sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (13): Redução à Matéria

Na Crítica da razão pura, Kant lançou a semente de um novo tipo de materialismo, ao afirmar que “a harmonia que existe no mundo torna evidente o caráter contingente da forma, não da matéria, isto é, da substância do mundo” (KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: 1993. Vol. 39, Transcendental Logic, Second Division, Book II, Chapter II, Section VI, p. 190).
Nessa passagem com cheiro de materialismo grego, a matéria é considerada a substância do mundo, a realidade última e não contingente, isto é, necessária. Verdade é que Kant nunca extraiu claramente as consequências dessa afirmação, que se duplica aqui e ali na sua obra. Ele parece ter feito questão de manter seu materialismo esboçado e latente, à sombra das extremidades da sua Crítica. Porém, não muito tempo depois, Ludwig Feuerbach deu pleno desenvolvimento a essas implicações da obra de Kant (e a outras da de Hegel), ao propor a primeira argumentação moderna que parece inteiramente plausível, em prol de uma filosofia claramente materialista.
Em A essência do Cristianismo, Ludwig Feuerbach resumiu sua tese de que o conceito de Deus se reduz ao do homem nos seguintes termos: “Mostro então que o verdadeiro significado da teologia é a antropologia, que entre os predicados da essência divina e humana [...] também entre o sujeito ou a essência divina e humana não há distinção, são idênticos” (FEUERBACH, Ludwig. A essência do Cristianismo. 2ª ed., Campi-nas: Papirus, 1988. p. 30).
O conceito de essência aludido por Feuerbach tem sua origem em Aristóteles, o que fica claro não apenas em razão de o conceito aristotélico ser de uso comum, no século XIX, mas na própria obra de Feuerbach: "Sempre que os predicados [...] expressam a essência do sujeito, não existe distin-ção entre predicado e sujeito, podendo o predicado ser posto no lugar do sujeito, pelo que indico a Analítica de Aristóteles ou ainda a Introdução [Isagoge] de Porfírio" (idem).
Quando Feuerbach afirma que, em alguns predicados, a essência coincide com o sujeito, como explicado na Analítica e na Isagoge, a essência, o sujeito e o predicado são claramente empregados no sentido dos autores daquelas obras, isto é, de Aristóteles e de Porfírio. Por isso, na cons-trução da sua tese sobre a redução do divino ao humano, ele parte de tais conceitos.
Porém, Feuerbach modifica o conceito aristotélico num ponto fundamental ao afirmar que, “na vida lida-mos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser para o qual o seu próprio gênero, a sua quididade [essência], torna-se objeto pode ter por objeto outras coisas" (idem. p. 43).
Nessa passagem, a essência não é tomada como conteúdo da definição, como em Aristóteles, mas como sinônimo de gênero. Por isso, os dois conceitos são postos em paralelo na frase “o seu próprio gênero, a sua quididade”, que é a essência.
Como o gênero é o conjunto de características comuns a certo número de seres, com a modificação que rea-liza, Feuerbach passa a pensar a essência muito mais como o gênero do que como a definição. É o que fica claro também na seguinte afirmação: “A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essência”. E nesta outra: “O homem é para si ao mesmo tempo Eu e Tu; ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência, não somente a sua individualidade, é para ele objeto”.
Notemos que ta afirmação “ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência [...] é para ele objeto” reproduz exatamente a anterior: “somente um ser para o qual o seu próprio gênero, a sua quididade, torna-se objeto pode ter por objeto outras coisas”. Comparando-as, não se torna apenas claro, mas inequívoco que Feuerbach emprega as palavras essência e quididade como sinônimas, mas faz o conceito respectivo equivaler ao de gênero.
Mas o gênero, que é? Quanto a isso, não creio errar quanto penso que os seres humanos são inumeráveis e cada um deles possui características exclusivas e outras comuns à espécie. Estas, quando abstraídas e reunidas, formam o gênero humano, que Feuerbach faz corresponder à essência. Assim, a essência é transfigurada no conteúdo comum a todos os indivíduos.
Dou, pois, a identificação da essência com o gênero como certa. E, com base nela, gostaria de tecer uma avaliação, talvez diferente da que comumente ouvimos, da tese central de A essência do Cristianismo.
A ideia de essência, isto é, do gênero, aparece já nesse título. E não é preciso muito esforço para extrair da leitura da obra que o conteúdo da essência do Cristianismo (Deus e o divino) a que Feuerbach se refere já no seu título é o humano, pois ele afirma expressamente que “entre a essên-cia divina e a humana não há distinção, são idênticas”. Esse é o real sentido da redução da teologia à antropologia operada por Feuerbach.
Para entendermos as consequências desse mo-do de pensar e da crítica à ideia de Deus que Feuerbach formulou com base nele, nada melhor do que retornar um instante ao conceito de essência de Aristóteles. Já afirmei que, nesse autor, a essência corresponde à definição de um objeto. Por isso, pode ser bem entendida como o mínimo que basta para diferenciá-lo de outros objetos. Ou, se quisermos empregar as palavras por meio das quais o próprio Aristóteles exprimia uma definição, ela é a soma do gênero próximo e da diferença específica, o que implica que não é só o gênero, mas também aquilo que o diferencia.
Curiosamente, o que Feuerbah chamou gênero está bem longe de ser o mesmo que o gênero que Aristóteles consideou parte da definição. Vimos que, para Feuerbah, o gênero era a essência ou quididade de um ser. Portanto, o que é comum a todos os indivíduos daquele tipo. Para Aristóteles, muito diferentemente, o gênero incluído na definição não era o do ser definido, mas outro mais vasto, assim como o gênero animal no caso do homem.
A definição, para Aristóteles, é esse gênero vasto reduzido e singularizado por meio da diferença específica. E, embora esta pertença a todos os indivíduos do gênero, não é qualquer característica compartilhada por todos eles, mas uma apta a diferenciar o gênero amplo a tal ponto que o ser definido (o homem, no exemplo dado) não se confunda com qualquer outro.
Assim concebida, a definição aristotélica se diferencia da essência feuerbachiana. Esta é uma universalidade, um conjunto de características comuns a indivíduos de um mesmo tipo e nada mais. O gênero não supõe que as características nele reunidas estejam dispostas em determina-da ordem. A essência aristotélica, ao contrário, o supõe. A essência é a mesma universalidade que enunciamos pela palavra gênero organizada de determinada maneira. No caso do ser humano, é o conjunto de traços comuns aos animais dispostos sob o critério organizador da racionalidade.
É provável que Feuerbach tenha tomado o seu conceito de essência do hegelianismo alemão. Não o encontro em Kant, nem explicitamente em Hegel, mas em Marx e Feuerbach, que foram hegelianos. Marx escreveu: "O Cristianismo é a religião kat exohin, a essência da religião, o homem deificado sob a forma de uma religião particular. Semelhantemente, a democracia é a essência de toda constituição política, o homem socializado sob a forma de uma particular constituição do Estado, a qual se relaciona a outras constituições como o gênero à sua espécie" (MARX, Karl. Critique of Hegel’s Philosophy of right.Part 2, c, d. Disponível em www.marxists.org).   
Marx refere-se ao Cristianismo como o homem deificado. Pensa a religião cristã como fruto da confusão de Deus com o homem, em conformidade com Feuerbach. E prossegue para afirmar que o Cristianismo é a essência da religião, e a democracia, a essência de toda constituição política. A democracia é o homem tornado Estado, como o Cristianismo é o homem tornado Deus. Aquela é a ilusão política; este, a ilusão religiosa. E arremata: a democracia relaciona-se aos outros regimes como o gênero à espécie. Chama, assim, a democracia gênero, e os outros regimes, espécies. Claro que, se a democracia é a essência dos regimes políticos, segue-se que o gênero é a essência, em Marx como em Feuerbach.
Marx toma a essência pelo gênero exatamente e com tanat convicção quanto Feuerbach: "Se as formas da existência social do homem, assim como a família, a sociedade civil, o Estado etc., devem ser consideradas como a atualização, a objetivação da essência humana, então [...] o homem permanece como o conteúdo essencial dessas realidades, e elas como a sua universalidade atualizada, portanto como algo comum a todos os homens" (idem).
A essência aqui mencionada não é a aristotélica. Não são os atributos animais organizados sob critério racional. É antes o gênero, o agregado puro e simples daqueles atributos. A única diferença é que, segundo a filosofia de Hegel (seguida neste passo por Marx), esse agregado assume as formas concretas da família, da sociedade civil e do Esta-do, que são a essência humana objetivada. 
Isso basta como indicação de que o hegelianismo foi responsável por modificar o significado clássico da essência, e que o novo conceito surgido naquele momento foi utilizado por vários filósofos. Basta também para mostrar que, ao invocar Aristóteles e Porfírio, Feuerbach usou o conceito modificado como se correspondesse ao original.
Mas a verdade é que o novo conceito é muito diferente do antigo. A essência genérica mencionada por Feuerbach e Marx não é o mesmo que a essência como definição de um objeto. É, antes, o contrário dela. É a definição desagregada, a definição cujos elementos se desprenderam do eixo organizador e se dispuseram sob outra ordem.
O problema é que a noção de essência genérica encontrada na tradição hegeliana rompe com o conceito sedimentado de essência de quase todo o restante da tradição filosófica, o que causa um grave problema de comunicação e de compreensão.
As consequências dessa ruptura não foram pequenas. Por meio dela, Feuerbach construiu a sua tese de que a essência de Deus é igual à do homem e, por isso, Deus é uma invenção humana. A sugestão tem fascínio. Brilha como uma descoberta da razão pura, mas não o é, pois nada nos diz sobre a confusão da definição de Deus com a definição do homem, que é toda uma outra coisa.
Apenas se admitirmos o giro filosófico tentado pelos hegelianos, a crítica de Feuerbach faz sentido. Só nesse universo conceitual, a essência de Deus confunde-se com a do homem e, ainda assim, de maneira vaga e não claramente comprovada. Se nos movermos em outro universo (aquele fundado pela Analítica de Aristóteles), chegaremos a conclusão muito distinta. Penso que esse outro universo conceitual é muito superior ao de Hegel, que se desmancha em inconsistências. 
Ao acusar o Cristianismo de tomar a essência de Deus como se fosse a do homem, Feuerbach acusou-o de substantificar a essência humana sob a forma de Deus. Se a acusação fosse procedente, o Cristianismo seria a mais vasta e grosseira de todas as substantificações de ideias já realiza-das. Mas Feuerbach tomou a essência como o gênero. Afirmou que Deus é o que os indivíduos humanos têm em comum. Se isso fazia sentido no universo hegeliano, por certo não faz sentido naquele fundado em Lógica mais rigorosa. 
Os indivíduos humanos têm em comum seus erros. Deus é perfeito. Eles têm em comum um poder mínimo, quimérico. Deus é todo-poderoso. Os homens têm em comum a mortalidade; Deus é imortal. Claro que, por levar a consequências como essas, a crítica de Feuerbach não parece realmente se sustentar.
Em cada um dos capítulos de A essência do Cristianismo, um ou outro aspecto do Deus cristão é referido ao gênero humano. Página após página, a sôfrega racionalidade humana, a não menos sôfrega moralidade dos homens, a encarnação, o sofrimento, a relação mãe-filho, a relação pai-filho, os fenômenos naturais e tantas outras coisas humanas são convertidas em experiências de Deus, sem provar coisa alguma sobre a confusão (ou não) das definições de Deus e do homem.              
