O choque do
liberalismo com a esquerda leva cada um dos lados a representar a
posição contrária como uma caricatura. Portanto a outorgar ao oponente o
direito de proceder da mesma maneira. Assim, liberais e progressistas não apenas caricaturam-se como legitimam os desenhos que criam uns
dos outros. É o triste preço de ridículo que a ideologia cobra dos seus tributários.
Toda caricatura distingue-se por ampliar características reais de um objeto. Embora o objeto possua o traço que ela acentua, a ampliação o deforma. Por isso, todos riem dela. Riem-se também porque a caricatura não retrata só uma pessoa, mas várias, já que a intenção dela é representar a espécie tanto quanto os indivíduos, o homem genérico e o individual.
As caricaturas do mercado não fogem à regra. Elas não pretendem só aumentar os erros isolados dos agentes econômicos, mas sugerir que eles são produzidos em série, gerando um mundo anômalo e paralelo ao real. Para observadores isentos, o dinheiro é um ente tão benigno e tão nocivo quanto todos os outros. Por possuir o apanágio da liquidez, ele não se torna melhor ou pior do que outros bens. Contudo, os autores de caricaturas ampliam as mazelas reais do dinheiro até transformá-las na quinta essência do mal. Implícito fica que essa quinta essência é a verdadeira vilã e a responsável por todas as misérias do mundo. O mesmo fazem com os vários mercados, cujos males são convertidos em mal absoluto e abstrato, isto é, no mercado maligno.
Uma das características da crise financeira de 2007-2008 foi ter dado ocasião a um enorme número de caricaturas das finanças e dos outros mercados. O filósofo Luc Ferry assim se pronunciou sobre ela: “A imagem otimista, segundo a qual haveria uma ‘boa’ economia, a economia real, e outra ‘ruim’, a ‘economia-cassino’, imagem que se popularizou a partir da década de 1980 junto ao grande público com o filme Wall Street [...] encontra ampla repercussão porque, em certo sentido, é tranquilizadora: bastaria [...] ‘moralizar’ o capitalismo [...] e pronto, o circo estaria armado, voltaríamos à boa prática de bancos destinados a financiar a indústria, e não a ganhar dinheiro em cima de dinheiro” (FERRY, Luc. Diante da crise: materiais para uma política de civilização. Rio de Janeiro: Bertrand, 2010. pp. 9-10).
Aparentemente, Ferry denuncia o hábito de associar as finanças à cupidez e à ganância. Porém, ele mostra a seguir que a intenção da sua crítica não é reduzir, mas ampliar a base das acusações ao capitalismo do setor financeiro para todos os setores: “A verdade é bastante diferente. Não há dúvida de que é a economia real, e não, em primeira instância, a cupidez de alguns financistas loucos, que está na origem do descontrole da famosa crise dos subprimes [...] O problema não reside principalmente nos desvios de certos atores (os bancos americanos), mas enterra suas raízes no próprio coração do sistema da economia moderna” (idem. pp. 10-11).
Para Ferry, o problema do subprime não foi localizado, mas geral. Desnudou a disfunção congênita do capitalismo, ou seja, “a bipolarização crescente do mundo do trabalho, de um lado com trabalhadores com elevada formação, que se beneficiam de altas remunerações, e, de outro, ao contrário, com uma massa de assalariados parcamente recompensados por serem menos qualificados” (idem. p. 12). Essa disfunção é o problema enraizado “no próprio coração do sistema da economia moderna”. As palavras raízes e coração sugerem que Ferry percebe o arrocho salarial momentâneo, que levou os trabalhadores a se enforcarem em dívidas, como mal essencial que compromete o sistema capitalista.
Nesse trecho da encíclica, a recente crise global é recuada para 2007, para melhor destacar a sua ligação com as finanças, pois depois de 2007 a desordem deixou de ser só financeira para ser também econômica. Mais do que isso, o Papa fala da crise e continua a falar da “produção”, que “não é sempre racional, o que deixa claro o mesmo diagnóstico de Ferry, ou seja, o de que a crise se originou na produção tanto quanto no setor financeiro. Nem um, nem outro, porém, se incomoda em prover a menor demonstração disso.
Toda caricatura distingue-se por ampliar características reais de um objeto. Embora o objeto possua o traço que ela acentua, a ampliação o deforma. Por isso, todos riem dela. Riem-se também porque a caricatura não retrata só uma pessoa, mas várias, já que a intenção dela é representar a espécie tanto quanto os indivíduos, o homem genérico e o individual.
