Não é incomum o avanço
da ciência conduzir à descoberta de respostas a antigas indagações e, ao mesmo
tempo, fazer surgirem perguntas novas. Essa é, aliás,
a situação mais comum. No caso das
disciplinas dedicadas ao estudo da sociedade, não há dúvida de que a
abundância de informações publicadas, há alguns anos, por Piketty e seus colaboradores, e a interpretação delas em O capital no século XXI respondem questões nascidas com a própria teoria econômica. Porém, como é usual, as respostas encontradas
fizeram surgir novas perguntas.
Para mim, as indagações principais que
o livro de Piketty suscita dizem respeito à opção interpretativa do seu autor. Apesar
de defender a preservação do capitalismo, Piketty alinha-se
com os economistas que podemos classificar como pertencentes à esquerda moderada. Talvez a
principal bandeira desses economistas seja a importância das políticas públicas
para a redução da desigualdade e a condução da economia. Como defensor das políticas do Estado, Piketty procura
mostrar que elas foram responsáveis pela redução da desigualdade alcançada, em
diversos países, na primeira metade do século passado. Algo inteiramente válido
e justificável, dada a necessidade de avanços no tratamento da questão da
desigualdade.
Porém, Piketty restringe a sua
explicação às causas políticas. Essa é, a meu ver, a
principal limitação da sua obra. Podemos afirmar que, no tocante à interpretação dos dados, Piketty labora num nível explicativo genérico, quando o correto seria descer ao nível específico. Claro que um pesquisador da sua envergadura, ao
optar pelas causas políticas, não nega que elas acionem mecanismos econômicos específicos que desencadeiam
a redução da desigualdade. O problema é que Piketty quase nunca especifica quais são esses mecanismos e não admite que a queda
da desigualdade possa ser condicionada, de modo independente, por fatores econômicos.
Nos textos anteriores, afirmei que as causas pelas quais Piketty explica a redução das
desigualdades são, principalmente, os choques decorrentes das Guerras Mundiais e a tributação estatal. Trata-se de saber se essas causas explicam suficientemente a redução indicada pelos dados. Vejamos se é esse o caso.
Nas páginas 118 e 119 do seu livro,
Piketty apresenta dois gráficos do capital, no Reino Unido e na França, entre
1700 e 2010. Em ambos, observamos curvas muito semelhantes que nos informam que, de 1700 a 1910, o estoque de capital manteve-se
em torno de 7 anos da renda nacional, nos dois países (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 1914. pp. 118-119). Porém, de 1910 a 1920, o estoque despencou
de 7 para 2 anos da renda, no Reino Unido, e de 7 para 3, na França.
Esses dados provam que a participação do capital na riqueza só diminuiu, propriamente, no século XX. No entanto, se olharmos atentamente para
os gráficos, perceberemos que o capital só se manteve estável, na segunda metade do
século XIX, devido ao retorno dos investimentos externos do Reino Unido e da
França. Se nos restringirmos ao capital interno, teremos de reconhecer que ele diminuiu a partir de 1850, no Reino Unido, e de 1810, na
França.
Essa perda de capital interno delineada no século XIX continuou a ocorrer no século seguinte. É verdade que causas inteiramente novas, como o desmanche do sistema colonial, as Guerras Mundiais e a Grande Depressão, a intensificaram, porém não podemos, de modo algum, desconsiderar que as causas que a produziram, no século XIX, continuaram a atuar mais tarde. Se admitirmos que a produção das potências europeias estava quase inteiramente sediada nas metrópoles, teremos
de concluir que as causas de redução do capital, no século XIX, foram de grande alcance e contribuíram para o declínio da desigualdade observado mais tarde.
A tese de Rosa Luxemburgo de que,
por longo tempo, a reprodução do capital das metrópoles só foi viabilizada devido à existência do sistema
colonial é confirmada por esses dados. De fato, sem as trocas com o
exterior (principalmente com as colônias), Reino Unido e França teriam sofrido uma queda
significativa da participação do capital na riqueza nacional, o que teria desencadeado uma forte redução da desigualdade, já no século XIX
É, pois, perfeitamente possível
concluir que parte das forças que produziram a redução da desigualdade,
no século XX, já operava no XIX. Se
desconsiderarmos a contribuição das colônias, teremos de concluir que a atuação dessas forças produziu uma diminuição de cerca de 25% no capital do Reino Unido e da França, na segunda metade do século XIX.
Falamos de um período posterior às
guerras napoleônicas e anterior à 1ª Guerra Mundial, portanto de um lapso
temporal em que o Reino Unido não sofreu destruição significativa por guerras. A tributação no século XIX era ínfima demais para explicar a diminuição do capital interno. E, embora tenha sido derrotada na Guerra contra a Prússia, em 1870-1871, a própria França não estava em situação diferente da do Reino
Unido. Portanto, a conclusão sobre as causas da diminuição do capital naquele país aplica-se também a ela.
Diante de tantas e tais evidências,
não há como negar que as causas de redução da desigualdade já estavam ativas, muito antes dos choques das Guerras Mundiais e das políticas intervencionistas enfatizados por Piketty. Se concluirmos que elas se somaram às causas posteriores, de natureza política, com as quais produziram a diminuição
espantosa da desigualdade observada em meados do século XX, estaremos diante de
dois conjuntos de causas e não de um só, como Piketty pretende. E, se o segundo
conjunto teve relação mais próxima com as guerras e as políticas públicas, o
outro decorreu, basicamente, da evolução do sistema capitalista.
