domingo, 14 de dezembro de 2014

Filosofia e Direito (34): O Direito Natural

A justiça é um valor multidimensional. Existe a justiça religiosa, que inspira as pessoas a enfrentar as dificuldades do seu dia a dia, a justiça como valor pessoal, que cada ser humano professa distintamente, e a justiça que tem por papel agregar os homens. A forma superior da justiça gregária é a que denominamos justiça social. Tenho-me ocupado dela, nos textos desta série.
Do ponto de vista do monge que se refugia na sua cela, a comunhão com Deus e o repouso da alma constituem o fundamento da justiça. Para Antígona, o decreto que negou sepultura ao seu irmão era injusto por afrontar valores religiosos. Mas, para o juiz que sentencia nos autos hoje ou para Creonte, que decidiu contra Antígona, o decreto que criam também realiza a justiça. Assim, embora opostos, os atos do monge, de Antígona e do magistrado buscam todos realizar a justiça e a tomam por fundamento.
Por abrir-se em formas tão díspares, seria a justiça um valor contraditório? Seria ela o nada, já que as concepções do monge, de Antígona e do juiz se cancelam reciprocamente? Se um dos três está certo, os outros têm necessariamente de estar equivocados? Perguntas como essas recordam o mistério da justiça, vale dizer, o fato de as pessoas a buscarem com tanta intensidade, nas mais diversas épocas, e discordarem tão imensamente a respeito dela, 
Se admitirmos que concepções tão distintas de justiça coexistem em harmonia ou, ao menos, sem se excluírem, será preciso encontrar um conjunto de ideias e de palavras (portanto, um vocabulário) que nos permita exprimir os pontos de contato entre elas. Esse conjunto de ideias e o respectivo vocabulário pertencem ao que podemos denominar metajustiça. Historicamente, a teoria que se ocupa da metajustiça é o direito natural.
Ao longo dos séculos, o direito natural foi, às vezes, concebido de maneira dogmática e até intolerante. Porém, isso não impede que ele constitua o estudo da mais vasta concepção de justiça possível, que se forma a partir dos pontos de contato entre concepções mais restritas. Como o materialismo e a metafísica constituem as metavisões de mundo mais importantes da História da Filosofia, o direito natural e o positivismo jurídico são as metavisões mais encontradiças na História do Direito. E, assim como as metavisões de mundo nunca se excluem completamente, as metavisões jurídicas podem ser, em alguma medida, adotadas como complementares.
Para isso, porém, é preciso explicar em que sentido o direito natural pode ser aceito, já que a admissão do direito positivo decorre, de modo manifesto, da sua existência observada e da autonomia das normas jurídicas em relação à moral e à religião. É possível agrupar as concepções do direito natural surgidas na História em dois campos: de um lado, ficam as doutrinas que afirmam a validade universal daquele direito; de outro, as que reconhecem caráter histórico e validade limitada às suas normas. Em Filosofia do direito positivo, afirmei a importância superior da primeira modalidade de direito natural:
“Tudo que se agrega ao direito o faz a partir do núcleo fundamental deste [...] Tal núcleo, sua origem, seus princípios de subsistência e sua influência sobre o conteúdo do fenômeno jurídico são o ponto desde o qual se há de estruturar uma visão filosófica do direito” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993. p. 259).
Essa particular visão jurídica aliava o jusnaturalismo cristão que eu abraçara à descoberta reivindicada por Miguel Reale “da natureza dialética ou dinâmica de elementos [da experiência jurídica] até então analisados abstraídos um do outro” (REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 4ª ed., São Paulo: Saraiva. P. 98). Os elementos a que Reale se refere são o fato, o valor e a norma. Ele demonstra que a norma não pode ser tomada, como faz Kelsen, “como um dado inicial, recebido pelo jurista como ponto inamovível de partida” (idem. p. 97). Para Reale, “o momento nomogenético [a criação da norma] não pode ser considerado metajurídico, por mais que se insira no campo de pesquisa do sociólogo [...] É da nomogênese, em suma, que resulta o conceito da norma, não podendo ser posta entre parênteses a tensão fático-axiológica da qual e na qual ela emerge” (idem. pp. 97, 70).
