Um exame realmente isento do impasse criado pelo erro platônico revela que a sucessão de gênios invulgares, surgidos ao longo da História, de modo nenhum bastou para livrar a Filosofia e a própria ciência do lodaçal dos vícios de pensamento em que permanecem atoladas. Apesar da estonteante variedade de doutrinas até hoje propostas, a impressão que se tem, ao considerar a validade sempre condicionada delas, é a de completa ausência de progressos na História da Filosofia.
A repetição disfarçada do mesmo faz lembrar o que o Pregador afirmou, no seu próprio tempo, e que o levou a proclamar o esgotamento da dispensação da lei, em termos tão poéticos quanto universais: “Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar onde nasce de novo. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; volve-se e revolve-se, na sua carreira e retorna aos seus circuitos. Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr [...] Os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir. Nada há de novo debaixo do sol” (Ec 1:5-9).
A linguagem poética é universal. Não há, pois, confusão alguma em transpô-la da Religião à Filosofia ou desta de volta àquela. Seu poder evocativo não se dissipa por isso. É o que melhor expressa o “lado de dentro” das coisas. E a Filosofia também tem o seu lado de dentro, no qual a ausência de progressos se manifesta como enfado. Por isso, as perguntas parecem mesmo justificadas: há verdades objetivas na Filosofia ou as suas doutrinas são meras interpretações possíveis do real? Há progresso no saber filosófico? Qual é a utilidade dos questionamentos que a Filosofia tece tão longamente quanto Penélope seus panos?É preciso enfrentar tais perguntas, sem fugas ou movimentos circulares. Tenho escrito esta obra na tentativa de enfrentá-las e para propor uma resposta, limitada e modesta, é verdade, mas claramente afirmativa para elas. Creio que, embora o avanço filosófico seja muito mais difícil que o da ciência, a dificuldade não se confunde com impossibilidade. Como a natureza, a Filosofia não dá saltos, antes realiza avanços ao passo da tartaruga do paradoxo.
Os progressos da Filosofia manifestam-se, pouco a pouco, nas suas várias etapas de desenvolvimento. Porém, em dois momentos, eles se intensificam. O primeiro foi o da descoberta da inteligibilidade e do inteligível por Platão. O desenvolvimento dessas noções constituiu uma descoberta, pois até então o espírito, não só entre os gregos, mas em todos os povos, tinha sido concebido como atrelado à matéria. A exceção tinha sido Israel, mas até mesmo ele pensara a transcendência habitada somente por Deus. Os anjos vieram mais tarde.
Coube a Platão propor a existência de uma dimensão metafísica povoada por infinitos seres. Notemos que, embora inverificável em sentido pleno, certas implicações da hipótese platônica podem ser testadas e refutadas ao menos em parte. Não foi por outro motivo que a substantificação das ideias, em que ela incorre, pôde ser apontada como um dos erros mais básicos do pensamento.
O segundo momento de progresso acentuado, na História da Filosofia, foi o início do século XX, quando um acúmulo de descobertas revolucionárias, na Matemática, na Geometria e na Física, levou vários filósofos a repensar não apenas as concepções metafísicas clássicas, mas também as de Kant, Hegel e outros.
Nenhuma escola particular foi responsável pelas descobertas desse período, embora se tenha tornado comum associá-las ao Neopositivismo. Discordo da associação, pois as descobertas da etapa a que me refiro foram realizadas por filósofos de várias escolas, como Ludwig Wittgenstein, Bertrand Russell, Alfred North Whitehead, Karl Popper e outros, o que impede a sua ligação a correntes de pensamento muito determinadas.
Russell utilizou seus conhecimentos matemáticos para refutar as concepções de espaço e de tempo vigentes na sua época, as quais tinham forte influência de Kant e Bergson. Suas ideias sobre esses temas se dão a conhecer na seguinte passagem: “A opinião de que toda separação [entre seres] implica espaço é tida, atualmente, como estabelecida e é empregada dedutivamente para provar que o espaço está implicado onde quer que haja claramente separação, por menor que seja a razão para se suspeitar tal coisa. Assim, as ideias abstratas, por exemplo, se excluem evidentemente: a brancura é diferente da negrura, a saúde é diferente da doença, a estupidez é diferente da sabedoria. Daí todas as ideias abstratas implicarem espaço” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Quarto, Cap. XXVIII, p. 368).
