do pensamento de Santo Agostinho. Para melhor exprimi-lo, Agostinho adotou a noção de razões seminais (spermátikos logoi) desenvolvida pelos estoicos, como Orígenes e Gregório de Nissa já haviam feito antes dele. Aristóteles tinha ensinado que a matéria é isenta de forma. Porém, depois dele, os estoicos tinham sugerido que, embora não possua forma, a matéria contém as sementes ou germes das formas que vemos no mundo. Essas sementes foram denominadas razões seminais pelos estoicos.
A ideia de razão seminal tinha a considerável vantagem de evitar a concepção aristotélica, segundo a qual a forma vem de não-sei-onde para se unir à matéria a fim de constituir todas as coisas. Se a forma está na matéria, ainda que em germe, como os estoicos afirmaram e os pensadores patrísticos aceitaram, seu surgi-mento pode resultar de um processo de desenvolvimento. Assim, a forma não tem existência metafísica própria, num lugar à parte, antes de se unir à matéria ou após o intelecto extraí-la dos dados sensoriais.
Ouçamos o próprio Agostinho: “Assim como, observando a semente da árvore, dizemos que ali estão as raízes, o tronco, os ramos, os frutos e as folhas, não porque já existam, mas porque dela existirão, do mesmo modo foi dito: No princípio, Deus criou o céu e a terra, como que uma semente do céu e da terra, estando ainda indeterminada a matéria do céu e da terra [...] To-dos estes nomes, seja céu e terra, seja terra invisível e vaga e abismo tenebroso, seja água sobre a qual pairava o Espírito, são designações da matéria informe” (Comentário literal ao Gênesis. pp. 511-512). Assim, para Agostinho, a matéria primordial de Gênesis 1:2 foi cria-da do nada com as sementes de todas as coisas.
A trabalhosa coleta de pontos de filosofias várias e a sua combinação num todo coerente, pelos filósofos patrísticos e Santo Agostinho em particular, criou a segunda era de ouro da Metafísica, após as obras de Platão e Aristóteles, que constituíram a primeira. A terceira era viria com o desenvolvimento da Filosofia Árabe e da Escolástica Medieval.
O pensamento metafísico de Agostinho apresenta diversas vantagens em relação ao de Platão e Aristóteles, sem mencionar as filosofias materialistas, cujo fundo não era mais que expressão filosófica do senso comum, o qual nos informa incessantemente que tudo o que existe é matéria, mais sólida ou rarefeita.
Por outro lado (e isso é parte da sua esmerada construção filosófica), Agostinho não recorreu ao imaterial para explicar o que ocorre ordinariamente, assim como a combinação de matéria e forma nas coisas, já que, para ele, a forma é inerente à matéria e se desenvolve por processos tão naturais quanto o leva a semente a se transformar em árvore. Desse modo, a vigorosa afirmação do imaterial, por Agostinho, não se deu com prejuízo para a explicação mais simples possivel dos processos naturais observados.
Agostinho adotou ainda outra teoria corretiva de erros antigos afirmada também por Orígenes, segundo o qual as ideias têm existência estritamente mental em Deus. Essa transferência das ideias de um cosmos inteligível para a mente divina é importante por retirar-lhes a objetividade que tinham ostentado desde Platão e evitar o erro da substantificação.
Na prece com que abre o livro dos Solilóquios, nosso autor se refere a uma série de ideias abstratas como conteúdos da mente de Deus. Com isso, Agostinho reafirma claramente o caráter intelectual das ideias, não as converte em coisas, pessoas ou qualquer outro ser.
Nas palavras da famosa prece: “Eu te invoco, Deus Verdade, em quem, por quem e mediante quem é verdadeiro tudo o que é verdadeiro. Deus Sabedoria, em quem, por quem e mediante quem têm sabedoria todos os que sabem. Deus, verdadeira e suprema Vida, em quem, por quem e mediante quem tem vida tudo o que goza de vida verdadeira.Deus Felicidade, em quem, por quem e mediante quem são felizes todos os seres que gozam de felicidade. Deus Bondade e Beleza, em quem, por quem e mediante quem é bom e belo tudo o que tem bondade e beleza. Deus Luz inteligível, em quem, por quem e mediante quem tem brilho intenso tudo o que brilha com inteligência” (HIPONA, Agostinho de. Solilóquios. São Paulo: Paulus, 1998. pp. 16-17).
A importância dessa concepção das ideias só é totalmente aquilatada, ao considerarmos a influência da teoria das formas de Aristóteles, ao longo da História. De acordo com essa teoria, formas como a brancura existem, ao mesmo tempo, nas coisas e no intelecto de quem as pensa. Para Santo Agostinho não. Para ele, a ideia de branco que está no intelecto não é o mesmo que a forma que vemos nas coisas, após a eclosão e desenvolvimento das razões seminais. É algo que lhe corresponde. Assim Agostinho evita a substantificação das idéias.