As caricaturas do mercado não fogem à regra. Elas não pretendem só aumentar os erros isolados dos agentes econômicos, mas sugerir que eles são produzidos em série, gerando um mundo anômalo e paralelo ao real. Para observadores isentos, o dinheiro é um ente tão benigno e tão nocivo quanto todos os outros. Por possuir o apanágio da liquidez, ele não se torna melhor ou pior do que outros bens. Contudo, os autores de caricaturas ampliam as mazelas reais do dinheiro até transformá-las na quinta essência do mal. Implícito fica que essa quinta essência é a verdadeira vilã e a responsável por todas as misérias do mundo. O mesmo fazem com os vários mercados, cujos males são convertidos em mal absoluto e abstrato, isto é, no mercado maligno.
Uma das características da crise financeira de 2007-2008 foi ter dado ocasião a um enorme número de caricaturas das finanças e dos outros mercados. O filósofo Luc Ferry assim se pronunciou sobre ela: “A imagem otimista, segundo a qual haveria uma ‘boa’ economia, a economia real, e outra ‘ruim’, a ‘economia-cassino’, imagem que se popularizou a partir da década de 1980 junto ao grande público com o filme Wall Street [...] encontra ampla repercussão porque, em certo sentido, é tranquilizadora: bastaria [...] ‘moralizar’ o capitalismo [...] e pronto, o circo estaria armado, voltaríamos à boa prática de bancos destinados a financiar a indústria, e não a ganhar dinheiro em cima de dinheiro” (FERRY, Luc. Diante da crise: materiais para uma política de civilização. Rio de Janeiro: Bertrand, 2010. pp. 9-10).
Aparentemente, Ferry denuncia o hábito de associar as finanças à cupidez e à ganância. Porém, ele mostra a seguir que a intenção da sua crítica não é reduzir, mas ampliar a base das acusações ao capitalismo do setor financeiro para todos os setores: “A verdade é bastante diferente. Não há dúvida de que é a economia real, e não, em primeira instância, a cupidez de alguns financistas loucos, que está na origem do descontrole da famosa crise dos subprimes [...] O problema não reside principalmente nos desvios de certos atores (os bancos americanos), mas enterra suas raízes no próprio coração do sistema da economia moderna” (idem. pp. 10-11).
Para Ferry, o problema do subprime não foi localizado, mas geral. Desnudou a disfunção congênita do capitalismo, ou seja, “a bipolarização crescente do mundo do trabalho, de um lado com trabalhadores com elevada formação, que se beneficiam de altas remunerações, e, de outro, ao contrário, com uma massa de assalariados parcamente recompensados por serem menos qualificados” (idem. p. 12). Essa disfunção é o problema enraizado “no próprio coração do sistema da economia moderna”. As palavras raízes e coração sugerem que Ferry percebe o arrocho salarial momentâneo, que levou os trabalhadores a se enforcarem em dívidas, como mal essencial que compromete o sistema capitalista.
Um eco desse discurso,
encontro-o nas encíclicas do Papa Francisco que, embora transbordantes de boas
intenções, apresentam-se salpicadas por uma crítica que pressupõe a mesma
identificação que Luc Ferry realiza entre economia (de escala) e cupidez, entre
produção e injustiça. Ouçamos o seguinte trecho de Laudato si, sem dúvida dedicado aos mesmos fatos sobre os quais
Ferry também se debruça: "A salvação dos bancos a todo o custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura" (FRANCISCO. Laudato si, Cap. V, 189. Disponível em www.m.vatican.va/content. francesco/pt/encyclic/documents.
Acesso em 19/06/15).
Como acontece no texto de Ferry, aparentemente, a crítica do Papa dirige-se só à finança, porém a encíclica continua: "A crise
financeira de 2007 e 2008 era a ocasião para o desenvolvimento duma nova
economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da
atividade financeira especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve uma reação
que fizesse repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o mundo.
A produção não é sempre racional, e muitas vezes está ligada a variáveis econômicas
que atribuem aos produtos um valor que não corresponde ao seu valor real. Isto
leva frequentemente a uma superprodução dalgumas mercadorias, com um impacto
ambiental desnecessário, que simultaneamente danifica muitas economias regionais" (idem). Nesse trecho da encíclica, a recente crise global é recuada para 2007, para melhor destacar a sua ligação com as finanças, pois depois de 2007 a desordem deixou de ser só financeira para ser também econômica. Mais do que isso, o Papa fala da crise e continua a falar da “produção”, que “não é sempre racional, o que deixa claro o mesmo diagnóstico de Ferry, ou seja, o de que a crise se originou na produção tanto quanto no setor financeiro. Nem um, nem outro, porém, se incomoda em prover a menor demonstração disso.