Apesar dessas deficiências, a crítica de Feuerbach foi saudada como grande conquista do saber humano. Em alemão, o nome Feuerbach significa riacho de fogo. Troçando, Marx afirmou que não é possível ingressar no pensamento crítico, sem passar pelo riacho de fogo da filosofia de Feuerbach. Ao que tudo indica, ele quis, com isso, se referir precisamente à crítica do conceito de Deus por aquele filósofo. Mas a que parte o riacho realmente nos leva? Para muitos, leva à consciência crítica de que, ao adorar a Deus, o homem adora a si mesmo e, ao falar de Deus, fala de si. Para outros, porém, leva somente a um feixe de tolices.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (10): A Teofania de Spinoza

Séculos após a adoção do princípio de Parmênides pela filosofia platônica e da proliferação de ilusões substancialistas que se seguiu, muitas críticas a esse procedimento tinham aparecido. Porém, todas tinham revelado um caráter parcial e a conseqüente insuficiência de que padeciam para pôr freio à influência platô-nica. Não é possível apresentar conclusão distinta se-quer em relação às críticas que Aristóteles, Aquino e Ockham desenvolveram a Platão.
Como tenho procurado mostrar, o maior reduto de resistência à substantificação iniciada por Platão, na História da Filosofia, foi a filosofia patrística do período de Orígenes a Santo Agostinho. Claro que os segui-dores desses filósofos merecem igual menção, mas os originadores da corrente de resistência foram os filósofos dos séculos III a V.
As promessas revolucionárias da Reforma, cujos reflexos na Filosofia iam ao ponto da abolição de Platão e Aristóteles, não se colocaram à altura daquela resistência, pois não tardaram em se resolver em desilusão. O historiador maior da Reforma, no século XIX, J. H. Merle D'Aubigné, admitiu-o ao declarar que “a história da reforma não é a do protestantismo. Na primeira, tudo traz a marca de uma regeneração da humanidade, de uma transformação religiosa e social que emana de Deus. Na segunda vê-se muitas vezes uma degeneração notável de princípios primitivos” (D'AUBIGNÉ, J. H. Merle. História da Reforma do décimo-sexto século. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana. Vol. I, p. 5).
O fato de a Reforma ter influído tão pouco no debate filosófico pode ser considerado um dos sinais da degeneração a que D'Aubigné se referiu. Apenas um século depois dela, Descartes propôs a emancipação da Filosofia em relação à Teologia e ao poder eclesiástico. Seu passo libertário foi a contribuição maior do cartesianismo ao pensamento filosófico. Outras o seguiram. Porém, o objetivo deste capítulo é tratar do filósofo que, na trilha aberta por Descartes, influiu de maneira decisiva no desenvolvimento posterior da Metafísica.
Refiro-me a Baruch Spinoza, cuja obra principal, a Ética, se abre com uma série de definições de termos. Os termos que ali se encontram e as definições que Spinoza lhes empresta nada tinham de estranho aos leitores da época, já que tinham sido herdados da Filosofia Clássica. Sua gênese remonta a Platão e à Metafísica de Aristóteles. No entanto, é significativo que, da definição deles, Spinoza derive consequência de todo nova, com o potencial de lançar o pensamento substancialista em direção diversa daquela em que Parmênides o tinha impulsionado originalmente e na qual o platonismo o confirmara.
A reviravolta substancialista de Spinoza consistiu em unificar o pluralismo aristotélico, que supunha várias substâncias irredutíveis umas às outras. Para fazê-lo, Spinoza desenvolveu um monismo, no qual o conjunto de todas as substâncias perfaz uma única, uni-versal e indivisível, que ele denominou Deus. Não é preciso acrescentar que essa consequência revolucioná-ria do substancialismo aristotélico, essa visão de Deus que teve de Spinoza e que chamarei Nova Metafísica, foi recebida com grande escândalo pela Europa cristã e judaica.
Infelizmente, a dependência das definições de que Spinoza parte, na Ética, em relação a Aristóteles as expõe a críticas como a que Bertrand Russell desenvolveu ao comparar esse filósofo com Aristóteles. Diz Russell que “é difícil decidir por onde começar a descrição da metafísica de Aristóteles, mas talvez o melhor lugar seja a sua crítica da teoria das ideias e sua própria doutrina alternativa dos universais [...] Aristóteles torna evidente que, quando um número de indivíduos [ou coisas] participa de uma qualidade [por exemplo, a cor branca ou azul], isso não pode ser devido à relação com algo da mesma espécie que eles, mas com algo mais ideal [o universal]” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Primeiro, pp. 187-188).
Indivíduos e coisas são chamados substâncias ou formas por Aristóteles; as qualidades que eles possuem chamam-se universais. O problema apontado por Russell, nessa concepção, é que as formas aristotélicas são “substâncias que existem independentemente da matéria [...] Portanto, elas têm para Aristóteles, como as ideias têm para Platão, uma existência metafísica própria, condicionando todas as coisas individuais” (idem. pp. 192-193). Russell quer dizer que a forma aristotélica, ao mesmo tempo, radica nas coisas e é capaz de existir fora delas.
Essa concepção altamente imaginativa da forma dotada de substancialidade é fatal para o filósofo grego, e veremos que também para Spinoza. Russell conclui: “Não vejo de que maneira Aristóteles poderia ter encontrado uma resposta a esta crítica” (idem. p. 193). Em outras palavras, a crítica parece fatal. Porém, embora isso esteja claro para a maioria dos filósofos, hoje, não se pode afirmar o mesmo da época de Spinoza (século XVII). E continua a não ser assim para a maior parte das pessoas, que adotam as ideias spinozianas com entusiasmo, mas sem compreender totalmente a procedência das críticas que receberam ao longo da História.
A substância spinoziana é a mesma da Metafísica Clássica. Assim como, para Aristóteles, a realidade é composta por indivíduos ou substâncias, para Spinoza, “na natureza, nada há além de substâncias” (SPINOZA, Baruch. Ethics. In Great books of the western world. Vol. 28, First Part, Proposition 6, p. 590). E como naquele filósofo a forma pode existir fora do intelecto, em Spinoza, “nada há fora do intelecto, por meio de que as coisas podem ser distinguidas umas das outras, a não ser as substâncias ou seus atributos” (idem. First Part, Proposition 4, p. 590).
É verdade que a substância spinoziana, diferentemente da de Aristóteles, só existe fora do intelecto. No entanto, Spinoza atribui a capacidade de existir dentro e fora da mente à essência, que é por ele definida como o que o intelecto percebe da substância. Assim, o erro substancialista de Aristóteles é transferido da for-ma à essência.
Desse modo, a dupla existência da forma (para Aristóteles) reproduz-se na essência spinoziana. Ambos os conceitos pairam invisivelmente sobre as coisas e, desse éter, passam a elas. Ambos são, pois, fantasmagóricos.
É verdade que a essência spinoziana radica na substância, que tem consistência real. Porém, a essência também existe fora das coisas, isto é, no intelecto. E nenhuma explicação satisfatória é dada do processo pelo qual ela se desarraiga das coisas e se implanta no intelecto. Tampouco é explicado como a essência duplica-se, sem se alterar, em esferas tão diferentes do real. O que é capaz de flutuar sobre a face das coisas não está imbuído de dons fantasmagóricos?
A substância spinoziana só pode ser compreendida, sob a forma fantasmagórica da essência. Portanto, para afirmar que a natureza é a substância única, é preciso pensá-la também como essência. Esse é o grave problema da filosofia de Spinoza, que se tornou o de um número de cientistas contemporâneos, que adotaram o seu pensamento, a exemplo de Albert Einstein, Stephen Hawking e Antonio Damásio. E é no mínimo espantoso que o filósofo de tão requintada ciência seja um dos que mais claramente incidiram no erro platônico.
Aliás, sofisticações filosóficas à parte, a concepção da natureza como Deus impessoal já revela arraigada tendência de atribuir concretude a uma ideia. Ela está presente na Nova Metafísica de Spinoza e no pensamento dos cientistas que a adotam. Essa concepção vem antes de toda demonstração. É a encarnação de uma ideia autoevidente. Mas isso é lá aceitável a uma ciência que pretende dar a prova de suas afirmações? A uma ciência que se quer tendente à exatidão?
Fato é que, nas mentes de não poucos, nem pouco ilustres cientistas, o Deus de Spinoza se transfigurou na natureza que eles perscrutam, ou esta naquele. Que vem a ser essa incrível mistificação, essa autêntica teofania, a não ser o erro de Platão ressurgido? Se Spinoza se fez tão fundamental à ciência, por influência de Einstein talvez, igualmente fundamentais não se tornaram os problemas do seu pensamento? Fraturas não se abriram no pilar da ciência? Fico a pensar se a frase de Russell sobre a Metafísica não se tornou aplicável a essa ciência: não vejo de que maneira ela pode se salvar dessa crítica parcial. Pode?

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (9): A Revolução Abortada

O quadro Era da Reforma, de Wilhelm von Kaulbach, a que me referi anteriormente, apresenta Martinho Lutero no centro, a erguer uma Bíblia aberta. Dezenas de pessoas estão ao seu redor, mas apenas du-as parecem dirigir-lhe o olhar e notar o seu gesto simbólico, o que, de algum modo, sugere que a Bíblia que o reformador tem nas mãos foi aberta, mas ninguém a examinou.
A figura de Lutero a empunhar a Bíblia descer-rada e de tantas pessoas alheias a ele não é mais apropriada à própria era da Reforma do que ao tempo atual. Lutero bradou: “Sola scriptura!” Mas o livre exame das Escrituras se adiantou tão pouco! No século imediato ao dele, a Filosofia foi liberta do jugo à Teologia, no entanto a última nunca foi solta da prisão das interpretações impostas pela autoridade.
Como um luterano entende a Bíblia hoje? Basicamente do modo como Lutero a interpretou. Como o faz um presbiteriano? Entende-a como Calvino. E um metodista? E um adventista? Eles interpretam a Bíblia como Wesley, William Miller e Ellen White ensinaram. Não pretendo, com isso, afirmar a existência de uma uniformidade total na interpretação da Bíblia, em cada ramo do Protestantismo, mas assinalar o quanto a Teologia Protestante é determinada por mecanismos de poder constituídos com a matéria-prima das interpretações dos estudiosos citados.
Se estar no luteranismo significa entender a Bíblia como Lutero, se estar numa Igreja Presbiteriana implica entendê-la como Calvino e assim por diante, segue-se que a interpretação não é realmente livre. Não há livre exame das Escrituras, nas Igrejas originárias da Reforma, ou há muito pouco, assim como o quadro de Kaulbach sugere na sua mudez eloquente.
O fato de o Protestantismo abrir-se num leque de confissões e Igrejas, cada qual com uma doutrina única, pode ser explicado de várias maneiras. Mas a traição do livre exame há de ser reconhecida para que qualquer explicação funcione. Não existindo, no Protestantismo, o compromisso com o magistério da Igreja de Roma, é natural que surjam interpretações divergentes entre si, no seu bojo. Porém, na medida em que ele não é só uma Reforma impávida e bem-sucedida, mas também uma reprodução das relações medievais de poder, não é menos natural que, em cada Igreja protestante, subsista uma única interpretação das Escrituras.