Para fundamentar minha adesão ao direito natural universal, recorri ainda ao ensino de Goffredo Telles Júnior, que, “em sua Ética, menciona seis valores fundamentais candidatos à dignidade de universais: liberdade, justiça, bondade, verdade, beleza e poder” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 267). Com base nas lições desses juristas, que me pareciam fundamentais, escorei meu conceito de direito natural num conjunto de sete valores selecionados em função do significado prático que assumem. Eram esses valores: a vida, a intangibilidade física e moral, a liberdade, a verdade, a propriedade, o casamento e o dever familiar. Para mim, o caráter prático desses valores decorria de “a moral natural ser uma moral do respeito e uma moral mínima” (idem. p. 270), o que significava que eles deviam receber, ao menos, uma proteção limitada.
A orientação dos sete valores à práxis explica a divergência do rol que propugnei em relação ao que Goffredo propôs na sua Ética. É que, na época, o rol de Goffredo pareceu-me idealizado. Eu queria encontrar um fundamento para o direito universal que não estivesse localizado nas nuvens e sim na terra. Não me parecia que o consenso dos povos pudesse levá-los a afirmar valores cuja soma fosse adequada a um deus, não a um homem. Valores humanos universais, como os concebi à época, haviam de ser valores mínimos, não máximos, nem idealizados.
Entendido dessa maneira, o direito universal não se ajusta à concepção de Kant de que o conteúdo moral de um ato se define pela sua orientação ao bem como fim em si mesmo e não como meio para alcançar resultado prático. Se o direito universal deve ser definido como o que todas as pessoas respeitam, é difícil admitir que elas se tenham elevado, sempre e invariavelmente, a noções idealizadas do bem. 
Por outro lado, em meu livro de 1993, concluí que, do ponto de vista lógico-formal, o respeito àqueles sete valores deve ser formulado como uma inclinação a priori da razão: “Só nas inclinações gerais, compostas por grupos de formas a priori da razão [prática], se encontra a generalidade e gradação mínima dos juízos da moral natural”, do que “se conclui que a moral natural está latente na razão pura” (idem. p. 276).
Na época, não explicitei como a razão concebe as normas da moral natural. Tentarei fazê-lo agora, a partir da lição de Joseph LeDoux, do Centro de Ciência Neural da Universidade de Nova York, sobre o processamento das emoções. Em O cérebro emocional, LeDoux colocou as emoções em oposição ao conhecimento, uma vez que “os sistemas [nervosos] envolvidos no processamento cognitivo [...] não estão diretamente vinculados com os sistemas de controle de reações. A marca do processamento cognitivo é a flexibilidade de respostas cuja origem é o processamento. A cognição nos dá a possibilidade de escolha”. As emoções, porém, são diferentes: “Os sistemas responsáveis pelas avaliações emocionais mantêm uma relação direta com os sistemas encarregados do controle das reações emocionais. Uma vez que esses sistemas realizam uma avaliação, as reações ocorrem automaticamente” (LEDOUX, Joseph. O cérebro emocional – os misteriosos alicerces da vida emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 63).
Embora não conhecesse essa lição científica, o homem antigo percebia a relação entre as normas sociais e as emoções básicas da espécie humana. Ele percebia que, embora criadas pelo intelecto humano, as normas nunca se opõem às emoções básicas. Pelo contrário, as emoções constituem um dado ao qual as normas sempre se moldam. Por isso, quando o pensamento jurídico se tornou mais sofisticado, entre os gregos e os romanos, os jurisconsultos passaram a exprimir a consciência daquela moldagem mediante a noção de direito natural:
“Direito natural é o que a natureza ensinou a todos os animais. Este direito não é peculiar ao gênero humano, mas comum a todos os animais que nascem no céu, na terra e no mar. Dele resulta a união do macho e da fêmea, a que chamamos matrimônio, a criação dos filhos, e a sua educação. Vemos, em verdade, que também os outros animais usam desse direito, como se o conhecessem” (JUSTINIANO, Flávio Pedro. Institutas. São Paulo: RT, 2000. Título II, p. 23). Como o homem molda suas normas na fornalha das emoções, os animais fazem coisa análoga. Por isso, para os romanos, o direito natural se fundava na natureza física do homem e do animal.