Mas Francisco é ainda mais explícito: "Habitualmente,
a bolha financeira é também uma bolha produtiva. Em sua, o que não se enfrenta
com energia é o problema da economia real, aquela que torna possível, por
exemplo, que se diversifique e melhore a produção, que as empresas funcionem adequadamente,
que as pequenas e médias empresas se desenvolvam e criem postos de trabalho" (idem).
Esse é talvez o trecho mais à esquerda da encíclica de Francisco, pois ele propõe "reformar o sistema [econômico] inteiro", o que inclui as finanças e a produção. Embora as palavras "rever e reformar" tenham sido empregadas, sabemos que a proposta que elas veiculam não é menos do que revolucionária. Mas é também o que mais carece de fundamento demonstrativo na encíclica de Francisco e, se me for permitido juntar, na Doutrina Social da Igreja.
Penso haver um manifesto
exagero no diagnóstico de Ferry e Francisco. E que a alegação do descontrole essencial da produção
não se pode provar. O que pode ser estabelecido por meios científicos é que a
crise financeira foi desencadeada pelo apetite dos bancos de investimentos e
comerciais, que não esperavam que o lucro pudesse converter-se em prejuízo em
razão do endividamento excessivo de seus clientes. Em essência, foi o que
aconteceu e que produziu a falta de cuidado e a crise. Mas isso é,
precisamente, o que costumamos denominar desordem financeira. A transposição
desse mal para o setor produtivo, com base na ideia de que a economia de escala
é congenitamente perniciosa, pode ser tão bem comprovada quanto a superioridade
do socialismo científico ao capitalismo.
A crise financeira foi potencializada pelo apetite voraz dos bancos de
investimentos e comerciais pelo lucro de operações complexas. Não esperavam que o lucro pudesse transformar-se em prejuízo pelo endividamento
excessivo e a consequente incapacidade de pagamento de um grande número de
devedores. Em essência, é o que chamam mal financeiro. O resto são atributos secundários e
adjetivos dele. Na realidade, o comportamento que potencializou os riscos dos financiamentos consistiu em buscar o lucro proporcionado por operações complexas. Porém, essas operações são inseparáveis do desenvolvimento recente das relações econômicas. Piketty, que está longe de ser um liberal, informou que “os investimentos alternativos representam pouco mais de 10% das carteiras [das Universidades públicas americanas] com dotações inferiores a 50 milhões de euros, depois atingem rapidamente 25% entre 50 e 100 milhões de euros, 35% entre 100 e 500 milhões de euros, 45% entre 500 milhões e 1 bilhão de euros, para finalmente culminar com mais de 60% da carteira para as dotações superiores a 1 bilhão” (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 438).
Reitero que as Universidades americanas que administram esses orçamentos altíssimos geralmente são públicas. Portanto, em última instância, o Estado é quem opta pelos investimentos alternativos. Piketty explica que a opção se deve à rentabilidade mais elevada que eles oferecem. Não está, pois, relacionada à ganância ou à paixão pelo lucro. Menos ainda à característica básica do lucro privado, que é a sua relação com o risco. “O rendimento obtido pelas maiores dotações não se deve ao fato de essas instituições adotarem uma estratégia com mais risco, mas, sobretudo, por adotarem uma estratégia de investimento mais sofisticada” (idem).
Os motivos de os fundos privados optarem por investimentos complexos não são diversos dos que levam os fundos controlados pelo Estado a fazerem a mesma opção. São motivos de ordem racional, nem melhores, nem piores que os dos gestores financeiros de Harvard, Yale e Princeton. Piketty mostra que, embora os fundos soberanos de nações sejam um pouco menos marcados pela racionalidade do lucro, também eles buscam os investimentos com maior retorno, vale dizer, os que apresentam desenhos exóticos e complexos (idem. pp. 444-445).
Curiosamente, as empresas em que a crise do subprime se formou, nos Estados Unidos, a Fannie Mae e a Freddie Mac, eram "de capital privado, patrocinadas pelo governo (government-sponsored enterprises – GSEs)” (PAULSON, Henri M. À beira do abismo financeiro – a corrida para salvar a economia global do colapso. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 2). Haviam sido criadas pelo Congresso americano (idem. p. 50). Portanto, eram o que costumamos denominar estatais. Juntas, a Fannie e a Freddie “detinham ou garantiam mais de US$ 5 trilhões em hipotecas residenciais e em certificados de recebíveis imobiliários (mortage-backed securities) – cerca de metade do total nacional. Para financiar suas operações, elas se incluíam entre os maiores emissores de dívida do mundo: um total de mais ou menos US$ 1,7 trilhão. Atuavam no mercado incessantemente, levantando, às vezes, empréstimos de valor superior a US$ 20 bilhões por semana” (idem. p. 3). No entanto, “nenhuma das duas concedia financiamentos diretos aos compradores. Basicamente, vendiam seguro, garantindo o pagamento pontual das hipotecas, que eram enfardadas e fatiadas em títulos, distribuídos por bancos entre os investidores” (idem. p. 50).