Isso significa que a Reforma aboliu ao mesmo tempo em que reproduziu o modelo católico romano. Sua obra duradoura está possuída dessa contradição. O filósofo Ernst Troeltsch escreveu, com algum exagero, mas atento ao exato desenvolvimento das Igrejas da Reforma: “Não se pode supor que o protestantismo tenha aberto o caminho para o mundo moderno. Ao contrário, ele parece ser, por princípio, e a despeito de todas as suas novas grandes ideias, um reavivamento e um re-forço do ideal de uma civilização eclesiástica imposta pela autoridade” (TROELTSCH, Ernst. Protestantism and progress. Boston: Beacon Press, 1958. p. 85). É crucial recordar que essa autoridade começa pela interpretação única da Bíblia, no seio de cada Igreja.
Em suma, o Protestantismo foi e continua a ser, na sua vertente ortodoxa tanto quanto nas seitas que se desgarraram das doutrinas aceites, uma espécie de modernidade abortada. É o que Troeltsch nos ensinou, com razão e a despeito de todas as grandes ideias que o movimento protestante trouxe ao mundo. Como lembrou Rubem Alves, no nascedouro da Reforma, esteve um grito de liberdade reprimido por séculos e que foi solto pelos reformadores. Porém, com o tempo, o grito se transformou na indiferença que o quadro de Kaulbach retrata.
Ao menos é assim que o Protestantismo se mostra, sob o ângulo teológico. Mas e do ponto de vista da Filosofia? Como o Protestantismo se revela, sob esse ponto de vista? Parece-me que, do prisma filosófico, ele representa ainda mais a modernização abortada que se tornou no terreno teológico. Para entender por que nada é mais útil do que considerar a figura do seu fundador.
Lutero teve dupla formação. Graduou-se em Filosofia e em Teologia. Numa carta escrita pouco depois de 1500, queixou-se de ser compelido a estudar a primeira “com todas as suas forças”. A confissão não é despropositada, já que o Protestantismo surgiu num tempo e lugar em que o movimento humanista crepitava. Esse movimento consistiu na restauração do interesse pelos clássicos da Antiguidade, tanto na Literatura como na História, na Filosofia e na Teologia (Bíblica e Patrística). Porém, o interesse pelos filósofos antigos, quando as limitações do platonismo e do aristotelismo se tornavam cada vez mais manifestas, não foi um presságio muito alvissareiro nesse campo particular.
Devido ao ambiente da época, a filosofia em que Lutero se formou e que ele aprendeu de modo mais sistemático foi a ockhamista, que havia desenvolvido as mais importantes críticas a Platão até então. Por isso, sob o prisma filosófico, a Reforma nasceu como uma significativa promessa de avanços.
Porém, Lutero levou seu repúdio a Platão tão longe quanto o repúdio a Aristóteles e à Escolástica, o que o transformou num quase inimigo da Filosofia. Ele próprio pergunta: “Que são as universidades? Pelo menos até agora, foram instituídas para ser apenas, como diz o livro dos Macabeus, ginásios de febos e da glória grega, nos quais se leva uma vida libertina, pouco se estuda a Sagrada Escritura e a fé cristã e reina apenas o cego e idólatra mestre Aristóteles, até mesmo acima de Cristo. O meu conselho seria o de que os livros de Aristóteles Physica, Metaphysica, De anima e Ethica, que até agora são reputados como os melhores, fossem abolidos juntamente com todos os outros que falam de coisas naturais [...] Sei muito bem o que estou dizendo! Conheço Aristóteles tão bem quanto tu e teus semelhantes, pois o li e ouvi com maior atenção do que a santo Tomás ou Escoto, do que posso muito bem me vangloriar, sem presunção, e até, se necessário demonstrá-lo. Não me importa que, durante tantas centenas de anos, tantos intelectos sublimes se tenham debruçado sobre ele. Tais argumentos não me preocupam, porque está claro que, embora eles tenham feito alguma coisa, no entanto, tantos erros permaneceram por tantos anos no mundo e nas universidades” (LUTERO, Martinho. Citado em REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990. Vol. 2, p. 105).
Lutero levou a sua polêmica contra a Filosofia ainda mais longe do que a passagem citada deixa entrever, pois generalizou seu juízo negativo sobre aquela disciplina. É o que verificamos na seguinte passagem das suas notas sobre a Epístola aos Romanos: "Devo ao Senhor esta obediência de ladrar contra a filosofia e de aconselhar os homens a olhar para a Sagrada Escritura [...] para que acabem rapidamente com esses estudos e para que tenham como única preocupação a de não estabelecê-los e defendê-los, mas, sim, a de tratá-los como nós, quando aprendemos habilidades inúteis com o fim de destruí-las e aprendemos erros com o fim de refutá-los cabalmente [...] Por conseguinte, o apóstolo está certo quando, em Cl 3 [2:8], fala contra a filosofia, dizendo: 'Cuidado, para que ninguém vos engane por meio da filosofia e de falácias vazias, conforme a tradição dos homens'. É óbvio que, se o apóstolo quisesse dar a entender que alguma filosofia é útil e boa, ele não a teria condenado de modo tão cabal" (LUTERO, Martinho. A Epístola aos Romanos. In Martinho Lutero - Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2003. Vol. 8, pp. 303-304).

No entanto, em muitas outras passagens das suas obras Lutero lançou mão de partes da Filosofia, a fim de realizar suas demonstrações teológicas. Na realidade, ele nunca quis condenar toda a Filosofia. Lutero foi um homem da sua época. Como tal, condenou a Antiguidade Pagã, o que Dante já tinha feito na sua Comédia. As passagens transcritas acima são a Divina comédia de Lutero ou da Reforma. Com ela, Lutero quis alertar contra os perigos de um retorno excessivo aos antigos. Mas é preciso lembrar que ele foi monge agostiniano e não renegou Santo Agostinho, antes ou depois de a Reforma explodir e se estabelecer. Sabemos o que Agostinho representa na História da Filosofia e o que representou para Lutero.
Em seus livros, Lutero poupa Agostinho das críticas que dirige à Filosofia. Não só Agostinho, aliás. Outros filósofos que ele poupa da maior parte das suas condenações são Ockham e Gabriel Biel, por intermédio de quem Lutero teve contato com o nominalismo. Sem mencionar seu contemporâneo Melanchton, o orgulho de Lutero, que ele chama "adversário de Satanás e dos escolásticos". A profunda admiração de Lutero pelo humanista Melanchton é impensável sem concessão igualmente profunda à Antiguidade Clássica. Portanto, as invectivas do reformador foram muito mais direcionadas à Filosofia e à razão sem a graça salvadora de Cristo do que a toda e qualquer forma delas. Para Lutero, a Filosofia e a razão eram vãs, sem a fé em Cristo. Contudo, por meio da fé, elas podiam ser redimidas, como todo o restante da atividade humana.
Considerando a formação de Lutero, seu exacerbado antiaristotelismo e as invectivas que lançou em face da “porca razão” não têm o sentido de um repúdio ilimitado. Tivesse Lutero repudiado de modo total a razão e teríamos de esquecê-lo, já que a negação, culta ou bronca, da razão (pois há as duas espécies) é a putrefação filosófica por definição, o achaque mais essencial à natureza humana. Contudo, por trás do repúdio à razão, o que se nota não é a desrazão, mas a silhueta do ockhamismo em que Lutero procurou e encontrou substrato para, ao mesmo tempo, aferrar-se à vontade de Deus e considerar falso o racionalismo estribado no homem – entenda-se na soberba humana.
Pode-se questionar se, no seu repúdio à Filosofia e à razão, Lutero não correu o risco de “lançar fora a criança com a água do banho”. De banir a razão juntamente com os erros dela. Parece-me que correu, mas, a julgar pela declaração mais importante que fez, em toda a sua existência, quando a Dieta de Worms o instou a retratar-se dos erros que o Papa tinha apontado em seus livros, Lutero não chegou a tal ponto. Naquela ocasião solene, ele declarou: “Sereníssimo imperador! Ilustres príncipes, graciosos senhores! [...] Se não for convencido com testemunhos da Escritura, ou por evidentes razões, se não me persuadirem pelas próprias passagens que citei, e se não tornarem assim a minha consciência cativa da palavra de Deus, não posso e não quero retratar coisa alguma” (D’AUBIGNÉ, J. H. MERLE. História da Reforma do décimo-sexto século. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana. Vol. II, p. 243).
Em muitas passagens de suas obras, Lutero reafirmou essa posição de alcance vastíssimo, por ter sido firmada no momento decisivo da sua existência. Uma das mais claras encontramo-la no segundo livro do reformador sobre a Santa Ceira, em que ele se bateu Com Zuínglio e Ecolampádio pelo respeito às regras fundamentais da Lógica: "Eu não sabia que Ecolampádio é um lógico ou dialético tão miseravelmente pobre, a ponto de trocar a substância pela qualidade e de fazer conclusões do acidente para a substância. No caso de Zuínglio, isso não admira, pois ele é um doutor autodidata; esses costumam dar nisso. Em verdade, quem quer debater e não conhece os elementos rudimentares da lógica, que pode conseguir ele de bom? Ecolampádio me irrita tanto com isso que doravante não espero nenhuma prova de inteligência dele. Pois, ainda que não seja necessário que conheça as sutilezas e sofismas inúteis dos sofistas [os escolásticos tardios, na linguagem peculiar de Lutero], deveria conhecer pelo menos os rudimentos, isso é, a dialética simples, como as regas da dedução, as formas dos silogismos, as espécies de argumentação, etc." (LUTERO, Martinho. Da ceia de Cristo - Confissão. In Obras selecionadas São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1993. Vol. 4, p. 303).
Essas considerações convergem com a opinião de Troeltsch mencionada no início. Se tivermos de situar a Reforma em alguma das divisões (sempre relativas) da História, será melhor inseri-la na Idade Média do que na Modernidade. Mas é preciso apresentar uma ressalva ao fazê-lo. Por tudo o que a antecedeu, pelo que foi e também pelo que a sucedeu, a Reforma do século XVI foi genuinamente revolucionária. Seu problema é que a revolução que ela procurou implantar nunca se completou. Porém, isso não invalida o que o movimento tinha de vanguardista.
Quando olhamos para o quadro filosófico que a preparou e a opção de Lutero e outros reformadores por ideias ockhamistas, o caráter da Reforma faz-se ainda mais nítido. Lutero não só se declarou ockhamista como esclareceu ter absorvido totalmente os ensinamentos dessa corrente, como lemos na sua Resposta aos mestres de Lovaina e Colônia: “Por que iria eu resistir também a minha seita, a saber à occamista ou à dos modernos, que tenho assimilado totalmente” (LUTERO, Martinho. Resposta de Lutero à condenação doutrinal feita pelos mestres de Lovaina e ColôniaIn Obras Selecionadas. 2ª ed., São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2000. p. 95).
É instrutivo, portanto, lembrar o que Gilson ministrou sobre essa seita: "O ockhamismo [aqui incluído o de Gabriel Biel, com o qual Lutero teve contato], não era uma simples reforma, mas uma revolução. As doutrinas precedentes se contradisseram mutuamente sobre a interpretação de certos princípios que lhes eram comuns; em vez de se somar a elas como um novo en-saio da mesma ordem, o ockhamismo nega todas elas, arruinando o realismo em que repousavam" (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 885).
