A Carta de Deus escrita por Einstein um ano antes de morrer foi levada a leilão, em 2012, com lance mínimo estipulado em três milhões de dólares. Muito se tem debatido o que o cientista pode ter escrito, em tal carta, para justificar o interesse expresso em cifra tão astronômica. A resposta mais correta, embora pouco adequada a um leilão, parece ser nada que ele não tenha afirmado, ao longo de todo o restante da sua existência dedicada à ciência.
O documento tornou-se célebre por ter sido escrito por Einstein e por conter comentários (ao livro de Erik Gutkind intitulado Choose life: the biblical call to revolt) como os seguintes: “Para mim, a palavra de Deus não é mais que a expressão e o produto da fraqueza humana. A Bíblia é uma coleção de lendas primitivas que se mostram honoráveis e, não obstante, infantis. Quanto às sutis interpretações da Bíblia [propostas pelos teólogos], são multiformes em natureza e quase nenhuma relação mantêm com o texto original.” E também: “Para mim, a religião judaica, como todas as outras religiões, é uma encarnação das mais infantis superstições”.
Na sua carta, Einstein contrapõe a visão de mundo bíblica às ideias do “maravilhoso Spinoza”, como ele denomina o filósofo judeu Baruch Spinoza, que viveu no século XVII. Porém, a contraposição foi afirmada, por Einstein, ao longo de toda a sua vida. Por isso, não tem, na carta, a força de testamento, que Richard Dawkins (autor de Deus, um delírio) tenta emprestar-lhe na mídia.
No livro A equação de Deus – como Einstein transformou o conceito de religião (2ª ed., São Paulo: ARX, 2006), Corey S. Powell, editor da revista científica Discover e colaborador de Scientific American, propôs que a devoção do físico alemão à racionalidade do Universo constituiu uma autêntica reorientação da fé religiosa abraçada no colégio católico da infância. Anos mais tarde, Einstein encontrou, em Spinoza, a expressão filosófica mais límpida de suas ideias sobre o Universo. Expressão tão perfeita que o cientista, simplesmente, aderiu a ela. Tornou-se célebre o diálogo em que o rabino Herbert Goldstein, da Sinagoga Institucional de Nova York, perguntou a Einstein se acreditava em Deus, e ele respondeu: “Acredito no Deus de Spinoza, que se revela na harmonia de todos os seres, não no Deus que se interessa pela sorte e ação dos homens”. Para quem não se lembra, o Deus de Spinoza a que Einstein se referiu está na natureza e é idêntico a ela (panteísmo).
Por motivos como esse, Powell considera que a passagem de Einstein do catolicismo ao spinozismo constituiu uma autêntica conversão religiosa, que assumiu expressão científica cada vez mais indelével, conforme ele realizava as suas descobertas. Não foi à toa que, em frases como a citada acima, Einstein exprimiu suas ideias científicas em linguagem religiosa. Ele falava mais sério do que se supõe quando fez aquela declaração e também ao afirmar que “Deus não joga dados” ou que a sua empreitada científica consistia em “saber como Deus criou este mundo". "Não estou interessado neste ou naquele fenômeno", disse, "no espectro deste ou daquele elemento. Quero saber os Seus pensamentos.” Tampouco brincava ao declarar: “Quando julgo uma teoria, eu me pergunto: se eu fosse Deus, teria disposto o mundo dessa maneira?” (POWELL. Corey S. Ob. cit. p. 67).
Mas, se o pensamento de Einstein exprime sua transição de uma ideia teológica a outra e não o abandono de ideias teológicas, reduzir o seu panteísmo ao ateísmo, como Richard Dawkins faz, é filosoficamente tão equivocado quanto explicar a combustão com base no flogisto ou postular a transmutação dos metais inferiores em ouro. Equívocos como o de Dawkins não são incomuns, em tempos em que o conflito teísmo-ateísmo assumiu um grau perigoso de radicalização.
No pensamento dos grandes cientistas, há um espaço plástico e flexível, embora recôndito, reservado à mística. No passado, esse espaço foi ocupado pelo flogisto e pela alquimia newtoniana. Hoje, ele abriga toda sorte de devoção religiosa dos homens de ciência, que deixou de se orientar a entes divinos e se redirecionou a objetos outros, naturais ou ideais. Desse tenebroso espaço, não raro, procedem os grandes mal-entendidos da ciência.