Essas considerações esclarecem por que é indispensável indagar
quais foram os mecanismos pelos quais os choques de 1914-1945 induziram a queda da
desigualdade. Sem os mecanismos, a explicação pelas causas políticas permanece genérica e vaga. A especificação, ao contrário, permite entender que os choques influíram na desigualdade, principalmente, pela destruição do capital. Esse foi o mecanismo pelo qual as guerras, além de terem reduzido o estoque de capital, fizeram declinar a sua
rentabilidade. E não podemos deixar de observar que a destruição pelas guerras se somou à causada pela
Grande Depressão, que reduziu ainda mais o capital privado, nos anos 1930.
Mas, se o mecanismo principal de redução da desigualdade, entre 1914 e 1945, foi a destruição, o Reino Unido não deveria ter sido vitimado por ele, na mesma escala da França e da Alemanha, já que,
principalmente na 1ª Guerra, o território (e, portanto, o capital) inglês
não foi tão destruído quanto o das nações continentais, pelo motivo simples de
que os países que o formavam ficavam num arquipélago e nunca foram invadidos. Mesmo assim, o capital
interno do Reino Unido mergulhou de 5 para 2 anos da renda nacional, entre 1910
e 1920 (idem. p. 118)!
No mesmo período, o capital interno
da Alemanha reduziu-se de 6 para 4 anos (idem. p. 143), e o da França, de 5,5
para 3 anos da renda nacional (idem. p. 119). Em suma, a redução foi maior, no
país menos destruído (o Reino Unido), do que nos mais devastados pela guerra de
1914 a 1918, o que confirma, além de toda dúvida razoável, que lidamos com dois
conjuntos de causas de compressão das desigualdades: um relacionado aos
conflitos e outro, à economia.
Essa conclusão se impõe tanto mais
quanto consideramos que: a tributação média, no período analisado, era de 10% do
PIB, quase não havia impostos sobre o capital, a intervenção do Estado na
economia era bastante baixa, e a Grande Depressão ainda não somara a destruição
do capital por motivos econômicos à dissipação causada pela guerra. Esses fatos
ajudam a perceber que nenhuma causa comparável às do
século XX contribuiu para a redução do capital entre 1810 e 1910. Portanto, ela deve ter sido determinada por forças internas à economia.
E nos Estados Unidos? Também ali, o
capital reduziu-se de 5 para 4 anos da renda nacional, de 1910 a 1920 (idem. p.
150). Podemos, pois, afirmar que o fenômeno europeu reproduziu-se do lado de cá do Atlântico, sem que as causas atuantes na Europa estivessem presentes. Em outras palavras, operando praticamente sozinhas, as causas econômicas conduziram a uma redução significativa do capital, nos Estados Unidos. E a redução só não foi maior, porque os EUA eram menos
desiguais que a Europa, no período avaliado.
Simplesmente não é crível que o
capital interno de países que não sofreram destruição pela guerra, como o Reino
Unido e os Estados Unidos, tenha-se reduzido tanto ou mais que o da
Alemanha ou da França, durante a 1ª Guerra. Portanto, a insistência de Piketty na
explicação por causas políticas só é possível pelo deslocamento da explicação do nível específico para o genérico, ou seja, pela não explicitação dos
mecanismos mediante os quais o conflito de 1914-1918 induziu a redução da
desigualdade. Quando a explicitação é feita, torna-se claro que as causas políticas não esclarecem suficientemente o ocorrido.
É preciso, pois, indagar que outras causas estiveram por trás da redução que devemos explicar. A resposta só pode ser causas
inerentes ao subsistema econômico da sociedade. Porém, precisamos especificar os mecanismos pelos quais essas causas atuaram, sob pena de incidirmos no mesmo deslocamento de nível em que as explicações políticas incorrem.
Explicar algo tão abrangente quanto a desigualdade econômica envolve descer do genérico ao específico e do
processo global aos mecanismos que lhe dão suporte.
Em A função social do lucro, descrevi o mecanismo econômico que deve ter
pressionado, mais intensamente, a desigualdade, a partir das condições
da Revolução Industrial. Mostrei que esse mecanismo deve ter sido o crescimento da
composição orgânica do capital, ou seja, o aumento da razão entre o capital
constante e o variável. Se, ao lado de causas políticas, tivermos de mencionar
outras que contribuíram para a queda da desigualdade, no século XX, a mais fundamental terá sido essa.Em síntese, ao ler Piketty, não me convenço de que a redução da desigualdade, no século XX, flua de um único subsistema social, ou seja, do subsistema político. O exclusivismo da explicação pela política tem a força restritiva inerente a todas as formas de reducionismo. A queda da desigualdade não precisa estar atrelada ao subsistema político para explicar-se. Pelo contrário, o peso das causas econômicas parece sobrepujar o das causas políticas dela. O problema é que a assimilação desse fato pelas pessoas, na Universidade inclusive, não é tanto uma questão shakespeareana de ser ou não ser quanto uma questão bíblica de ter ou não ter olhos para ver!