A um leitor apressado pode ocorrer que Ockham foi, sim, revolucionário, mas ele não foi Lutero, nem os outros reformadores. Portanto, Lutero e a Reforma não foram realmente revolucionários. Esse juízo é equivocado. Os mais importantes precursores da Reforma, como Wyclif, Huss e Jerônimo de Praga, não só são citados entre os realistas como entre os mais extremistas deles. Eram todos teólogos platônicos. Lutero e seus seguidores não. A questão importante aqui não é o grau de ockhamismo deles, mas o fato de estarem, filosoficamente, mais próximos de Ockham do que de Platão. Mais próximos da revolução ockhamista que de seus próprios precursores teológicos. Isso contribui para ressaltar o conteúdo revolucionário da Reforma.
Ao colocar as evidentes razões ao lado das Escrituras, às quais dedicou a sua existência e em que depositou toda a sua fé, Lutero mostrou claramente o juízo que tinha a respeito do entendimento iluminado pela fé. Mostrou que sua obra foi, ao mesmo tempo, uma demanda pelas Escrituras e por uma razão evidente, não obscura como a que as filosofias do seu tempo ofereciam em tão grande medida.
Não há como não dar ouvidos a essa justa demanda. Os amantes da verdade, em seus sempre múltiplos sentidos, não andam em busca de repúdios totais. Não recusam, pois, a luz da Filosofia, mas demandam luz clara, não impenetrável. Querem a verdade, mas verdade inteligível. Infelizmente, a Antiguidade e a Ida-de Média tinham visto nascer filosofias impenetráveis. A Metafísica do tempo de Lutero tornara-se, em grande parte, isso.
Nesse contexto, a dupla revolta do reformador contra o cativeiro papal e o aristotélico chega a constituir a sua contribuição central ao campo sobre o qual me debruço. Aliás, ao focarmos o pensamento de Lutero com a precisão necessária, percebemos que a sua investida contra o senso comum da época deu-se mais no terreno da Filosofia Social que no da Metafísica.
Pela sua importância como contestador de um arranjo social construído sobre a autoridade, é que Lutero deve ser lembrado na História da Filosofia. A crítica veemente, mas ilustrada que ele desenvolveu da razão é mais um apelo que a Idade Média dirigiu à docta ignorantia. No entanto e ao mesmo tempo, é uma recordação dos limites a que o intelecto humano está sujeito. Limite que não se aplica somente ao que podemos conhecer de Deus, mas também da natureza.
Há nessa posição uma sabedoria herdada dos antigos mosteiros que, ao recolherem o escólio da Gré-cia, o tornaram secundário à Bíblia. Assim procederam Orígenes e Santo Agostinho, mas também os primeiros monges do deserto. Assim também procedeu Lutero, embora com gume crítico peculiar.
A quase rusticidade das descrições bíblicas da natureza (com exceção do que encontramos em textos, como Gênesis 1 e 2), sobre a qual Lutero se colocou, pode parecer uma base suspeita, mas não deixa de cons-tituir um refúgio contra certos erros filosóficos. Refúgio que, aliado à demanda de Worms por razões evidentes e às contribuições para o pensamento social, garantem ao solitário Lutero um papel no romance da filosofia.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (8): Aquino Versus Ockham

A filosofia platônica foi a primeira aplicação sistemática do princípio de Parmênides que relaciona o pensamento ao ser. Talvez por isso, ao descobrirmos os defeitos que ela contém, somos tentados a atribuir a Platão e à Filosofia, em geral, a tendência a transformar pensamentos em coisas ou a substantificá-los.
O pensamento humano se permeou dessa espécie de substantificação. Que fazemos ao sonhar, a não ser acreditar que o que se apresenta no sonho é real? Dir-se-á que, ao acordarmos, deixamos de crer na realidade das coisas sonhadas. Porém,no passado, as pessoas criam nos sonhos, enquanto dormiam e acordadas. Elas acreditavam que a alma realmente via as imagens noturnas ou era avisada pelos deuses sobre elas. Por essa razão, os sonhos foram tantas vezes denominados visões ou designados por palavras com sentido semelhante.
A própria crença em “leis naturais”, numerosas ou raras, severas ou brandas, justas ou menos justas, também é imemorial. Quase sempre, elas foram conce-bidas como inscritas na ordem das coisas. Portanto, como anteriores ao homem, assim como a natureza lhe é anterior. Tal crença não é um exemplo menor da objetivação de ideias (de normas, no caso), que só existem na mente do homem.
Poderia multiplicar os exemplos desse hábito mental, nas mais diferentes áreas do pensamento, mas fatigaria o leitor. Só lembrarei que o efeito de certas drogas no cérebro, as alienações mentais, muitos trans-tornos psíquicos,as experiências fora do corpo (EFC’s), assim como a arte e a religião são profundamente mar-cados pelo hábito da substantificação, quando não se reduzem a ele. Aliás, a relação é tão estreita que somos impelidos a indagar se o hábito em questão não compõe a própria estrutura da alma humana.
No entanto, se a substantificação de ideias é tão difundida e universal, não pode ter sido inventada por Parmênides ou por Platão. Pelo contrário, ela deve ter suas raízes profundamente lançadas nos sonhos e no inconsciente de maneira geral. Desse nível do pensa-mento humano, a substantificação passou à cultura, não sem uma ajuda considerável da religião. Platão apenas produziu a primeira reflexão completa a respeito do há-bito em apreço. E ao fazê-lo, ele também o justificou e inseriu no interior de uma filosofia sofisticada.
Na Idade Média, um intenso debate acendeu-se sobre a natureza das ideias abstratas ou universais. Vimos que o debate levou à formação de correntes opostas, que se tornaram conhecidas como realismo e nominalismo. O lado nominalista da discussão teve em Guilherme de Ockham um de seus maiores representantes. Ockham refutou extensamente e com bons argumentos a posição realista. Porém, a exposição do ponto de vista de Aristóteles a respeito do tema foi realizada do modo mais perfeito por um representante da corrente oposta: São Tomás de Aquino.
O filósofo escolástico mostrou que, embora Aristóteles tenha-se referido aos universais como nomes, estes representam coisas. E o fazem consistente-mente, pois sua gênese está associada a sensações das próprias coisas. De fato, o intelecto não tem papel passivo, durante e após as sensações, mas age de modo a constituir imagens dos objetos com elas.
Do mesmo modo, após constituir as imagens, o intelecto continua ativo, pois passa a elaborar a espécie inteligível, por um processo que Aristóteles chama abstração. Esse processo consiste no despojamento das imagens do que têm de particular, de modo a restar apenas o que lhes é comum. Assim, das imagens de um campo com flores de cheiros, formas e cores vários, o intelecto abstrai a ideia de flor, sem cheiro, sem forma e sem cores determinados.
A espécie inteligível não é ainda a ideia. Ela é obra do intelecto agente, que a forma a partir das sensações e imagens. Para que a ideia surja, é necessário que o intelecto possível intervenha. Desse modo, segundo Tomás, é que passamos do conhecimento individual ao universal.
A radicalidade do pensamento de Guilherme de Ockham se mostra na negação da necessidade da espécie inteligível para explicar o conhecimento. De um lado, temos os objetos individuais do conhecimento; de outro, as idéias abstratas deles. Não precisamos supor intermediários, como as espécies inteligíveis, para explicar a passagem de uns a outros.
Mas a radicalidade de Ockham alcança o ponto máximo,conforme ele desenvolve a sua noção de universal. Toda uma série de pensadores tinha negado que os universais possuíssem existência objetiva. O que os diferencia de Ockham é o fato de este negar não apenas a existência dos universais, mas também a semelhança dos individuais, assim como a que costumamos identificar entre dois cavalos. Por muito tempo, essa semelhança tinha constituído o fundamento da crença de que os universais possuem algum tipo de objetividade.Com a negação da semelhança dos individuais, a objetividade dos universais pôde ser dispensada e desapareceu.
Assim, o problema dos universais foi resolvido por Ockham. A solução tem consequências revolucionárias. Uma delas é o encerramento das discussões metafísicas, que a Idade Média tinha cultivado em tão alto grau. Não há por que debater com o interesse de antes o que não tem existência individual ou objetividade. A discussão sobre os universais se justificara, enquanto sua objetividade fora admitida. Quando ela foi reduzida a uma concepção do intelecto, a discussão perdeu, se-não o interesse, ao menos a importância anterior.
O mistério do ser manteve a Teologia sob seu controle enquanto se pensou que um número incalculável de proposições sobre Deus podem ser canceladas por considerações a respeito do ser. Quando Ockham mostrou que os entes metafísicos não têm objetividade, viu-se que não podem afetar Deus ou suas obras. Desde então, a Teologia alcançou independência total da Metafísica.
O mesmo sucedeu a vários outros campos do conhecimento, que tinham sido atrelados à Metafísica por razões semelhantes às que levara à dependência da Teologia em relação a ela. Hoje, é comum se pensar que a Física, a Química, a Biologia e todas as outras ciências positivas não podem ser afetadas pela Metafísica. Devemos a essência dessa convicção a Ockham.
Porém, por motivos misteriosos, a conclusão radical de Ockham não foi imediatamente aplicada a um grupo particular de universais: as categorias, que, por muito tempo, continuaram a ser tratadas como dados objetivos. Essa resistência ao nominalismo foi e continua a ser decisiva, pois a História da Filosofia e do conhecimento depende, em grande medida, das decisões relativas a ela. Se a Teologia e as ciências surgiram e foram libertadas da Metafísica, com base na intuição de Ockham sobre os universais, se a intuição estiver errada, o destino dessas disciplinas sofrerá sérias consequências.
O problema é que, apesar de sedutora, a intuição de Ockham não pode ser provada. Ele parece sustentá-la por provas, ao derivá-la do princípio de que tudo o que existe é individual. De fato, se assim é, o universal não existe, e essa há de ser uma verdade absoluta. Mas as coisas não são tão simples. A afirmação de que tudo o que existe é individual é, no mínimo, equívoca, já que a palavra individual indica um modo de ser entre outros. Individual é o que é concentrado, o que está num lugar e não em vários. Mas é possível imaginar entes reais difusos, espalhados ou dispersos por vários lugares. Não é essa a natureza do espaço? Não é, de certo modo, também a do que denominamos tempo?
Podemos até pensar que só o espaço e o tempo individuais existem, mas isso não pode ser provado. O contrário também pode ser verdade. Talvez o espaço seja a soma de espaços menores dotados da mesma natureza dele. E o tempo pode ser a soma de instantes com uma só natureza básica. Não estamos em condições de determinar qual dessas concepções do tempo e do espaço é a verdadeira.
Kant criou um rol de categorias diferente do de Aristóteles e as transferiu do mundo real para o intelecto. Porém, essa é só uma solução possível do problema das categorias. É a solução nominalista, que Kant rea-firmou. No entanto, a solução conhecida como realismo básico mantém tanto atrativo quanto ela.