A descrição não poderia ser mais fiel, nem mais simples. No epicentro da crise, tínhamos duas empresas estatais que nada vendiam além de apólices de hipotecas oferecidas em fatias a uma multidão de clientes. Quase todas as apólices da Fannie e da Freddie envolviam operações complexas lastreadas em hipotecas (mortage-backed securities). Em última análise, esses títulos tinham sido produzidos por decisão do Estado e estavam sob controle dele quando a crise foi deflagrada.
E os membros da classe média que contraíram as dívidas com a Fannie Mae e a Freddie Mac: quem eram? Na época, só o Departamento do Tesouro norteamericano empregava 110 mil servidores públicos (idem. p. 43). Imaginem todos os outros departamentos da União, dos Estados e dos municípios juntos. Na verdade, boa parte da classe média americana estava empregada e havia sido (relativamente) empobrecida pelo próprio Estado.
Se olharmos um gráfico da crise e da recuperação que se seguiu, veremos que tem a forma de um V, com os lados formando ângulos agudos com o eixo vertical. Isso confirma que tanto a paralisação como a recuperação que se seguiu foram bastante abruptas. Quem foi o principal responsável pela recuperação? De novo o Estado. A rapidez e a perícia da intervenção que minimizou os efeitos da crise tornaram o Estado digno dos maiores louvores. Mas algum ser macabro ri-se de nós, todas as vezes em que supomos que as instituições públicas (ou privadas) criadas pelo homem estão investidas de poderes sobrenaturais: na verdade, a rapidez e a eficiência com que a crise foi superada impediram que as desigualdades fossem reduzidas, do modo como se deu após a Grande Depressão. De fato, os dados do livro de Piketty mostram que a desigualdade voltou a crescer, depois de 2008, e não foi por falta de um choque financeiro em tudo semelhante ao que estimulou o forte recuo da desigualdade no século passado.
Essa é a história completa. O Estado é um capital que procura a rentabilidade assim como os capitais particulares. Para direcionar o seu capital aos fins que elege, o Estado emprega um corpo de funcionários de classe média e uma casta privilegiada de superfuncionários, dentre os quais os membros do Legislativo não são os menos conspícuos. Às vezes, ele remunera de maneira justa os seus funcionários, outras vezes não. Porém, sempre, ao desenvolver a sua atuação, o Estado alcança grandes realizações, ao mesmo tempo em que causa problemas. Causa, aliás, problemas tão grandes que só ele mesmo é capaz de resolvê-los e eles têm de ser resolvidos com a rapidez do relâmpago para que não devastem a sociedade. Infelizmente, a presteza da resolução não permite que os efeitos colaterais dos problemas, que seriam benéficos no longo prazo, sejam sentidos. E, para culminar, o Poder Público se torna anêmico por ter de desempenhar, ao mesmo tempo, os trabalhos de Hércules do Estado-polícia, do Estado de bem-estar e do Estado garante do subprime!
Enfim, os desvalores seguem a nos assediar, mas a justiça engendrada pelas instituições ainda se impõe a eles. Acreditem-me quando recordo que os maiores especialistas dentre os 110 mil funcionários do Tesouro americano se reuniram e analisaram por completo a crise, quando ela eclodiu, em 2008. Chegaram à conclusão de que US$ 1,3 trilhão em hipotecas eram subprime e, na pior das hipóteses, US$ 300 bilhões não seriam pagos ao longo dos anos. De modo que as casas seriam vendidas, e o prejuízo final seria reduzido a um número ainda inferior. Ben Bernanke estimou que esse número ficaria entre US$ 50 bilhões e US$ 100 bilhões. Declarou-o ao próprio Congresso, que se tranquilizou por um dia. Logo depois, a inadimplência das hipotecas explodiu. Parecia o fim, mas veio outro improvável, e a crise passou como um sopro. Por que passou? Terá sido porque a sociedade não tem suas defesas ou porque as tem e, se tivéssemos de designá-las por uma palavra, haveríamos de escrever em maiúsculas: JUSTIÇA?