sábado, 6 de dezembro de 2014

Filosofia e Direito (27): Igualdade Induzida pela Produção

Questionaram-me certa vez por que não fundamentei a tese de A função social do lucro em dados históricos aptos a comprovar a ascensão econômica do proletariado. A verdade é que, quando o livro foi escrito, esses dados não existiam. O desafio posto aos estudiosos da desigualdade era suprir a falta deles, isto é, comprovar por outros meios se a condição do proletariado melhorara ou não.
Em O capital no século XXI, Thomas Piketty confirmou que “nenhum trabalho empírico de peso sobre a dinâmica da desigualdade foi realizado desde a época de Kuznets” (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 38), que “constatou que uma forte redução da desigualdade de renda havia ocorrido nos Estados Unidos entre 1913 e 1948” (idem. p.20). Assim, o trabalho de Kuznets sobre os Estados Unidos permaneceu a única fonte de informações detalhadas sobre a desigualdade. Não há dúvida de que as conclusões dele favoreceram a formação da consciência hoje relativamente disseminada entre os economistas de que o desenvolvimento do capitalismo, a partir de certo ponto, favorece a redução da desigualdade econômica. 
Piketty esclarece quando essa lacuna oriunda da fundação da ciência econômica foi suprida, por ele e seus colaboradores, mediante a compilação de dados confiáveis sobre a desigualdade em diversos países: “Comecei meu estudo da questão pela aplicação dos métodos de Kuznets ao caso da França, o que originou a publicação de uma primeira obra em 2001. Depois, obtive o apoio de vários colegas – sobretudo de Anthony Atkinson e Emmanuel Saez – que me permitiram ampliar o projeto e alcançar uma escala internacional bastante vasta. Anthony Atkinson tratou do caso do Reino Unido e de muitos outros países, e organizamos juntos dois volumes publicados em 2007 e 2010 reunindo estudos semelhantes para mais de vinte países de todos os continentes. Com Emmanuel Saez, alongamos em meio século as séries de Kuznets para os Estados Unidos. Saez usou o método para estudar diversos países fundamentais, como o Canadá e o Japão. Vários pesquisadores contribuíram para a realização desse projeto coletivo: Facundo Alvaredo, em especial, analisou os casos da Argentina, da Espanha e de Portugal; Fabien Dell, os da Alemanha e da Suíça; com Abhijit Banerjee, estudei o caso da Índia; graças a Nancy Qian, pude tratar da China e assim por diante” (idem. p. 24).
Contudo, embora dados abrangentes não tivessem sido publicados até por volta de 2007, as condições de ordem geral do capitalismo tinham sido descritas desde muito antes, numa literatura extremamente ampla e sofisticada, o que resultou numa situação ambígua: por um lado, dispúnhamos da literatura sobre a evolução das classes, no interior do capitalismo; por outro lado, não possuíamos números e outros dados que nos permitissem avaliar, de modo preciso, em que escala as conclusões daquela literatura eram verdadeiras.
Piketty supriu a lacuna com a publicação dos resultados das pesquisas que conduziu com outros pesquisadores, os quais foram compactados e interpretados em O capital no século XXI. Porém, ao fazê-lo, nem sempre, a interpretação apresentada por ele é muito convincente. Sua interpretação básica da queda geral da desigualdade, entre 1810 e 2010, consiste em atribuí-la aos choques das Guerras Mundiais e às políticas públicas que se seguiram. Um dos problemas dessa interpretação consiste em não especificar os mecanismos específicos pelos quais os fatos políticos citados (os choques e as políticas) repercutiram na seara econômica. Raras vezes, Piketty menciona esses mecanismos, de sorte que a sua interpretação termina por assumir caráter genérico e, por isso mesmo, menos convincente do que seria se os mecanismos tivessem sido citados.
Ao escrever A função social do lucro, não dispunha, é claro, dos dados coligidos por Piketty e seus colaboradores. Por isso, procurei suprir a lacuna deles por um método que facultasse avaliar em que grau a classe trabalhadora tinha sido beneficiada pelo desenvolvimento do capitalismo industrial. Demonstrei que, dadas três condições (aumento da composição orgânica do capital, descolamento dos salários em relação ao mínimo e fim do neocolonialismo), a situação da classe trabalhadora tendia a melhorar, e a desigualdade, a decrescer. Todas as três condições ocorreram, entre 1870 e 1950. Resta demonstrar como elas podem ser reunidas numa estrutura lógica, de modo a fornecer um mecanismo econômico claro capaz de explicar a ascensão econômica do proletariado.
Para isso, é fundamental partir da premissa de que a produção capitalista só se desenvolve se for capaz de manter-se em equilíbrio com o consumo e que “três são as causas fundamentais dos desequilíbrios entre a produção e o consumo no modo de produção capitalista: o desvio da composição orgânica do capital, [a quantidade relativa de meios de produção e bens de consumo] e o lucro” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. A função social do lucro – e a sociedade pós-capitalista. São Paulo; Themis, 2008. p. 352). Outras causas existem, mas não operam num nível tão básico quanto estas.
Por meios de produção entendemos todos os bens utilizados para produzir, assim como matéria-prima, energia, equipamentos e os imóveis em que as empresas estão instaladas. Os gastos com meios de produção são chamados capital constante. Os gastos com salários chamam-se capital variável. Composição orgânica é a razão entre o capital constante e o variável.
Em O capital, Marx representou a produção de um país dividida num setor de meios de produção, que chamou Departamento I, e outro de bens de consumo (Departamento II). Para entendermos como as três causas de desequilíbrio atuam, a melhor maneira é representar cada uma isoladamente num diagrama que inclua a produção dos dois setores. Se os departamentos usarem as mesmas quantidades de capital constante e variável, alcançarem o mesmo faturamento e não cobrarem mais-valia, a economia será mantida em equilíbrio, porém não crescerá, como os diagramas a seguir demonstram.