Olhemos de perto a explanação de Aristóteles sobre as categorias. Ele abriu o livro que as toma por tema com a classificação dos nomes ou expressões. E em seguida, timbrou: “As expressões não compostas significam substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, situação, ação e paixão. Para transmitir sucintamente o que pretendo com essas palavras, exemplos de substância são homem e cavalo, de quantidade são dois cúbitos ou três cúbitos, de qualidade são branco e gramatical. Dobro, metade e maior pertencem à categoria da relação; ‘no mercado’, ‘no Liceu’ à de lugar; ontem e ‘no ano passado’ indicam tem-po. Deitado e sentado sugerem posição; derramado e armado, situação; lançar e cauterizar, ação; e ‘ser lançado’ e ‘ser cauterizado’, paixões” (On categories. In Great boboks of the western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. Cap. 4. pp. 5-6).
Do modo como não se estendeu sobre as categorias de tempo, lugar e situação, porque seus alunos as compreendiam, Aristóteles se limitou a afirmar que as categorias são espécies de nomes, sem esclarecer a relação entre estes e as coisas. A razão desse seu procedi-mento foi a existência de uma compreensão cultural prévia daquela relação, que Aristóteles simplesmente adotou.
Na abertura do livro das categorias, ele assentou ainda que “as formas de expressão podem ser simples ou compostas [...] Já as próprias coisas” etc. (idem. Cap. 2, p. 5). Nesse modo de dizer, as expressões (palavras) e as coisas estão claramente contrapostas. Que se pode extrair disso? A contraposição não sugere uma relação entre os termos contrapostos, isto é, que as pa-lavras remetem às coisas? Do contrário, por que aproximar os dois conceitos, por que os contrapor? E se as categorias são nomes, elas não nos remetem também a coisas?
Aristóteles respondeu essas perguntas afirmativamente. Por isso, não pôde deixar de incorrer no vício da substantificação. Ele entendeu a relação entre as categorias e o mundo no sentido comum e não as protegeu contra os vícios desse tipo de pensamento, antes as substantificou.
Em Aristóteles, as categorias são, sim palavras, mas palavras que exprimem o modo de ser das coisas. Palavras que projetam ideias nas coisas. Tintas empregadas para colorir o mundo um tanto à maneira humana. As seguintes passagens tornam isso extremamente claro: “O termo homem é predicado do homem individual, mas não está presente em sujeito algum” (idem. p. 7). Como “estar presente num sujeito não significa encontrar-se nele como as partes se encontram no todo, mas ser incapaz de existir à parte dele” (idem. Cap. 2. p. 5), segue-se que o termo homem é capaz de existir à parte de todo e qualquer sujeito. Ou não se segue? Ou não é essa uma escancarada forma de substantificação?
Aristóteles introduziu correções substanciais no platonismo. O mesmo se pode afirmar de Tomás de Aquino, em relação às filosofias medievais. No quadro dessas duas séries de filosofias inspiradas em Platão, o conhecimento do universal foi desconectado das sensações e considerado uma participação direta nas ideias. Aristóteles e Aquino o religaram à experiência sensível e descreveram não mais como participação, mas como abstração de dados daquela experiência. O problema que restou foi o peso considerável da substantificação implícita nas categorias do ser.
Não há dúvida de que o nominalismo livrou-nos desse peso. Mas não é demasiado afirmar que a filoso-fia de Ockham não é a única solução para o problema da substantificação pelas categorias. Ao suavizar o caráter objetivo das categorias, o realismo básico as pensa como difusas, porém dotadas de objetividade. É o que basta para evitar o erro da substantificação.
Da decisão do nominalismo ou do realismo bá-sico dependem concepções teológicas e científicas mui-to diversas. Dependendo da decisão que tomarmos, nesse terreno, as concepções resultantes da Teologia, das ciências e do mundo serão muito diversas. A diferença entre as visões concorrentes, porém, poderá ser definida com precisão como o teor metafísico de cada uma.

domingo, 16 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (4): Aristóteles Desaparece

No século XIX, o artista alemão Wilhelm von Kaulbach pintou a sua própria Escola de Atenas, não para retratar a Filosofia Antiga, como Rafael na sua obra três séculos anterior, mas para pôr em causa o drama da Reforma Protestante. Refiro-me à tela Era da Reforma, que transmite a mesma ideia de efervescência intelectual palpável em Escola de Atenas. Contudo, no centro da obra de Kaulbach, em vez de Platão e Aristóteles, vemos Martinho Lutero a erguer com as mãos uma Bíblia aberta.
As duas obras de arte desvelam ambientes culturais opostos, em que foram forjadas filosofias também contrastantes: no primeiro, a doutrina de Platão aponta o céu, e a de Aristóteles, para a terra. Nenhuma dessas doutrinas parece ter convencido profundamente Dante, que não vacilou em alojar Aristóteles no topo do círculo infernal reservado aos pagãos, e Platão abaixo dele. "Dura lex, sed lex": lei severa, mas é a lei. Não se pode negar que, com a sua definição literária dos destinos, Dante saltou as mediações convencionais, os rodeios, os circunlóquios, a fim de captar as consequências do pensamento radical de sua época. Tornou-se, assim, o próprio pensamento radical.
Séculos antes dele, Aristóteles tinha sido absorvido no platonismo, por duas razões: porque fora havido como um dos maiores platônicos e porque as peculiaridades da sua filosofia haviam-no tornado difícil de ler. Com efeito, no início da Idade Média, Aristóteles era tido como um filósofo excessivamente técnico, até mesmo obscuro. Por isso, afigurou-se melhor a muitos assimilá-lo ao corpus platônico do que lê-lo ou copiá-lo. Ao que devemos o desaparecimento gradual das suas obras. Cícero chegou a declarar que, no seu tempo, muito poucos filósofos conheciam diretamente Aristóteles. O ocaso da cultura pagã agravou ainda mais essa situação.
Não podemos, porém, esquecer que o primeiro passo do processo de desaparecimento das obras de Aristóteles foi a absorção das suas ideias pela filosofia platônica. Com absorção quero dizer a metabolização das suas doutrinas. Discípulos e admiradores de Aristóteles inseriram as ideias dele no corpus da tradição platônica. E uma vez alojadas ali, elas foram assimiladas como elementos do amplo arcabouço daquela filosofia.
As categorias aristotélicas do ser e a doutrina das causas estão claramente entretecidas com os textos de autores patrísticos como Orígenes de Alexandria. Mas a incorporação de Aristóteles não se limitou àquelas teorias. A doutrina estoica das razões seminais depende da do movimento como passagem da potência ao ato, que foi desenvolvida por Aristóteles. Ela também foi adotada, por pensadores platônicos de Orígenes a Santo Agostinho, com todas as consequências que se podem inferir. E os cânones da Lógica, na Idade Média, como se sabe, permaneceram solidamente aristotélicos, ainda que tenham sido transmitidos por autores como Boécio.
Alguns exemplos de ideias aristotélicas encontradas em Orígenes ajudarão a entender como se deu a assimilação de Aristóteles pelo platonismo. No Tratado sobre os princípios, esse autor afirmou: “Toda outra natureza que é santa [além da de Deus] tem a sua santificação pelo que recebeu do Espírito Santo, ou [foi] por ele inspirada para se santificar, não sendo assim por natureza, mas de modo acidental, pelo que pode perder o que alcançou” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012. 1º Livro, Cap. 3. p. 123). No texto acima, a ideia de acidente como algo oposto à natureza (substância) deriva de Aristóteles.
Noutra passagem, Orígenes registrou: “Nada pode ser visto senão pela sua forma, grandeza e cor, que é o próprio dos corpos. E se [a heresia gnóstica] afirma que Deus é corpo, consequentemente Deus seria feito de matéria, uma vez que todos os corpos são feitos de matéria” (idem. 2º Livro, Cap. 3, p. 149). De novo, a atribuição de forma, grandeza e cor como acidentes aos corpos, assim como a ideia de causa material, detectadas em Orígenes, são aristotélicas.
Escreveu ele ainda: “A bondade é o gênero das virtudes, a justiça e a santidade são as espécies desse gênero” (idem. 2º Livro, Cap. 5, p. 158). Sabemos que o gênero e a espécie são os dois grandes tipos de universais, em Aristóteles. Vemos Orígenes usá-los com maestria, como se tivesse a Metafísica aberta ao escrever. No entanto, ele não cita Aristóteles, nem a Metafísica ou o livro Sobre as categorias, antes os tem por assimilados.
Como se esses exemplos não fossem por si eloquentes, Orígenes escreveu, a respeito de Cristo, que “tão bem escolheu amar a justiça que, em consequência da imensidão do seu amor, aderiu a ela de maneira inconvertível e inseparável, de tal modo que [...] o que se encontrava na vontade se transformou em natureza em decorrência de longo hábito”. Novamente, a natureza é citada em sentido aristotélico. E o hábito a que Orígenes se referiu é um dos nomes pelos quais Aristóteles deu à décima categoria do ser.
No século IV, Gregório de Nissa referiu-se à alma como “forma mesma do corpo” (NISSA, Gregório de. A criação do homem. São Paulo: Paulus, 2011. p. 59). Trata-se de mais um ensinamento marcadamente aristotélico. Além disso, afirmou que “cada homem é como um utensílio que a combinação dos vários elementos forma a partir da matéria comum: a sua forma particular é a causa da sua grande diferença em relação aos seus semelhantes” (NISSA, Gregório de. A alma e a ressurreição. São Paulo: Paulus, 2011. p. 220). Matéria, forma e causa, nessa passagem, são utilizadas em sentido aristotélico.
Numa obra à qual não atribuímos a relevância devida, Santo Agostinho mencionou, uma a uma, as categorias de Aristóteles: “Nas coisas criadas e mutáveis, o que não se diz segundo a substância deve dizer-se segundo os acidentes. Tudo pode acontecer com os seres criados, pois sofrem perdas ou diminuem, tanto em relação à dimensão quanto à qualidade. Diga-se o mesmo das relações, como, por exemplo, a relação de amizade, parentesco, emprego, semelhança, igualdade e outras. E há ainda os acidentes de posição e hábito, lugar e tempo, ação e paixão” (HIPONA, Agostinho de. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. Livro V, Cap. V, p. 196). No último período são enumeradas quatro das 10 categorias (“posição e hábito, lugar e tempo, ação e paixão”). Antes dele, vemos as outras quatro: substância, dimensão ou quantidade, qualidade e relação. Dificilmente acharemos prova mais clara da assimilação da doutrina de Aristóteles por representantes de outras correntes filosóficas.
Fílon afirmou que a existência de Deus é facilmente demonstrada, ao contrário da sua essência, que é muito mais impenetrável. Demonstrou-a, em seguida, mediante os reflexos dos atributos divinos na natureza: "Vendo os montes e as planícies repletos de animais e de plantas, as torrentes dos rios e dos riachos, a extensão dos mares, o clima bem temperado, a regularidade do ciclo das estações, e depois o sol e a lua dos quais dependem o dia e a noite, as revoluções e os movimentos dos outros planetas e das estrelas fixas e de todo o céu, não deverá formar-se com verossimilhança e, antes, com necessidade, a noção do Criador, Pai e Senhor? De fato, nenhuma das obras de arte se produz a si mesma, e esse cosmo implica suma arte e sumo conhecimento, de modo que deve ter sido produzido por um artífice dotado de conhecimento e de perfeição absolutos. Desse modo, formamos a noção da existência de Deus" (ALEXANDRIA, Fílon de. As leis especiais. I, 32-35).