Nada mais claro: onde há separação de coisas, há espaço. Não se pode negar assertiva tão elementar. Se o corpo A está separado de B, o que há entre eles é espaço. Até aqui, movemo-nos não apenas no âmbito da filosofia de Bergson, mas do senso comum. Porém, as ideias desse pensador correu o mundo, na primeira metade do século XX, e versões mais radicais do seu pensamento foram propostas. O que Russell combate é uma dessas versões: a que generaliza a espacialização do pensamento empírico, que impera na Física, para o pensamento ideal, portanto para conceitos como a brancura. Russell denuncia o vício consistente em considerar que a razão representa não só "as coisas umas ao lado das outras no espaço”, mas também os conceitos como se fossem justapostos.
Essa afirmativa pode ser encontrada, aqui ou ali, na obra de Bergson. Em O que Aristóteles pensou sobre o lugar, ele escreveu: “Se Aristóteles tivesse chegado ao âmago da doutrina um pouco obscura dos pitagóricos, não sei se não se afastaria um pouco de sua própria maneira de ver. Ele teria entendido que o espaço inane – ainda que não possa ser definido ao modo dos físicos – nos é necessário em nossas cogitações, para distinguirmos umas coisas de outras e também umas noções de outras noções” (BERGSON, Henri. O que Aristóteles pensou sobre o lugar. Campinas: Unicamp, 2013. p. 59).
Nesse texto, Bergson afirma que o espaço é necessário não só para distinguirmos um objeto físico de outro, mas também as noções. Porém, ele relaciona essa concepção à “doutrina um pouco obscura dos pitagóricos”. É, pois, uma expansão das ideias de Bergson, que ele tomou emprestado dos pitagóricos. Porém, não é, de maneira alguma, uma ideia central do pensamento do filósofo francês como a duração, a intuição, a evolução criadora ou o élan vital.
Não devemos, portanto, colocar no lugar central do pensamento de Bergson a versão radical da crítica da espacialização pela qual ele chegou a atribuir ao espaço um papel na distinção de conceitos puros. O núcleo da crítica da espacialização de Bergson, não é esse. Pode ser encontrado em obras às vezes mais difíceis e negligenciadas, como Duração e simultaneidade (São Paulo: Martins Fontes, 2006), na qual aquele filósofo comparou cuidadosamente o seu conceito filosófico de duração às descobertas da Teoria Especial da Relatividade, de Einstein, a fim de dar expressão exata ao seu pensamento. Se essa obra de Bergson fosse lida com a necessária frequência e atenção, seria possível extrair dela uma delimitação muito mais precisa da crítica à espacialização do que por vezes se encontra nas fileiras do bergsonismo.
Essa é a espacialização que Bergson provou. Devemos denominá-la espacialização do pensamento empírico, não do ideal ou puro. O que vai além dessa conclusão não provém de Bergson. Pelo contrário, é exagero do bergsonismo ou, quando muito, um desdobramento incidental destituído da importância que tem a denúncia da espacialização do pensamento empírico.
O que Russell refuta, portanto, é muito menos o pensamento de Bergson do que s aplicação exagerada dele por seus discípulos. Ele lança mão da Matemática Moderna para desenvolver a refutação desses últimos: “Se, com os matemáticos, evitarmos a suposição de que o movimento é também descontínuo, não cairemos nas dificuldades dos filósofos. Num cinematógrafo [projetor], em que há um número infinito de quadros [formando um filme], não há um único quadro seguinte, porque um número infinito vem entre dois quadros quaisquer” (idem. p. 370). Por que é assim? Porque onde cabem números, cabem infinitos deles. Russell quer sugerir que, se a Matemática é aplicável à Física, como a ciência parece indicar, o movimento é formado por infinitos atos.