Por não colocar as idéias num mundo à parte, Santo Agostinho pôde escrever sobre o versículo 20 do capítulo 11 do Livro da Sabedoria: “Pense se estas três coisas: medida, número e peso [que são três ideias], nas quais, conforme está escrito, Deus ordenou todas as coisas, existiam em alguma parte antes que fossem criadas todas as criaturas, ou se também elas foram criadas; se existiam antes, onde estavam. Pois antes da criatura, nada havia a não ser o Criador. Portanto, existiam nele [...] E o afirmado: Tudo dispuseste com medida, número e peso, nada mais significa, de acordo com o que foi possível à mente e à língua humanas, senão: Dispuseste tudo em ti” (Comentário literal ao Gênesis. p. 123).
Medida, número e peso existem na mente de Deus como ideias. A mente (de Deus e das criaturas) é o único e exclusivo lugar das idéias, no pensamento de gostinho. A afirmação de que a medida, o número e o peso foram também criados significa que o foram sob outra forma. Do contrário, Deus seria o mesmo que a natureza, e Agostinho seria panteísta. Como Deus não é a natureza, e Agostinho não é panteísta, segue-se que a sua doutrina das ideias supõe clara separação entre elas e as coisas.
Noutra célebre passagem, Agostinho reafirma a imanência da ideia na mente, ao compará-la com a Trindade: “Há na criatura humana uma imagem interiorizada da Trindade: a mente, o conhecimento de si mesma e o amor. Essas três realidades são iguais e da mesma essência [...] A mente que ama e que conhece é substância; seu conhecimento é substância; seu amor é substância” (HIPONA, Agostinho de. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. Livro IX, Introdução, Cap. 4, pp. 285, 292).
Alguém poderia enxergar, nesse trecho do autor patrístico, uma afirmação da substancialidade independente das ideias e dos sentimentos, na linha proposta por Platão e reafirmada em quase todo o platonismo. Mas isso demandaria converter Agostinho em triteísta. Como a intenção expressa dele, em A Trindade, era afirmar o monoteísmo e não o triteísmo, a interpretação correta da passagem é a que reconhece que o conheci-mento e o sentimento têm substância, porém não pró-pria, vale dizer, que eles participam da substância da mente e são o que a mente é. Portanto, não existem fora da mente.
A concepção das ideias como pensamentos de Deus é anterior a Orígenes e Agostinho. Estava presente em Fílon de Alexandria, em representantes do Platonismo Médio e em Plotino. Porém, Fílon considerava que as ideias também se projetaram fora da mente divina, ao constituírem o cosmo inteligível, que serviu de modelo para a criação do mundo físico. Pensava, portanto, que as ideias subsistiam, ao mesmo tempo, em Deus e fora dele. Em geral, os platônicos médios e o próprio Plotino pensavam da mesma maneira.
Coube a Orígenes e Agostinho desenvolver a noção das ideias como pensamentos de Deus não objetivados num cosmo como o de Fílon ou o de Plotino, que denominou Espírito as ideias subsistentes fora da mente divina. E, como as de Plotino e Agostinho são as mais importantes reformas da doutrina das ideias na Antiguidade, não é difícil perceber a superioridade da doutrina de Agostinho a todo o neoplatonismo.
Claro que o legado filosófico de Santo Agostinho não inclui só intuições luminosas como essas, mas também ideias duvidosas. Exemplos dessas limitações no seu pensamento são, a meu ver, a teoria da iluminação e a concepção de alma de Santo Agostinho. A primeira teria permanecido fora do alcance da crítica, se tivesse sido aplicada somente à revelação. Mas Agostinho estendeu seu alcance a todo o conhecimento, desde o mais simples ao mais complexo. Para ele, todo conhecimento se dá na medida em que Deus ilumina o intelecto. Embora de grande valor para a religião, essa hipótese é, no mínimo, desnecessária como explicação de conhecimentos simples.
A psicologia agostiniana também apresenta problemas. É por demais tributária do dualismo platônico. A favor do filósofo patristico, pode-se lembrar que o seu dualismo não chegava aos extremos do de Platão. Agostinho não considerava "possível dizer qual é a substância da alma", embora soubesse que não é constituída dos quatro elementos de que é feita a matéria, isto é, "nem de terra, nem de água, nem do ar, nem do fogo" (HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. In Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2008. p. 260).
Vemos por que a época de Santo Agostinho foi aquela em que a Filosofia superou, ao mesmo tempo e com maior nitidez, o materialismo e a substantificação das ideias. O interesse, o volume e o refinamento da Metafísica aumentarão muito, até o século XIV. Porém, no que concerne aos dois problemas que mais de perto nos interessam, a História da Filosofia só tem uma Época de Ouro, e ela é o período entre os séculos III e V. Tão vigorosa e profunda foi a refutação do materialismo que então se produziu que esse polo da reflexão filosófica ficará despovoado, até o século XIX, quando os mate-rialismos ensaiarão seu retorno, com vigor e propostas renovadas.
Parte dos novos materialismos foi superada pelo avanço do conhecimento. Outra parte arruinou-se com o Muro de Berlim, do qual já se disse tudo menos da relação que tem com a Metafísica. Deve ter alguma, já que o homem atual continua entregue às obras opostas que o Santo de Hipona tão bem descreveu: "Dois amo-res fundaram duas cidades: o amor a si, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si, a celestial" (HIPONA, Agostinho de. A cidade de Deus – contra os pagãos. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 1989. Livro XIV, Cap. 28). Se o amor a Deus requer o complemento da razão, ninguém melhor que Agoatinho indicou o seu fundamento filosófico.