Paulo afirmou coisa parecida, em Romanos. Declarou evidente que Deus existe. Porém, Fílon o precedeu. Paulo não precisou gastar vários capítulos da sua epístola para demonstrar a existência de Deus, exatamente porque o argumento de Fílon, baseado no motor imóvel de Aristóteles, tinha sido amplamente assimilado.
Nem a demonstração de Fílon, nem a alusão de Paulo à existência de Deus tiram sua força argumentativa da evocação de uma vaga semelhança entre as coisas criadas e Deus. Sua eficácia decorre da possibilidade de remontar das coisas criadas às suas causas e destas à Primeira Causa ou Primeiro Motor, que Aristóteles chamara Deus. Essa é a ideia com força demonstrativa, por trás das afirmações de Paulo e de Fílon. Para Aristóteles, demonstrar era dar a causa de algo. Portanto, partindo das coisas criadas, era possível se remontar à Causa Primeira, que é Deus ou o Primeiro Motor. Também essa doutrina aristotélica foi absorvida pelo platonismo.
Vê-se portanto que, embora as obras de Aristóteles tivessem rareado e depois desaparecido, pontos cruciais da sua filosofia foram incorporados à visão de Universo platônica, que vigorou na Antiguidade e no início da Idade Média. Isso não significa que os autores patrísticos tenham compreendido tão claramente o platonismo de Aristóteles. Na maior parte das vezes, isso não aconteceu. Até porque, como veremos, após a morte de Aristóteles, seus herdeiros mais próximos, chamados peripatéticos, voltaram a afirmar o materialismo tradicional dos gregos, o que contribuiu para o obscurecimento da verdadeira orientação do aristotelismo.
Porém, de algum modo, autores patrísticos como Orígenes e Gregório de Nissa tiveram contato direto com textos de Aristóteles. O primeiro escreveu: “Aristóteles, depois de ouvir [Platão] durante vinte anos, dele se afastou, rejeitou a doutrina da imortalidade da alma e tachou de gorjeios as ideias platônicas” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 135). E Gregório referiu-se a Aristóteles como “o filósofo sucessivo [a Platão], o qual indagando habilmente sobre os fenômenos e examinando com cuidado o problema que nesse momento nos interessa [a natureza da alma] nos mostrou que a alma é mortal” (idem. p. 199).
A apresentação do pensamento de Aristóteles por Orígenes e Gregório sugere que eles conheciam o livro De anima, em que aquele filósofo afirmou que a alma nasce e desaparece com o corpo. Porém, indica a ignorância do diálogo Eudemo, em que o Estagirita defendeu a imortalidade da alma, o que confirma que os livros desse autor passaram a ser pouco reproduzidos.
O desaparecimento gradual das obras de Aristóteles não pode ser confundido com a crítica das suas ideias, ocorrida a partir do século XIII, já que não permitiu, como ela, a avaliação desfavorável e a própria rejeição do conteúdo do filósofo grego. Foi, porém, um processo importante, pois atrasou a compreensão de Aristóteles como um pensador não platônico.
No século XII, quando se deu o resgate dos textos de Aristóteles, do interior da cultura islâmica, que os descobrira e estudara extensamente, eles foram não só relidos, mas reinterpretados. Dessa reinterpretação, adveio o que em Filosofia se denomina Segunda Escolástica, que tomou o Estagirita como autêntica alternativa ao platonismo.
A principal controvérsia que a Segunda Escolástica desenvolveu foi a dos universais. Por tal conceito, entende-se toda ideia que pode ser predicada de vários seres, em oposição às que se aplicam a um único. Os modos de ser (em tal lugar, em tal época, em pé, sentado) e as qualidades (preto, branco, liso, áspero) dos objetos são universais, pois podem ser predicados de várias pessoas e coisas (que estão em determinados lugares em determinadas épocas, que estão em pé, sentadas, são pretas, brancas, lisas ou ásperas). O cerne da questão dos universais, o problema nuclear que suscitam, consiste em determinar se existem só no intelecto ou também no mundo real.
Sobre esse ponto, duas correntes de pensamento se organizaram: a realista, que teve em Tomás de Aquino seu maior expoente, considerava que os universais correspondem a características do mundo real. Portanto que algo é amarelo, porque a cor amarela está de fato nele. Os nominalistas, por outro lado, consideravam os universais meros nomes desprovidos de substancialidade. Para eles, a afirmação de que algo é amarelo implica que a nossa mente assim organiza o que vê e entende. Para além desse uso funcional dos universais, nada há que se possa afirmar com certeza uma propriedade abstrata das coisas.
Fiel a esse princípio interpretativo, um nominalista como Guilherme de Ockham negava que as categorias correspondessem a coisas reais. Como todo conceito, elas não eram mais do que nomes que nos permitem fazer referência ao real. Ockham lembrava que Aristóteles e Boécio tinham entendido as categorias nesse sentido. Nas suas palavras, "Boécio pretende, em diversas passagens de seu Comentário às categorias, que o Filósofo [Aristóteles] trata naquele livro de palavras faladas e, assim, consequentemente, chama substâncias primeiras e segundas as próprias palavras" (OCKHAM, Guilherme de. Lógica dos termos. Porto Alegre: PUC-RS/USF, 1999. Vol. III, item 42, p. 235).
Esse deslocamento das categorias para o interior do intelecto não anula, por certo, a sua racionalidade, mas drena a racionalidade que os gregos reconheciam no mundo. Já não podemos supor que a divisão estrita do ser em categorias, proposta por Aristóteles, seja uma propriedade do mundo. É como se o ser e a sua racionalidade fossem deslocados para o intelecto, e o real fosse despojado de tudo o que diz respeito ao ser e às categorias. É, enfim, como se a Metafísica se tornasse uma esfera privativa da mente.
A consequência mais radical do deslocamento das categorias ao interior do intelecto e ao plano da comunicação humana (flatus vocis) é o deslocamento da ordem que preside o cosmos para a mente e para o ar. A ideia de um cosmo ordenado foi, assim, desafiada pela primeira vez.
Ao ver enfermar a racionalidade do mundo, ao entregá-la à dúvida, Ockham a substitui por outro poder, que tudo sustenta: a vontade. Não a vontade do homem, mas a de Deus. Por essa vontade, não por imposições racionais, tudo veio a existir e se conserva até hoje. Se Deus tivesse querido outra coisa, outro mundo, outros fatos, os acontecimentos de todos os tempos também teriam sido outros.
Cedo se percebeu que essa reinterpretação de Aristóteles coloca em xeque toda a Filosofia Clássica. Em O nome da rosa, de Umberto Eco, outro Guilherme, um frade ockhamista do século XIV, treme ao pensar nas consequências dessa revolucionária ideia.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (3): A Escola de Atenas

No Palácio Apostólico do Vaticano, há um grande afresco com imagens de 57 pessoas num amplo e sofisticado ambiente, em cujo centro se percebe um corre-dor encimado por sucessivos arcos e, ao final, um pórtico. Tanto as paredes do corredor como as do pórtico são esculpidas e ornamentadas com estátuas. No centro do afresco, dois homens conversam, ladeados por 13 outros. Os demais se aglomeram em 11 grupos de interlocutores entretidos em diferentes diálogos e atividades. Só duas pessoas estão relativamente isoladas das outras e, com exceção das que ocupam o centro, tem-se a impressão de que elas estão na parte mais proeminente do afresco.
Pintada por Rafael, no início do século XVI, essa cena intitulada Escola de Atenas é uma alegoria do conhecimento secular. As pessoas nela representadas são sábios ou amigos de sábios de diferentes séculos. Um bom número é de filósofos. No centro, portando cada qual um livro, estão Platão e Aristóteles. O primeiro aponta para cima com o indicador; o outro, com a mão espalmada, mostra o chão.
As figuras talvez mais criativas da História da Filosofia estão na metade do quadro em que se acha Platão, inclusive Sócrates. Do lado de Aristóteles, estão estudiosos do mundo natural e de ciências exatas, a exemplo de Euclides e Ptolomeu. A notável exceção é Plotino, mestre maior do Platonismo Médio, cujas concepções guardam assinalado contraste com as das pessoas próximas dele e de Aristóteles. À primeira vista, Plotino parece cumprir o papel de uma ovelha negra. Porém, ao refletirmos um pouco mais, perguntamos se não terá sido posto ali para indicar que a metade aristotélica do saber não exclui uma forte presença do platonismo, assim como a História das Ideias, como um to-do, tem o seu palco na Academia, o imponente edifício da escola fundada e dirigida por Platão, em que todas as 57 pessoas se encontram.
A ideia central da obra-prima de Rafael, se ela tem uma, é o tanto de continuidade que subsiste na cultura e na filosofia das mais diferentes épocas. Estas devem o que são ao saber de Platão, Aristóteles e dos demais construtores do conhecimento das eras. É o que o quadro sugere. E não deixa de impressionar que o saber teológico, eixo de todos os outros, na época de Rafael, não esteja representado no quadro.
Uma pergunta que merece ser formulada é o que cada pessoa tem a manifestar sobre o quadro. Como ele a afeta? Porém, interessa indagar ainda mais o que teríamos a declarar, se a figura central do quadro (Platão) pudesse ser acusada de um erro significativo. Se o saber depende de Platão do modo como o afresco sugere, que aconteceria se ele nos faltasse? A humanidade pagã in-teira seria devolvida ao inferno, a que a comédia de Dante a consagra?
É desconcertante pensar que, em certo ponto da Idade Antiga, um erro com essas consequências começou a ser atribuído a Platão. E que o responsável pela imputação foi seu maior discípulo, Aristóteles.
Para bem entender o erro, é útil retornarmos à época situada um ou dois séculos antes, quando a Filosofia grega ainda se formava. Nesse tempo, Parmênides de Eleia lançou uma provocação destinada a influir decisivamente na cena que Rafael mais tarde retrataria. No poema intitulado Sobre a natureza, ele escreveu: “Pensar e ser é o mesmo/Pensar é o mesmo/E isso em função do que o pensamento existe/ Porque sem o ser, no qual é expresso/Não encontrarás o pensar”. Seguem-se muitos outros versos, que porém se limitam a reprisar e a extrair consequências dessa afirmação nuclear.
A equivalência entre o ser e o pensar proposta por Parmênides não constitui o erro crasso, que a pressa, a inépcia e o pragmatismo às vezes sugerem. Fundamenta-se, pelo contrário, numa reflexão profunda sobre a natureza do cogitar humano. De fato, para pensar, é preciso inserir o objeto pensado no ser. Desse ponto, qualquer retrocesso, rodeio ou negação do que foi afirmado importa contradição, portanto erro. De modo que o pensar, para Parmênides e sua escola, é um indício, quando não uma evidência de que aquilo que o pensa-mento concebe deve existir, de algum modo e em algum lugar.
Sem recuar em face do cunho antiintuitivo e incomum dessa concepção de Parmênides, Platão foi o primeiro a lhe dar desenvolvimento integral. Mas, em vez de embrenhar-se nas sendas labirínticas que Parmênides e outros trilharam, ao tentarem explicar por que tantas ideias não existem, com cativante simplicidade, Platão afirmou que elas não estão aqui, pois estão em outra parte. E a essa outra parte ele chamou mundo das ideias, pois os conteúdos inobserváveis do pensamento são puras ideias.