É surpreendente, mas Russell encontra infinitos momentos entre dois momentos de um movimento, assim como encontra infinitos números entre dois números. Os princípios dessa concepção, que ele utiliza para refutar a continuidade do movimento, aplicam-se tão bem às noções kantianas de espaço e de tempo subjetivos: “Se adotamos a tese, que na física se tem por assentada, de que os nossos perceptos [objetos de percepção] têm causas externas que são (em certo sentido) materiais, somos levados à conclusão de que todas as qualidades reais dos perceptos são diferentes das de suas causas [por exemplo, os comprimentos de ondas que percebemos como cores não são verdadeiras cores], mas que há uma certa semelhança estrutural entre o sistema de perceptos e o sistema de suas causas. Há, por exemplo, uma correlação entre as cores (tais como são percebidas) e os comprimentos de onda (tais como são inferidos pelos físicos). Deve haver, do mesmo modo, uma correlação entre o espaço como ingrediente dos perceptos e o espaço como ingrediente do sistema das causas não percebidas dos perceptos. Tudo isto se baseia na máxima ‘mesma causa, mesmo efeito’, com o seu anverso ‘diferentes efeitos, diferentes causas’” (idem. Cap. XX, p. 267).
Não precisamos considerar que Russell esteja certo em todos os pontos dessa refutação para entendermos que ele se baseia em avanços muito bem demonstrados da Matemática, da Geometria e da Física. Podemos perguntar, com razão, para que insistir no subjetivismo espacial de Kant, se a ciência estabeleceu correlação clara e objetiva entre o espaço real e a nossa percepção dele.
Algo semelhante pode ser afirmado do tempo: “Uma coisa-em-si A produz a minha percepção do relâmpago, e outra coisa-em-si B produz a minha percepção do trovão, mas [para Kant] A não foi anterior a B, já que o tempo só existe nas relações de perceptos [na mente humana]. [...] Tomemos um caso como o seguinte: ouvimos um homem falar, respondemo-lhe e ele nos ouve. O seu ato de escutar [...] sucede a nossa resposta. Ademais o seu falar precede a nossa ação de escutar [...] Está claro que a relação [designada pelas palavras] precede e sucede deve ser a mesma em todas estas proposições [algumas das quais se referem a ocorrências mentais, e outras, a extramentais]” (idem. pp. 265, 268).
De novo, encontramos a correlação. Russell não hesita em concluir que “não há nenhum sentido em que o tempo perceptual seja subjetivo” (idem. p. 268). Suas críticas podem parecer diletantismo de filósofos, ocupados ou desocupados, mas não o são. Para entender por que, basta recordar que, neste ponto da nossa dissertação, das categorias aristotélicas, resta só pó. E as kantianas, que as substituíram, estão interditadas pela Defesa Civil, por risco de desabamento. E, ao sermos despojados das categorias aristotélicas e as kantianas, não ficamos só sem brinquedos filosóficos. Ficamos sem uma imagem do mundo, já que não é possível entender coisa alguma do que ocorre sem o tempo, o espaço e as 12 categorias que Kant deles deduz.
Ou não deduz? Alguém negará que as categorias kantianas (unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substância, causalidade, comunidade, possibilidade, existência e necessidade) derivam do espaço e do tempo e não subsistem sem eles? Que diz Kant a esse respeito? Ele escreve: “Chamo dedução transcendental o exame do modo como conceitos a priori podem ser aplicados a objetos e o distingo da dedução empírica” (KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 39, p. 54).
Com essa diferenciação, Kant quer enfatizar que há conceitos a priori derivados de outros. Esses conceitos de que outros derivam a priori são, antes de tudo, as categorias. A razão desse fato é fácil de perceber: “Podemos colher dos fenômenos uma lei, segundo a qual isso ou aquilo usualmente acontece, mas o elemento de necessidade não será encontrado” (idem. p. 47). A experiência não nos autoriza a entender qualquer objeto sob as relações necessárias a que as categorias os sujeitam. Portanto, temos de concluir que a necessidade é ínsita às categorias enquanto noções a priori, não aos fenômenos.
Mas e as próprias categorias: são deduzidas de leis empíricas ou de puros conceitos? Kant rejeita o caminho da dedução empírica. E acrescenta: “Há apenas duas condições de possibilidade do conhecimento de objetos: primeiramente, a intuição [percepção] [...] em segundo lugar, o conceito [a categoria], por meio do qual o objeto que corresponde àquela intuição é pensado” (idem. p. 47).