No caso de Einstein, sua devoção à harmonia da natureza levou-o a superar diversos erros da Física Clássica. Levou-o, porém, a superar os erros da crença num Deus pessoal? Einstein deu-se tão bem no campo da Teologia quanto no da Física? Isso é, no mínimo, duvidoso. Se não precisamos deixar o domínio da ciência para encontrar pontos em que Einstein se equivocou, como a interpretação da Física Quântica, que dizer de questões situadas fora da sua especialidade? Como todo ser humano, Einstein acertou e errou. Acertou magnificamente, é claro, ao reconstruir, tijolo a tijolo, a Física. Mas errou ao interpretar a Física Quântica e ao abandonar totalmente a ideia de um Deus pessoal.
Entendo que é crime de lesa-majestade tipificado no Código Penal contestar Einstein. Ainda que a majestade lesada não seja a dele, mas a dos "proprietários" do seu legado, como os cientistas que insistem em atribuir ao grande físico uma visão não teológica do mundo. Resta-me confessar o crime, tanto quanto minha firme admiração pelo cientista, pensador e cidadão Albert Einstein.
Mas convém recordar, também, e sempre, que à ciência se devem os tributos da reflexão respeitosa e da mais perseverante suspeição. Não apenas o primeiro deles. Einstein é tomado como mito, toda vez em que se atribui às suas declarações o grau de infalibilidade que se tem reconhecido à “Carta de Deus”. A isso é preciso resistir.
No fundo, o panteísmo de Spinoza e de Einstein é tanto ateísmo quanto o flogisto é fogo. Infelizmente, as vulgarizações disponíveis do pensamento de Spinoza barateiam demais a equação Deus sive Natura (Deus, isto é, a natureza), que costuma ser citada como suma dele. Embora ele tenha afirmado que Deus é tudo, no seu pensamento, esse tudo é uma substância eterna dotada de infinitos atributos e amplamente incompreensível ao homem. Que pode um homem na Terra entender da ideia abstrata de substância? E ainda mais da substância eterna? E dos infinitos atributos dela? Bem pouco. Deus é, portanto, o muito que permanece fora desse pouco, já que não é o que compreendemos da substância, mas ela própria. De sorte que as fragilidades da substância impessoal de Spinoza se exprimem na pergunta: e se o muito que não compreendemos dela possuir apanágios pessoais?
Demos, porém, a volta ao panteísmo spinoziano. Após o termos examinado pelo lado de Deus e do que não sabemos da substância, vejamo-lo pelo ângulo oposto do que ela efetivamente é. Que é tudo (pan) para o homem, a não ser tudo o que ele é capaz de conhecer? Ora, o que o homem pode conhecer é tanto menor quanto diferente do que existe. Parte considerável do conhecimento humano é atávica e não corresponde ao mundo como é ou foi, mas às necessidades de sobrevivência e homeostase dos nossos ancestrais. Portanto, se Deus inclui o que conhecemos dele, que pobre conceito é!
Tiremos, então, as conclusões que essas considerações tornam necessárias. Se Einstein realizou um giro copernicano, ao abandonar o Deus pessoal e aderir ao spinoziano, não é menos verdadeiro que ele não devotou sua vida a examinar os apanágios pessoais de Deus e sim os impessoais. Digamos que, ao deixar o Deus pessoal, ele deixou de lhe devotar a indispensável atenção. Em que pese o odor iconoclasta que exala, essa interpretação está mais próxima da verdade sobre o pensamento teológico de Einstein do que o incensamento da Carta de Deus com o propósito de torná-la um argumento em favor do ateísmo. Se Einstein passou a vida estudando os fenômenos impessoais do Universo e selou, numa carta, o destino do Deus pessoal, por certo mirou num pássaro e acertou em outro.
O giro pelo qual Einstein substituiu o Deus judaico-cristão pela substância cósmica começou, quando se preparava para o Bar Mitzvah (comemoração judaica do ingresso de uma pessoa na puberdade), antes de completar 13 anos, e leu o pensamento de Xenófanes: “Se os bois pudessem pintar, eles representariam seus deuses em forma de boi” (COHEN, Madleine. Albert Einstein. São Paulo: Globo, 2006. p. 13). A impressão desse dito em Einstein foi tão forte que não houve Bar Mitzvah algum!
Mas, se o Deus pessoal é uma ideia infantil, como Einstein afirmou, o seu abandono pelo grande cientista não foi outra coisa. Ele não ocorreu entre os 12 e os 13 anos como sinal de maturidade. Foi, antes, um movimento infantil que se conservou por toda a vida. Por isso, não é demasiado supor que o abandono do Deus pessoal, por Einstein, não é uma lição científica, mas uma linha a mais no capítulo das devoções informes no interior da ciência, um outro objeto introduzido no quarto sombrio das fés relegadas.