Hoje está claro que Platão e Parmênides incorreram num grave erro. Não se pode negar a distinção entre um objeto material e a ideia usada para designá-lo. As ideias se formam após termos experimentado sensações de vários seres. Assim, por exemplo, a ideia de homem surge após o intelecto abstrair as características peculiares dos indivíduos humanos e se ater aos traços comuns a eles.
Não é difícil perceber que, por resultarem do despojamento dos indivíduos e coisas de tantas características, as ideias que emergem ao final do processo não se confundem com eles. Isso é muito bem estabelecido e reconhecido. O erro de Parmênides e Platão consistiu em não terem admitido as consequências dessa distinção relativamente a uma ideia em particular: a de existência. Eles não reconheceram que a existência é uma ideia que, como as outras, deve distinguir-se da realidade que serve para indicar, isto é, da existência real. Talvez levados por esse engano, embora reconheces-sem a diferença estrutural entre as idéias das coisas e as próprias coisas, aqueles pensadores atribuíram existência real às ideias.
O platonismo pode ser visto como o vasto desenvolvimento de uma solução dos problemas suscitados pela escola de Parmênides. E as filosofias que se seguiram a Platão podem ser expostas da mesma maneira, já que são elos na sequência de avanços e retrocessos em relação a Parmênides. Vezes sem fim, as escolas lutaram entre si, criticaram-se, resolveram diferentemente os problemas que propuseram. Mas elas propuseram os mesmos problemas fundamentais, e isso é curial. Aristóteles, por exemplo, criticou a localização das ideias num mundo à parte. E sobre o princípio diverso a que chegou por esse meio, viu-se florescer uma visão de Universo nova, eminentemente empírica, terrena.
Por isso, temos Platão a apontar para o céu, e Aristóteles, para o chão, na obra de Rafael. Mas é possível perguntar se, por trás de diferenças tão mani-festas, um princípio unificador não percorre os erros tanto quanto as grandes verdades que as escolas platô-nicas e aristotélicas afirmaram.
A tendência a aceitar em profundidade cada vez maior a mão apontada para baixo, na História, abalou a Cristandade. Mas não tanto quanto a crítica a Aristóteles, que se desenvolveu mais tarde. Não porque Aristóteles fosse tão distinto de Platão quanto as mãos para baixo de um e para cima de outro podem sugerir, mas porque, por muito tempo, ele foi visto como o próprio Platão: o derradeiro, mais denso e mais extenso Platão, embora também, para alguns. Por ver Aristóteles dessa maneira, Santo Agostinho pôde escrever que ele “e Platão estavam tão perfeitamente de acordo entre si que só aos ignorantes e desatentos podiam parecer discordar” (AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. São Paulo: Paulus, 2008. p. 144).
Convicção tão claramente expressa, por um dos mais admirados filósofos da Antiguidade, Santo Agostinho, não era, porém, apenas dele. A oposição entre Platão e Aristóteles, que nos é recomendada, às vezes com tanta ênfase, nos cursos de Filosofia atuais, não foi sempre admitida. Nos alvores das duas doutrinas, quando as gerações imediatas àqueles filósofos viram for-mar-se as respectivas escolas, as exposições de platônicos e peripatéticos não raro valorizaram as diferenças entre Platão e Aristóteles. Porém, com o tempo, a ênfase nas diferenças cedeu lugar à valorização das con-vergências entre eles. Cícero o afirma com todas as letras, no De legibus, que a antiga Academia (primeiras gerações de filósofos platônicos) dividia-se num ramo integrado por Euspesipo, Xenócrates e Polemon, entre outros, e outro composto por “aqueles que seguiram Aristóteles e Teofrasto, que concordavam com os primeiros na doutrina, mas diferiam no método” (CÍCERO, Marco Túlio. De legibus. Livro I. Disponível em www.oll.libertyfund.org).
Uma das figuras mais enigmáticas da Hitória da Filosofia Antiga, Amônio Sacas, que não deixou obra escrita, mas foi mestre de Orígenes e Plotino, entre outros, parece ter sido um dos principais responsáveis pela difusão da interpretação de Aristóteles defendida por Cícero, como atestou Hiérocles, no século V: 
“Amônio introduziu o princípio que serve de regra comum para todas as opiniões comuns de Plotino, de Orígenes, de Porfírio, de Jâmblico e de Plutarco, ou seja, o de que a verdade sobre a natureza das coisas está inteiramente contida na doutrina purificada de Platão. Antes dele, os platônicos e os peripatéticos exageravam as oposições entre os dois sistemas, e essas discussões perduraram até Amônio, o Teodidata” (BERGSON, Henri. Cursos sobre a Filosofia Grega. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 5).
O testemunho de Hiérocles foi preservado por Fócio, patriarca de Constantinopla no século IX e figura central da História da Igreja. Dá conta de que a convergência entre Platão e Aristóteles, pouco valorizada por seus primeiros discípulos, tornou-se a “regra comum para todas as opiniões comuns” desde Amônio Sacas. Não espanta Santo Agostinho integrar o cortejo dos que pensavam da maneira a princípio ensinada por Sacas. 
A dependência parcial de Aristóteles para com Platão não é absolutamente desconhecida dos pensadores que se dedicaram a esse período da História das Ideias. Karl Popper, por exemplo, escreveu que "o pensamento aristotélico é inteiramente dominado pelo de Platão. Um pouco recalcitrantemente, seguiu ele seu grande mestre, tão de perto como o permitia seu temperamento, não só em suas perspectivas políticas gerais, mas em todos os demais pontos" (POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos. 3ª ed., São Paulo: EDUSP, 1987. Tomo 2, p. 8).
Provavelmente, o Platão e o Aristóteles que Rafael representou em seu afresco ainda eram os filósofos convergentes. Rafael retratou exatamente a força dessa convergência, que as eras tinham admitido e que tinha moldado as eras. E é claro que Platão ser refutado, nesse contexto, era algo grave, porém as bases da sua filo-sofia poderiam ser salvaguardadas enquanto Aristóteles permanecesse íntegro. O mesmo não sucederia, porém, se Aristóteles se desintegrasse. Se isso ocorresse, Platão ruiria com ele, e a segunda navegação chegaria ao fim.
Foi o que sucedeu. Exemplo cabal é dado pelas categorias do ser de Aristóteles. Os gregos, em geral, consideravam o ser sinônimo de realidade. Nesse contexto não apenas filosófico, mas cultural, as dez categorias (substância, relação, quantidade, qualidade, quando, onde, ação, paixão, ter e jazer) foram vistas como modos pelos quais o real se organiza. O mundo não está em desordem. Ele é estruturado, e os mecanismos que fundam sua estrutura são as categorias. Para ser ainda mais claro, tudo o que existe é uma substância, mantém relações com outros seres, existe em deter-minadas quantidade, apresenta qualidades etc. Portanto, existe segundo as categorias, que não se encontram só no intelecto, mas também fora dele, como Aristóteles afirmou expressamente em seu livro Sobre as categorias.
Fica, pois, claro que, se não somos capazes de pensar alguma coisa sem recorrer a conceitos como os de tempo (quando), espaço (onde), ação, relação, quantidade e qualidade, por outro lado, a transferência desses conceitos da mente ao mundo, sua substantificação, tem por consequência a fetichização das coisas. Não sabemos pensar sem categorias como as aristotélicas. Mas elas foram impregnadas do encanto substancialista dos antigos gregos. A ponto de terem tornado a cultura um balé das ideias à realidade e desta de volta às ideias ou vice-versa.
O erro de Platão não revela suas consequências mais drásticas ao ser detectado nele, mas em Aristóteles. A ordem do céu rompe-se com maior estrondo, quando se manifesta como ordem da terra. O empirista Aristóteles tinha sido o canal de ligação do platonismo etéreo com as mais diversas áreas do saber terreno e da vida humana. Sua mão voltada para baixo gerara uma ampla visão da natureza, do pensamento científico e do comum, tanto quanto uma ordem social plástica, mas que perpetuava o antigo e reproduzia o poder. Pouco restava ao mundo fora dessa visão.
Por isso, o desmoronamento de Aristóteles, na parte final da Idade Média, foi sentido como o maior de todos os terremotos intelectuais até então. Duas forças, uma antiga, outra nova, uma de cunho sagrado, outra secular, a exegese bíblica e a ciência moderna, foram responsáveis pelos abalos e trabalharam para substituir, pouco a pouco, as ideias desmoronadas.

sábado, 8 de setembro de 2012

O Romance da Filosofia (2): O Logos Divino

Orígenes de Alexandria tinha cerca de 65 anos, quando foi encarcerado e torturado por sua fé em Cris-to, durante a perseguição movida pelo Imperador Décio. Manteve-se firme o tempo todo e jamais renegou a fé que abraçara ainda jovem. Solto, não resistiu às consequências da tortura e morreu, no ano 253.
Os livros que Orígenes nos deixou suscitaram muita polêmica. Não se discute, porém, que neles se encontra a primeira explanação completa da fé em Cristo, com ajuda da filosofia platônica, na História da Igreja. A explanação é o farol mais alto que nos permite enxergar como a doutrina a respeito de Cristo chegou até nós, em meio à voragem do tempo. Pode-se postular que ela se formou em duas etapas, marcadas pela influência de fontes bastante diversas: o testemunho dos Evangelhos canônicos e a interpretação da doutrina filosófica do Logos em termos cristão-platônicos.
Orígenes foi a maior fonte de luz sobre ambas as fontes, até Agostinho de Hipona. Mas, se a sua exegese dos Evangelhos foi fundamental, não há como não se reconhecer que outras a igualaram em estatura. O cristianismo não tem muita falta de notáveis exposições das suas Escrituras. Porém, a explicação da pessoa do Logos, que Orígenes nos legou, nunca foi igualada. Ela foi, de certa forma, o desenvolvimento máximo a que a reflexão cristã-platônica da Epístola aos Hebreus foi levada.
Uma primeira razão para isso foi o fato de Orígenes ter evitado os perigos do erro maior de Platão, a saber: a substantificação das ideias e do mundo das ideias. Vimos que esse erro consistiu na atribuição de consistência real às ideias de números, figuras geométricas e outros objetos, como se existissem não só no intelecto de quem os pensa, mas num mundo exterior a ele. Orígenes evitou cuidadosamente tal erro, ao atribuir às ideias consistência apenas intelectual, como se percebe na seguinte passagem do Tratado sobre os princípios: “Nosso Senhor e Salvador designa também um mundo que não é o visível. De fato, ele diz: ‘Eu não sou deste mundo’ (Jo17:14) [...] Não seja o caso que alguns encontrem aí pretexto para entender que com isso afirmamos a existência de certas imagens que os gregos chamam ideias; mas é completamente alheio ao nosso modo de pensar falar de um mundo não corpóreo que só tem consistência na fantasia ou em pensamentos escorregadios” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012. 2º Livro, Cap. 6. p. 141).