A categoria é, para Kant, o que faz o objeto corresponder à intuição. É o que o conforma a ela. Por isso, o entendimento se subordina à intuição, não o contrário. De sorte que o fundamento do suntuoso edifício lógico do conhecimento são o tempo e o espaço a priori.
Mas as dificuldades criadas pela crítica de Russell não nos autorizam a substituir o espaço e o tempo de Kant pelo espaço-tempo de Einstein, a fim de salvar o edifício do conhecimento, já que, na teoria de Einstein, o espaço-tempo é deduzido empiricamente, ao passo que, em Kant, eles integram um procedimento transcendental. A dedução empírica não combina com a transcendental. Fica ainda pior como remendo de pano novo em vestido velho. Portanto, só há uma solução: substituir o edifício inteiro das categorias kantianas, que está em vias de desmoronar.
Melhor desistir? Não, pois sem as categorias não há como formar uma imagem do mundo. E sem imagem do mundo, não podemos sequer nos comunicar. Toda tentativa de comunicação é como nuvem de palha ao vento. É como pólvora não detonada.
Infelizmente, Russell não se preocupou em reapresentar as categorias, após ter destruído as de Kant, o que nos leva a indagar se, como filósofo da linguagem, ele não cavou a sepultura daquela escola, com a pá de sua crítica. Comunicar o quê, se não há tempo, espaço ou categorias? Se as 12 pedras foram sepultadas no rio Jordão?
A Filosofia é um método lógico, que só pode ser bem exercido com uma base de conhecimentos empíricos ampla e atualizada. Por isso, é de todo indispensável desenvolvermos o método filosófico pari passu com o científico e a Filosofia à luz da ciência. Mas essa não é uma tarefa em que alguém possa obter sucesso, pela simples utilização simultânea dos dois saberes. Abordagens interdisciplinares não bastam. Tampouco a conversa hoje disseminada de transdisciplinaridade. Numa direção reflexiva muito diferente dessas, é preciso encontrar, na História do Pensamento, os exatos pontos em que os dois conhecimentos se interceptam do modo mais luminoso e construir sobre eles.
Isso se realizou de forma exemplar, no início do século passado, quando avanços científicos extraordinários bateram à porta da Filosofia, e alguns comensais a abriram. Marx tinha realizado algo parecido, na interface da Economia e da Filosofia Social. O que obteve de mais perene constitui seu legado específico. Mas fatos tão incomuns quanto esses passaram quase despercebidos. E o pior é que, em ocasiões anteriores e posteriores, descobertas tão ou mais extraordinárias bateram à porta da Filosofia, e ninguém lhes abriu.
As descobertas matemáticas que Russell utiliza têm o potencial senão de salvar totalmente, ao menos de preservar um conteúdo para as categorias clássicas. Na concepção desse filósofo, elas não devem corresponder a nada. Antes de Russell, Hume tinha propugnado um ponto de vista semelhante. Depois dele, a Física Quântica o reforçou ainda mais. De modo que as categorias foram envolvidas em dúvidas, mas não exatamente desintegradas. Forçoso é desenvolver um tratamento para essas dúvidas, o que tentarei em outros textos.
Drummond escreveu: “A porta da verdade/ Estava aberta/ Mas só deixava passar/ Meia pessoa de cada vez”. Mostrou-nos, com isso, como é difícil entrar pela porta. Mas o pior sobrevém, quando a própria verdade é barrada ou quando tomamos a chave da porta, não entramos e não permitimos que entrem os que o desejam (Lc 11:52). Quantos achados científicos deixaram de ser trabalhados, no âmbito filosófico, com a minúcia e o domínio que Russell, Whitehead, Popper e outros alcançaram dos seus! Quantos permanecem sob o pó do esquecimento e o ávido olhar das traças!
O edifício da verdade está interditado. Sua porta, lacrada. Mas poucos parecem ligar. O antiprofeta já os consolou: “Temos arte o bastante para não morrer da verdade!” Como se houvera bradado: Viva o edifício da arte! Dane-se o da verdade!