Exagerada ou não, essa lição reflete a consciência da moldagem de todo direito nas emoções básicas da espécie. Se formos além dela e da concepção filosófica (estoica) que a inspirou, concluiremos que a moldagem do direito nas emoções é tributária da noção de dever. Todas as categorias jurídicas e todas as normas que concebemos dependem logicamente dessa noção, que se funda na conformidade do pensamento normativo com as emoções básicas. 
Muitos juristas contemporâneos têm rejeitado essa espécie de derivação do dever a partir do ser, por implicar o que consideram manifesto equívoco. De fato, o ser é, ao passo que as normas enunciam o que deve ser. A diferença estrutural entre os enunciados das duas esferas impede a derivação de proposições do dever a partir do ser e vice-versa, como vimos anteriormente nesta série.
De fato, tornou-se comum os adversários do direito natural referirem-se à "falácia naturalista" como o procedimento consistente em "extrair da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que implica num juízo de valor)" (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico - lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 177). Porém, se considerarmos que a recta ratio não o situa o direito natural no plano da natureza, mas no da razão, que tem o hábito de extrair normas da observação do que acontece, teremos de concluir que a falácia se aplica tanto ao jusnaturalismo quanto ao positivismo ou a nenhum dos dois. Ou será as normas mais básicas do ordenamento jurídico não são postas e concebidas a partir da observação do que ocorre?  
A objeção de falácia perde relevância, na medida em que percebemos que a passagem do ser ao dever é inescapável para o homem. O Direito e a Ética não podem existir, sem tal passagem, já que, ao voltar-se para o comportamento do homem em sociedade, a consciência percebe que ele se ajusta às emoções básicas da espécie. Assim acontece porque as normas que regem o comportamento se ajustam às emoções, ou seja, porque o ser se ajusta ao dever
Em suma, se a ideia de direito universal há de ser explicada em termos lógico-formais, a melhor maneira de fundamentá-la é derivar as normas da noção de dever e essa noção, da moldagem das emoções básicas. Claro que isso não tornará o certo e o errado tão simples e inequívocos quanto as emoções. No âmbito da cultura humana, o certo e o errado complicam-se por sofrerem influência não só dos instintos, mas também dos valores, cujo estatuto é abstrato e por isso complexo. Porém, um limite é posto à abstração e à complexidade dos valores por parte das instituições. 
Tudo indica que esse limite à abstração dos valores é posto no momento em que as instituições sociais os realizam (de modo parcial) no plano da práxis. Embora a medida e o sentido da realização dos valores permaneçam incertos, eles o são muito menos, pois conhecemos o funcionamento real das instituições, do qual podemos extrair como elas afirmam os valores pelos quais se orientam.
É em função desses valores e do valor da justiça que exsurge da afirmação simultânea deles que a noção de direito natural se forma. Direito natural não é ou, ao menos, não precisa ser um direito não histórico. Não precisa ser aquele dado axiológico imaginário ao qual a norma é moldada. Pode ser um dado axiológico concreto, histórico, ou seja, um complexo de valores realizados e não idealizados. Assim, pelo menos, é que o concebo.
Mas exatamente por concebê-lo dessa maneira, reconheço que o direito natural, ao mesmo tempo, liga-se a valores universais e os transcende ao realizá-los. Isso implica que esse direito ao mesmo tempo ideal e histórico inclui não apenas os valores, mas também as regras, por meio das quais eles se realizam e são aplicados. Por isso, em outro texto, afirmei que o direito natural é um complexo de princípios (inclusive valores) e regras.
Miguel Reale mostrou que, ao serem criadas, as normas perdem o caráter próprio dos valores. Normas são expressões finitas de valores inexauríveis. Por isso, a criação e a aplicação delas se dão por um movimento descendente, não ascendente, por um movimento em direção ao direito natural, não em direção aos valores enquanto bens idealizados e inexauríveis.
A lição é precisa. A consciência humana é imantada pelos valores e parte inevitavelmente deles, em toda a sua atividade cultural. Porém, assim como parte de algo determinado, ela desce em direção a algo definido, ao criar as normas. Parte dos valores como tais em direção ao direito natural, isto é, aos valores realizados no plano da História. Constituir, pois, o limite inferior, humilde e não exaltado, feito de palha e não de ouro, desse processo, tal é, precisamente, a função do direito natural.