Negação mais decidida da doutrina platônica das formas ou ideias como realidades autoexistentes não é possível. Embora platônico sob outros pontos de vista, Orígenes não segue aquele mestre grego no ponto tópico relativo à natureza das ideias. Pelo contrário, ele declara fantasiosa a hipótese de um mundo incorpóreo composto por pensamentos. Por isso, embora derive a existência de realidades espirituais de um “mundo das ideias” (noetós) de Deus, ele emprega outro termo, para demarcar a diferença entre esse mundo e o dos seres espirituais efetivamente existentes: noerós (idem. nota 15, p. 144). Não é improvável que essa demarcação terminológica corresponda à distinção aristotélica entre o inteligível e as inteligências. Pelo contrário, as duas distinções parecem manter estreita relação.
O emprego de termos distintos para designar o inteligível e as inteligências, aliado a passagens como a citada acima, em que Orígenes se recusa a reconhecer objetividade às ideias, faz questionar de que parte esse filósofo retirou doutrina tão avançada e, ao mesmo tempo, contrária a tudo o que se ensinava nos meios platônicos da sua época. Uma explicação possível é a influência da doutrina de Aristóteles, para quem o suprassensível não é constituído de inteligíveis, como em Platão, mas de inteligências. É perfeitamente possível que Orígenes tenha recolhido essa doutrina direta ou indiretamente de Aristóteles e a adotado.
Mas, ainda assim, é de admirar a firmeza com que o filósofo cristão se opôs à tendência do platonismo da sua época. E ainda maior admiração infunde a lembrança de que o próprio Aristóteles, a quem aquela diferenciação é atribuída, apegou-se à noção substancialista de que as formas existentes nas coisas surgem no intelecto, por ocasião do conhecimento sensível. Quando nos damos conta desses particulares, notamos que Orígenes foi capaz de adotar o que há de mais avançado em Aristóteles, sem incidir no substancialismo daquele filósofo.
O fato é tão conspícuo que merece exame detido. Teria Orígenes realmente recebido a distinção de Aristóteles entre inteligível e inteligente e rejeitado a substantificação das ideias platônicas ou essas opiniões foram combinadas por outros pensadores, de quem o filósofo patrístico as recebeu? É provável que a rejeição da objetividade das ideias tenha sido tomada por Orígenes dos estoicos, que ensinavam que apenas os seres individuais, como a lua e Sócrates, existiam. Para os estoicos, termos gerais como homem e animal referiam-se a noções mentais (ennoemata) (STEAD, Christopher. A Filosofia na Antiguidade cristã. São Paulo: Paulus, 1999. p. 53). Tão semelhante é essa concepção à que vemos expressa em Orígenes que a dependência para com os estoicos se torna a hipótese mais provável.
Porém, a conquista maior da patrística não foi a combinação dessas ideias, por si já bastante fecunda, mas a adoção simultânea da intuição mais luminosa de quantas o platonismo trouxe ao mundo, a saber: a inteligibilidade do mundo. A ideia de que o mundo pode ser compreendido pertence ao senso comum. Não é, pois, uma ideia nova. Porém, o modo como ela se encontra no cabedal de conhecimentos comuns de tantos povos, inclusive dos antigos gregos, não se compara com o modo novo como Platão e Aristóteles entenderam a inteligibilidade. Para esses dois filósofos, o mundo ser inteligível é algo muito distinto do que o senso comum entende por essa afirmação. Significa que cada partícula do real, que os gregos havia séculos concebiam como material, está estruturada de modo a possibilitar o conhecimento racional.
Essa descoberta, que faz recordar a frase de Einstein segundo a qual o mais surpreendente sobre o Universo é o fato de poder ser conhecido, alça a inteligibilidade a um patamar totalmente novo. Pode-se mesmo afirmar que, com Platão, esse conceito passa do senso comum para o nível do conhecimento muito mais elevado que se usa denominar Metafísica.
No fundo, a inteligibilidade implica que, se reduzirmos o real às suas menores partes, ele continuará inteligível, pois o é por essência. Essa relação entre o mundo e o conhecimento não havia sido jamais postulada. Trazia consigo uma consequência revolucionária: se o mundo é eterno, como os gregos sempre o tinham pensado, segue-se que esteve eternamente dado ao conhecimento. Claro que, a uma oferta tão duradoura de inteligíveis, deviam corresponder inteligências eternas.
Para entendermos essa consequência da inteligibilidade do mundo, é útil recorrermos ao exemplo da água. Sabemos que, para haver vida, é preciso haver água e que o contrário é também provável: onde há água, deve haver algum tipo de vida. Não é diferente com a oferta infinita de inteligíveis, que acabamos de demonstrar. Ela sugere a existência de inteligências eternas.
Se o mundo é tão profundamente inteligível, devem ter sempre existido inteligências. Isso não prova a existência de inteligências eternas, mas sugere de um modo novo e particularmente vigoroso a eternidade da inteligência. A Filosofia Cristã não é compreendida enquanto não se reconhece que ela nasce e se orienta por essa intuição.
Tantas e tão profundas são as consequências da intuição a que me refiro que nenhum pensador antigo as extraiu todas. Podemos até afirmar que a ideia permaneceu implícita no platonismo antigo. Não foi desenvolvida ao ponto de as suas principais consequências tornarem-se claras. Refiro-me à inteligibilidade profunda do cosmo, àquela que Einstein declarou constituir a mais fundamental de todas as verdades sobre a natureza. Essa é a ideia maior do platonismo, que permaneceu implícita, subjacente às obras de Platão, Aristóteles e seus seguidores. É também a ideia que mais seduziu pensadores cristãos como Orígenes.
Fílon viveu 200 anos antes de Orígenes, na mesma cidade dele. Foi o primeiro a conciliar os resultados da Filosofia grega à exposição do Antigo Testamento. Porém, como costuma ocorrer nos inícios de toda nova doutrina e de toda nova técnica, há em Fílon equívocos que foram corrigidos por seus sucessores, a exemplo de Orígenes. O mais proeminente deles é o estatuto das ideias, que Fílon considera reais (existentes no mundo exterior), e Orígenes, intelectuais (existentes só no intelecto, mas que podem ser reproduzidas, com alterações, no mundo celeste ou terreno).
As concepções de Deus de Fílon e Orígenes desprendem-se do modo pelo qual cada um conceitua o mundo das ideias. Como em Fílon as ideias são reais, Deus é o Todo constituído por elas. Esse Todo contém o mundo material, que nele tem sua gênese. Mas, em Orígenes, as ideias são inteligíveis e não têm existência alguma pelo simples fato de o serem. Deus existe não por ser uma ideia ou a soma de todas as ideias, mas como pessoa eterna.
Essa conclusão só é possível, em Orígenes, por-que as ideias não têm existência real. Se a possuíssem, a soma de todas elas seria maior e mais poderosa que o Deus pessoal, que já não seria supremo, o que é absurdo. Portanto, Orígenes parece relacionar o Deus pessoal supremo à inexistência objetiva do mundo das ideias.
Mas a modificação a que Fílon submete o conceito estoico de Logos tem ainda maior importância para a formação do kerigma (pregação) cristãos do que as concepções acima a respeito de Deus e das ideias. Diferentemente de Platão, Fílon acredita que as ideias não são eternas, mas foram criadas por Deus para ser-virem de modelos na formação do mundo físico. São, pois, criaturas especiais, por refletirem de modo perfeito a natureza imaterial do Criador, verdadeiras imagens intelectuais do ser divino.
A ideia principal que Deus cria, a imagem mais importante, de acordo com Fílon, é o Logos, em que todas as outras ideias estão abrangidas. O Logos é, pois, a imagem perfeita de Deus, o modelo de todas as coisas criadas.
É útil transcrever a seguinte exposição da doutrina do Logos, a fim de que as consequências dela para a formação da fé cristã sejam elucidadas: “Filo distingue o Logos de Deus e faz dele quase uma hipóstase, e o denomina até mesmo ‘filho primogênito do Pai incriado’, ‘Deus segundo’, ‘imagem de Deus’” (REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. 2ª ed., São Paulo: Loyola, 2001. Vol. IV, p. 249).
Não é preciso mais para transmitir quanto a doutrina neotestamentária de Cristo, e a de Hebreus em particular, têm em comum com essa. A semelhança é tão espantosa que sugere derivação. Como os 66 livros do Antigo Testamento nada apresentam de tão semelhante, é preciso perquirir se o que recebemos, como doutrina sobre a pessoa de Cristo, não resultou da fusão (e contínua reelaboração) do retrato dele nos quatro Evangelhos com a filosofia judaicoplatônica do Logos, derivada de Fílon. É possível que tenha sido esse o caso.
É particularmente edificante entender como Orígenes recepciona essa filosofia, submete-a a rigo-rosa comparação com as Escrituras e a consolida. Para explicar o sentido dos versos em que Paulo afirma que o Filho, “subsistindo em forma de Deus não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes a si mesmo se esvaziou etc.” (Fp 2:6-7), Orígenes recorre à comparação com “uma estátua tão grande que pudesse conter toda a terra e que devido à sua imensidão ninguém pu-desse enxergar, e que outra estátua fosse feita, em tudo parecida com a primeira”, com o objetivo de revelá-la aos que não a podiam conhecer. Ele conclui: “De modo análogo, o Filho, se aniquilando ao abandonar a igualdade com o Pai, e nos mostrando o caminho para conhecê-lo, tornou-se ‘marca impressa da figura da sua substância’” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Ob. cit. 1º Livro, Cap. 8. p.77).
De onde Orígenes extrai a expressão “marca impressa da figura da sua substância”? Extrai-a de Hebreus 1:3, e é bom que se diga que ninguém o supera em matéria de citar, com fidelidade e precisão, os originais gregos. Marca impressa da figura da substância divina é o que nossas Bíblias vertem “expressão exata do seu ser”. Orígenes ensina que ela é a imagem acabada, não só das ideias da mente divina, mas da es-sência de Deus. Essa imagem nada mais é que o Logos, que ao se encarnar produziu uma “marca” na matéria corpórea. Será preciso acrescentar que isso tudo, em Fílon, Hebreus e Orígenes, é profundamente platônico?
Orígenes busca nos apócrifos incorporados à Bíblia judaica da Diáspora (cânon helenista) passagens que se assemelham à acima citada de Hebreus, para explicar o mistério da encarnação do Verbo (Logos). Age prudentemente, já que esses livros pertencem ao período helenístico e refletem ideias gregas e platônicas. Particularmente Sabedoria 7:25-26 discorre: “Ela [a sabedoria] é um sopro do poder de Deus, e aporroia, isto é, emanação puríssima da glória do Todo-poderoso, esplendor da luz eterna, espelho imaculado da atividade ou do poder de Deus e imagem da sua bondade”. Perguntarei novamente: será necessário acrescentar que a fonte de que essas palavras emanam é a Academia de Atenas?
A História da Filosofia pode ser contada, de certa forma, como um romance, pois é percorrida por um fio condutor, que interliga as inquietações, discussões e exposições que se manifestam nos seus vários períodos. É, como tal, uma história sobre alguma coisa central, uma narrativa com um sentido geral, não uma multidão de fatos ou de doutrinas desconexas. Não foi por outro motivo que os primeiros cristãos a entenderam como revelação do Logos.
Nada disso se põe por uma prova definitiva. É, pois, matéria de dúvida. Mas é, no mínimo, surpreendente que tal dúvida possa ser expressa em linguagem filosófica. E ainda mais que essa linguagem seja substancialmente pré-cristã.