D1: Composição orgânica = 1, Produção de meios de produção = Produção de bens de consumo, Lucro = 0 (Primeiro Período)

Capital constante
Capital variável
Total
Departamento I
1
1
2
Departamento II
1
1
2
Total
2
2
4

D2: Composição orgânica = 1, Produção de meios de produção = Produção de bens de consumo, Lucro = 0 (Segundo Período)

Capital constante
Capital variável
Total
Departamento I
1
1
2
Departamento II
1
1
2
Total
2
2
4

Nesses diagramas, a produção do Departamento I é inteiramente absorvida pela demanda de capital constante, e a do Departamento II, pela demanda de capital variável. A igualdade dos capitais constante e variável, da produção dos dois departamentos e a inexistência de lucro completam as condições para que a economia permaneça em perfeito equilíbrio. Em outras palavras, para o desequilíbrio ser introduzido, é necessário admitir a alteração do valor de uma dessas variáveis: seja da composição orgânica, seja da relação entre os meios de produção e os bens de consumo, seja do lucro. Vejamos o que sucede se cada uma das variáveis escapar da situação de equilíbrio.

D3: Composição orgânica maior que 1 (Primeiro Período)

Capital constante
Capital variável
Total
Departamento I
2
1
3
Departamento II
2
1
3
Total
4
2
6

D4: Composição orgânica maior que 1 (Segundo Período)

Capital constante
Capital variável
Total
Departamento I
3
1,5
4,5
Departamento II
1
0,5
1,5
Total
4
2
6

Se a composição orgânica se tornar maior do que um, ainda que a produção de bens de consumo
permaneça igual à de meios de produção e não haja cobrança de lucro, é gerado um desequilíbrio
entre a produção e o consumo. No Diagrama D3, as 3 unidades de meios de produção do
Departamento I não são suficientes para atender a demanda de 4 unidades de capital constante. Por
outro lado, as 3 unidades de bens de consumo produzidas pelo Departamento II são mais que suficientes para fornecer as 2 unidades consumidas com o capital variável. Claro que, se o
desequilíbrio se repetir indefinidamente, o sistema não terá condições de se reproduzir.
Para corrigir o desencontro, dois tipos de medidas são possíveis. O primeiro, bastante óbvio, é a intervenção na própria causa de desequilíbrio. Se o que fez a produção divergir do consumo foi o aumento da composição orgânica, basta diminuí-la para o equilíbrio ser restaurado. Porém, na prática, se o aumento da composição orgânica for estrutural, como durante a Revolução Industrial, essa primeira solução não funcionará a contento.
Uma solução alternativa é aumentar a quantidade de meios de produção gerados pelo Departamento I. Embora esse aumento seja, ele próprio, uma causa de desequilíbrio, as tabelas mostram que as causas se anulam reciprocamente. Por isso, no Diagrama 4, as 4,5 unidades do Departamento I são consumidas pelo capital constante e repõem em parte a falta de 1 unidade do período anterior. Por sua vez, a unidade e meia do Departamento II e a unidade que sobrara no período anterior são absorvidas com o capital variável. Assim, o desequilíbrio é consideravelmente reduzido.
A ideia de que cada causa é isoladamente nociva, mas pode ser anulada por outro fator de desequilíbrio é confirmada pela introdução do lucro nos diagramas. Como a composição orgânica e as quantidades relativas de meios de produção e bens de consumo, o lucro é, em si, uma causa de desequilíbrio, porém os desarranjos da composição orgânica podem ser anulados por ele, e os do lucro, pela composição orgânica. É o que vemos nos diagramas seguintes.
           
D5: Composição orgânica maior que 1 (Primeiro Período)

Capital constante
Capital variável
Lucro
Produção
Departamento I
2
1
0
3
Departamento II
2
1
0
3
Total
4
2
0
6

D6(1): Composição orgânica maior que 1 (Segundo Período)

Capital constante
Capital variável
Lucro
Produção
Departamento I
2
1
1
4
Departamento II
1,5
1,5
1
4
Total
3,5
2,5
2
8

D6(2): Composição orgânica maior que 1 (Segundo Período)

Capital constante
Capital variável
Lucro
Produção
Departamento I
2
1
1
4
Departamento II
1
1
2
4
Total
3
2
3
8

Por amor à brevidade, deixarei de mostrar que a mesma espécie de evolução ocorre quando as outras causas alteram o equilíbrio entre a produção e o consumo. Como acontece no caso dos diagramas D5 e D6(2), quando o desequilíbrio é induzido pela quantidade relativa de meios de produção e bens de consumo ou pelo aumento do lucro, o sistema pode ser restaurado pelo cancelamento recíproco das causas de desequilíbrio. Assim, não importa que causa se manifeste. Todas podem ser controladas pela alteração moderada das outras causas, de modo a restaurar o equilíbrio.
 A peculiaridade do desequilíbrio decorrente do incremento da composição orgânica consiste em representar a situação introduzida pela Revolução Industrial. Marx e outros economistas mostraram que a utilização crescente de máquinas e equipamentos, a partir daquela revolução, conduziu ao aumento da composição orgânica. Esse é o desequilíbrio a ser estudado para entendermos aonde a Revolução Industrial conduz as sociedades, pela interação com as outras variáveis fundamentais. Sob o ângulo dessas variáveis, se o aumento da composição do capital não pode ser sanado permanentemente pelo lucro, a única alternativa possível é incrementar os investimentos em capital variável, já que, no nível fundamental da produção capitalista, não há uma quarta causa que possa ser invocada para resolver o problema do desequilíbrio.
Assim, é possível indicar em que escala o aumento dos salários observado no século XX opera. Se as outras variáveis permanecerem constantes, o aumento da composição orgânica produz desequilíbrios crescentes entre a produção e o consumo que só podem ser freados, no longo prazo, por um forte aumento proporcional do capital variável. Nunca afirmei que esse efeito não possa deixar de ocorrer, mas que as condições que o induzem são excessivamente fundamentais para serem retiradas. Consistem no aumento da composição orgânica, que a Revolução Industrial introduziu, na manutenção do lucro no nível mais alto possível sem prejudicar o funcionamento do sistema e na preservação das condições naturais para que a sociedade continue a existir. Como os efeitos dessas condições estavam presentes na primeira metade do século XX, não há por que não explicar a produção da época por meio deles e concluir que ela forçou o aumento da participação dos salários na produção e na renda.
Claro que outras variáveis alteraram o desempenho da economia, além das três mencionadas. Porém, o fato de elas operarem em níveis menos fundamentais implica que coexistiram com as alterações retratadas nos diagramas. E, ao coexistirem, as variáveis secundárias permaneceram sujeitas à composição orgânica, às quantidades relativas de meios de produção e bens de consumo e ao lucro, que são os elementos fundamentais do sistema. Assim, a pressão para o aumento dos salários continuou a exercer-se, em maior ou menor medida, apesar de todas as oscilações ocorridas.
Dentre as três variáveis fundamentais, o aumento da composição orgânica foi a que forçou o crescimento relativo do capital variável, no século XX. Por isso, para que esse crescimento fosse significativo, foi preciso que a composição orgânica se mantivesse elevada por longo tempo, o que a estrutura advinda da Revolução Industrial garantiu. 
Porém, uma vez revertida a situação e eliminado o excesso de capital constante, os salários se tornaram mais estáveis, e o rendimento do capital voltou a crescer em termos reais. Essa parece ser a situação aproximada em que nos encontramos hoje, com exceção dos salários do centésimo superior da classe trabalhadora, que subiram de modo exorbitante. Nada impede que o aumento dos investimentos em meios de produção, sob a forma de patentes e royalties, entre outros, torne a introduzir, no futuro, uma situação semelhante à que forçou o crescimento do capital variável, no século XX, já que causas opostas tendem a gerar oscilações. Porém, no todo, a tendência mais forte é de a pressão relacionada ao aumento da composição orgânica exercer-se com maior intensidade. 
A principal característica dos diagramas é reduzir o sistema capitalista à sua simplicidade entendida como as relações determinadas pelas três variáveis fundamentais. Essas relações foram representadas pelos números mais baixos possíveis (0,1,2 etc.), a fim de tornar a simplicidade ainda mais evidente. E é exatamente o caráter fundamental da descrição assim alcançada que confere força explicativa ao conjunto das três variáveis, que nos falam do que o sistema capitalista realiza necessariamente, sob pena de deixar de ser. É, no minimo, curioso que as informações do livro de Piketty sejam, em grande parte, compatíveis com o funcionamento da economia indicado pelas três variáveis.